GIL VICENTE 15. COMÉDIA DO VIÚVO (1514)

dom rosvel

Resumo:

Um homem lamenta a perda de sua mulher. Vem um Frade consolá-lo. A seguir um Compadre diz que ele é feliz e invejado por estar viúvo. O compadre descreve sua mulher, que é uma verdadeira serpente. Saem estes e as duas filhas do viúvo, Paula e Melícia, lamentam a orfandade. Falam as duas: “Grande segredo é morrer. Mas é muito declarado, maior segredo é viver e sendo certo a partida, não estar bem preparado”. Dom Rosvel, um Príncipe, as vê e disfarça-se de empregado. O viúvo o admite para os mais baixos serviços: cuidar dos porcos, trazer lenha. Num momento em que o viúvo está ausente, Dom Rosvel declara-se. Está apaixonado pelas duas e diz-se ser feliz apenas com as tarefas que desempenha, por poder estar junto delas, apesar de ser filho de duque e duquesa. O viúvo volta e diz já ter acertado o casamento de Paula. Nesse momento surge dom Gilberto, irmão de dom Rosvel. Algumas feiticeiras haviam falado aos seus pais de como vivia o filho perdido e ele saíra pelo mundo, para procurá-lo. Vai dom Rosvel até o príncipe Dom João III, que faz parte da platéia (nessa altura, com 12 anos) e pergunta com quem deve se casar. O príncipe indica Paula. O irmão do príncipe se apaixona por Melícia. Chegam músicos e um padre e a obra termina com os dois casamentos.

GV034. D. Rosvel

Arrimárame à tí, rosa,
No me diste solombra.

(canta Jaqueson Magrani)

GV035. D. Rosvel

Mal herido me ha la niña,
No me hacen justicia.

(canta Jaqueson Magrani)

GV036. Quatro Cantores

Estanse dos hermanas
Doliéndose de si;
Hermosas son entrambas
Lo mas que yo nunca ví.
Hufa! Hufa!
Á la fiesta, á la fiesta
Que las bodas son aqui.

Namorado se había dellas
Don Rosvel Tenori:
Nunca tan lindos amores
Yo jamas contar oí.
Hufa! Hufa!
Á la fiesta, á la fiesta,
Que las bodas son aqui.

(cantam Gerson Marchiori e Graciano Santos)

 

Comentário:

A peça é toda em castelhano. Aos poucos a obra de Gil Vicente vai sendo enriquecida com situações psicológicas mais sutis e um humor recheado com mais finas ironias. Esta obra é um exemplo, ao mostrar a indecisão do Príncipe em relação às duas moças e as palavras do Compradre ao descrever a serpente que é sua mulher. O tema do nobre enamorado que se finge de trabalhador rústico é constante na literatura da época. Gil Vicente vai repetí-lo em Dom Duardos, Cervantes narra episódios no Dom Quixote.

Há uma certa simplicidade no desenrolar da ação, resultado de uma cultura conservadora muito presa ao catolicismo. Se pensarmos que, duzentos anos antes, a literatura italiana já mostrava uma moderníssima licenciosidade, podemos levantar grandes diferenças entre as culturas portuguesa e a italiana. Pensemos no Decameron, de Boccaccio (1313-1375) e na Mandrágora, de Maquiavel (1469-1527). A Itália era o centro do catolicismo e sabe-se da corrupção e imoralidade que reinava no Vaticano, motivo da revolução protestante, que se iniciará em 1517, com a reação luterana à venda das indulgências. Portugal e Espanha se mantinham num cristianismo mais puro (apesar das constantes denúncias de Gil Vicente aos maus costumes do clero). O resto da Europa fervilhava em discussões sobre religião e ética. Gil Vicente tentou acompanhar o pensamento de Erasmo de Roterdã, como se percebe em seu trabalho e em uma carta endereçada ao rei João III, muito mais tarde. Mas os costumes apresentados em sua obra são pautados por um comportamento rígido e preso às normas ditadas pelo catolicismo.

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GIL VICENTE 14. EXORTAÇÃO DA GUERRA (1513)

policena

Resumo:

Um Clérigo nigromante apresenta-se e fala de suas artes em magia negra. Invoca os demônios. Manda que dois deles tragam a troiana Policena, filha dos reis de Tróia. Ela cumprimenta a corte e elogia a todos. Instada pelo Clérigo, ela discursa sobre o amor cortesão. E por que causa deve o homem ser amado? Que seja um guerreiro! Vem Pantasiléia, rainha das amazonas. Ela instiga os portugueses à guerra. Aquiles também faz o seu discurso a favor da guerra. Finalmente entram Aníbal, Heitor e Cipião. Anibal exorta os fidalgos à guerra. Todos os discursos têm dois motes: é uma guerra santa porque contra os mouros; e a nobreza e a igreja devem doar suas jóias e dinheiro para a guerra. Une-se ao discurso de Anibal um canto e uma dança, com o que termina a peça.

GV033. Annibal (fala) e Todos (canto)

Ó Senhores cidadãos
Fidalgos e Regedores,
Escutae os atambores
Com ouvidos de christãos.
E a gente popular
Avante, não refusar.
Ponde a vida e a fazenda,
Porque para tal contenda
Ninguem deve recear.

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

Avante! avante! Senhores!
Que na guerra com razão
Anda Deos por capitão.

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

Guerra, guerra, todo estado!
Guerra, guerra, mui cruel!
Que o gran Rei Dom Manuel
Tem promettido e jurado
Dentro no seu coração
Que poucos lh’escaparão

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

Sua Alteza determina
Por acrescentar a fé,
Guerra, guerra, mui contina
He sua grande tenção.

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

Este Rei tão excellente,
Muito bem afortunado,
Tem o mundo rodeado
Do Oriente ao Ponente:
Deos mui alto, omnipotente,
O seu real coração
Tem posto na sua mão.

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

(fala e canto: Jorge Teles)

 

Comentário:

Pode-se afirmar que é esta a única obra de Gil Vicente que declaradamente faz propaganda política. Partia para Azamor em Marrocos uma expedição bélica portuguesa, chefiada pelo duque de Bragança e Guimarães. Muitos dos que iam não voltavam e a vitória nem sempre era garantida. A peça dá ânimo aos nobres, invocando a glória das conquistas portuguesas que precisava ser sustentada e, claro, tinha seu preço, não só em dinheiro mas em vidas.

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Gil Vicente 13. O VELHO DA HORTA (1512)

a moça

Resumo:

Entra um Velho orando um pai-nosso parafraseado: após uma expressão latina Gil Vicente acrescenta uma extensão da idéia (Pater noster criador, qui es in coelis poderoso, santificetur, Senhor, Nomem tuum, vencedor, nos céus e terra piedoso). Vem uma Moça para comprar verdura. Ele se perde de amores e se declara de imediato. Ela colhe algo e parte. Vem o Parvo, a mando da Mulher, chamando-o para comer. Ele não quer comer nem beber. Ao contrário, pede que o criado traga a viola. Vem a Mulher. Discutem. Ela insinua que está com ciúmes e ele confessa sua paixão. Expulsa-a.  Canta. Vem Branca Gil, alcoviteira, também a comprar verduras. Ele fala de seu amor e ela diz que vai ajudá-lo. Quando ela descreve a mocinha, ele desmaia de emoção. Branca Gil inicia uma longa e engraçadíssima ladainha, pois que dá nome de santo e santa aos nobres que assistem e pede que favoreçam o pobre do Velho. Ele acorda e a partir daí ela começa a explorá-lo. Vai, cena após cena, pegando seu dinheiro para comprar presentinhos para a Moça. Entra o Alcaide com soldados e leva presa a Alcoviteira, para ser açoitada em público. Uma Mocinha vem fazer um pagamento e fala do casamento do Moça. O Velho se desespera e lamenta seu estado de miséria, porque perdeu a fortuna.

GV029. Moça

Qual es la niña

Que coge las flores,

Sino tiene amores.

Cogia la niña

La rosa florida,

El hortelanico

Prendas le pedia,

Sino tiene amores.

(canta Carmen Ziege)

GV030. Velho

Volvido nos han volvido,

Volvido nos han

Por una vecina mala

Meu amor tolheu-me a falla,

Volvido nos han.

(canta João Batista Carneiro)

GV031. Velho

Pues tengo razon, señora,

Razon es que me la oiga.

(canta João Batista Carneiro)

GV032. Mocinha

Hua moça tão fermosa,

Que vivia alli á Sé…

(canta Katia Santos)

Comentário:

O tema do Velho apaixonado volta à pena de Gil Vicente. Aqui retratado com pormenores até o final trágico, quando ele acaba na miséria e a alcoviteira é presa para ser açoitada (“Já fui açoitada tres vezes, enfim hei de viver!”). Novamente uma engraçada galeria de tipos: o bobo, a mulher ciumenta, o velho ridículo e a aproveitadeira. Estranho costume o de açoitar a alcoviteira, em público, com uma mitra de papelão sobre a cabeça; leva-nos a concluir que o castigo era formal já que a sociedade não podia prescindir daquele tipo de serviço.

Mais tarde, em 1534, na peça Auto da Cananéia, Gil Vicente voltará a fazer uma paráfrase do Pai-Nosso. Então, Cristo fala a primeira metade em latim e apresenta o desenvolvimento da idéia em português versificado; a seguir, a segunda metade em latim e novamente o desenvolvimento.

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