GIL VICENTE 36. TRIUNFO DO INVERNO (1529)

Inverno

Resumo:

O próprio Autor se apresenta como prólogo, lamentando uma antiga alegria, não mais existente em Portugal. Diz que se acabaram as festas populares com suas danças e seus cantos e que o povo tem estado triste. A seguir, o Inverno entra, selvagem, anunciando suas ações. Para mostrar sua força, apresenta seu primeiro triunfo, que é cobrir de neve uma serra: “Soy portero de los vientos, pastor de las tempestades…” Vem um Pastor, imprecando contra o frio e elogiando o Verão. Há uma incrível discussão entre ele e o Inverno e acabam trocando pragas. Outro Pastor vem e diz que não tem vestes contra o frio, porque esteve apaixonado durante o verão e gastou todo o dinheiro em flores e presentes para a namorada. Uma Velha surge a seguir: deve atravessar a serra descalça sobre a neve porque recebeu este desafio de um jovem, para que ele a aceite como namorada. O Inverno despede aos três para mostrar seu segundo triunfo. É uma impressionante e realista tempestade no mar. Durante a tempestade, um dos marinheiros começa a rezar: “Oh Virgem da Luz Senhora! São Jorge! São Nicolau!” Mas diz o Piloto: “Acudi eramá a náu, deixai os santos agora!” Após isto, três Sereias entoam uma confortadora canção sobre a esperança. O Inverno leva as Sereias até as majestades e elas cantam um romance enaltecendo Portugal e seus reis. O Verão expulsa o Inverno. Descreve o novo cenario: saiam as flores, cantem as aves. Chama a Serra de Sintra para que ela usufrua suas benesses. Um casal do povo reclama do calor, ele é ferreiro e ela forneira. Entra um grupo de moços e moças, trazendo aos reis os jardins perenais. Cantam em honra do Verão e da criança que nascera, filha de Dom João III e dona Catarina.

GV114. Autor

Terra frida d’eismelo,
No me negueis mi consuelo.

(canta Giovanni Dallagrana)

GV115. Autor

No penedo João Preto
E no penedo.

Quaes forão os perros
Que matárão os lobos,
Que comêrão as cabras,
Que roêrão o bacello
Que posera João Preto
No penedo?

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV116. Brisco

Quien maora ca mi sayo,
Cuitado,
Quien maora ca mi sayo.

El mozo y la moza
Van en romería:
Tómales la noche
Naquella montina:

Cuitado,
Quien maora ca mi sayo.

Tómales la noche
Naquella montina,
La moza cantaba,
El mozo dexia:
Cuitado,
Quien maora ca mi sayo.

(canta Graciano Santos)

GV117. Juan Guijarro

Por do pasaré la sierra,
Gentil serrana morena?

Tu ru ru ru rá: quien la pasará?
Tu ru ru ru ru: no la pases tú.
Tu ru ru ru ré: yo la pasaré.
Di, serrana, por tu fe
Si naciste en esta tierra,
Por do pasaré la sierra,
Gentil serrana morena?

Ti ri ri ri ri: queda tú aqui.
Tu ru ru ru ru: qué me quieres tú?
To ro ro ro ro: que yo sola estó.
Serrana, no puedo no,
Que otro amor me da guerra.
Como pasaré la sierra,
Gentil serrana morena?

(cantam João Batista Carneiro e Carmen Ziege)

GV118. Velha

Assi andando, amor andando,
Assi andando m’ora irei.

(canta Kátia Santos)

GV119. Velha

Polo canaval da neve
Não h’a hi amor que me leve.

(canta Carmen Ziege)

GV120. Tres Sereas

Por mas que la vida pene,
No se pierda el esperanza,
Porque la desconfianza
Sola la muerte la tiene.
Si fortuna dolorida
Tuviera quien bien la sienta,
Sentirá que toda afrenta
Se remedia con la vida.
Y pues doble gloria tiene
Despues del mal la bonanza,
No se pierda el esperanza
En quanto muerte no viene.
Ha a a – ha a a – ha a a.

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

GV121. Sereias

Deus do ceu e Rei do mundo,
Por sempre sejas louvado,
Que mostraste tais grandezas
Em tudo que tens criado.
Fizeste reinos distintos
E cada um no seu grado,
Deste-lhes mui justos reis,
Cada rei no seu reinado.
Também deste a Portugal,
De mouros sendo ocupado,
O rei dom Afonso Henriques,
Que antes o tinha ganhado.
Este santo cavaleiro
De teu poder ajudado,
Venceu a cinco reis mouros
Juntos em campo apraçado.
Tu cinco chagas lhe deste
Em paga do seu cuidado.
Que as deixasse por armas
Ao seu reino assinalado.
Recorda-te, Portugal,
Quanto Deus te tem honrado;
Pois deu-te as terras do sol
Por comércio a teu mandado;
E os jardins de toda a terra
Tu tens bem assenhoreado:
Os pomares do Oriente
Dão-te seu fruto apreciado.
Seus paraísos terreais
Fechaste com teu cadeado.
Louva ao que te deu a chave
Do melhor que tem criado;
Todas as ilhas ignotas
Só a ti tem revelado.
De quinze Reis que tiveste,
Nenhum te tem despresado,
Mas de melhor em melhor
Têm-te acrescentado;
Tuas Rainhas passadas
Santas têm acabado.
Se a Deus deste louvores
Por quantos bens te tem dado,
Dá-lhe graças novamente,
Pois de novo te há olhado.
Deu-te o Rei Dom João,
Terceiro deste ditado;
E da rainha preciosa,
Porque sejas mais ligado,
Duas filhas primeiramente
Tudo por Deus ordenado;
Como quem sabe o bom,
Assim te tem orquestrado,
Bem sabes, Reino ditoso,
As Infantes que te ha dado,
Umas para Imperatrizes,
Rainhas que tens criado.
Outros Reis da Cristandade
De tua estirpe têm manado,
E também Imperadores
Procedem de teu costado,
Teu príncipe natural
Deus por ti o tem guardado,
E nascerá em tuas mãos
Quando o tempo for chegado.

(cantam Jorge Teles, Gerson Marchiori, João Batista Carneiro, Carmen Ziege, John Théo, Jáqueson Magrani, Rubem Ferreira Jr, Kátia Santos, Giovani Dallagrana e Graciano Santos)

GV122. Verão

Del rosal vengo, mi madre,
Vengo del rosale.

Á riberas daquel vado
Viera estar rosal granado.
Vengo del rosale.

Á riberas daquel rio
Viera estar rosal florido,
Vengo del rosale.

Viera estar rosal florido,
Cogí rosas con sospiro.
Vengo del rosale.

Del rosal vengo, mi madre,
Vengo del rosale.

(canta Jorge Teles)

GV123. Quatro mancebos e quatro moças

Quem diz que não he este
San João o verde?

(canta Jáqueson Magrani)

 

… Sintrãos e Principe (V.GV108, na peça Náu d’Amores)
Vento bueno nos ha de levar,
Garrido he o vendaval.

 

Comentário:

Tomando como tema o mito da luta entre os elementos da natureza nos extremos das estações, Gil Vicente construiu um poderoso painel. É uma sequência de cenas cativantes em que diferentes personagens se sucedem, sofrendo os rigores atmosféricos mas, humanamente, defendendo-se como podem e praguejando quando saída outra não lhes resta. Esta obra é um dos mais soberbos exemplos da genialidade de Gil Vicente. Feita para festejar o nascimento de uma filha de Dom João III, é uma demonstração de seu talento.
Como no decorrer de toda a sua obra, Gil Vicente não perde oportunidade para criticar aspectos da religiosidade do povo ou dos costumes da nobreza portuguesa, que ele considerava errados. Durante a tempestade ele faz com que o Piloto diga que é preciso trabalhar e não rezar. E um dos personagens critica um costume da época, que era dar o comando de um navio a um nobre importante, um aderente do paço, que nada entendia de navegação. Diz o Marinheiro: “Esta é uma errada, que mil erros traz consigo, ofício de tanto perigo, dar-se a quem não sabe nada”.
A discussão entre o Inverno e o Pastor é muito semelhante aos desafios dos cantadores do nordeste brasileiro.
O longo romance cantado pelas Sereias, narrando o brilho português, está em espanhol no original. Fiz uma tradução para o português, para dar autenticidade à canção.

Entre esta peça, de 1529, e a seguinte, de 1532, ocorrerá o trágico terremoto que destruíu boa parte de Lisboa, em 1531. Alguns frades de Santarém estavam anunciando a vinda imediata de outro terremoto, o que provocou tumulto no meio do povo. Acusavam, como causa dos desastres, a ira de Deus, pela presença dos cristãos-novos em Portugal. Cristãos-novos era o nome dado aos judeus convertidos ao cristianismo. Trinta e cinco anos antes havia sido decretada a sua expulsão e houve a conversão forçada dos remanescentes. Percebe-se, pois, que ainda havia preconceito fanático contra a presença dos convertidos. Numa carta endereçada ao rei, Gil Vicente conta os argumentos que apresentou aos frades, sobre as forças cegas da natureza, restaurando a tranquilidade no lugar.

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GIL VICENTE 35. AUTO DA FEIRA (1527)

Roma

Resumo:

Mercúrio, o deus do comércio, após zombar da astrologia, ordena ao Tempo que arme uma tenda para uma feira de natal, a Feira das Graças: “Faço mercador-mor, ao Tempo, que aqui vem; e assim o tenho por bem, e não falte comprador, porque o Tempo tudo tem”. O Tempo – falando em decassílabos – arma a barraca e chama os visitantes. Ali nada será vendido, mas trocado. Um Anjo (Serafim) conclama os papas a pegar novas vestes, como as dos antigos. O Diabo também arma sua tendinha: tem “artes de enganar”, “falsas manhas de viver”, para clérigos e frades, “hipocrisia” para quem quer ser bispo. Entra Roma que quer comprar a paz que não encontra entre os cristãos. A ela, o Diabo oferece: “Vender-vos-ei nesta feira, mentiras, vinte três mil, todas, de nova maneira, cada uma mais sutil, que não vivais em canseira”. Roma vai ao Anjo e diz: “Oh, vendei-me a paz dos céus pois tenho o poder da terra”. O Anjo: “Atentai com quem lutais, que temo que caireis”. Após a saída de Roma, entram dois lavradores. Ambos querem se livrar das mulheres, uma é muito brava e a outra muito mansa. Um acaba por elogiar a mulher do outro e falam em trocar (feirar) as duas. Chegam outros vendedores e compradores que se instalam junto à tenda. Uma mulher fala o nome de Jesus e o Diabo desaparece, ficando o Tempo e o Anjo. A algumas moças, o Tempo oferece consciência. A outras, o Anjo oferece virtude. Mas todas recusam. Vieram à feira porque ouviram falar que nela está Nossa Senhora. E todos cantam um hino em honra da Virgem. 

 GV112. Roma

Sobre mi armavão guerra:
Ver quero eu quem a mi leva.

Tres amigos que eu havia,
Sobre mi armão porfia:
Ver quero eu quem a mi leva.

(canta Carmen Ziege)

GV113. Todos

Blanca estais colorada,
Virgem sagrada.

Em Belem villa do amor
Da rosa nasceo a flor:
Virgem sagrada.
Em Belem villa do amor
nasceo a rosa do rosal:
Virgem sagrada.

Da rosa nasceo a flor,
Pera nosso Salvador:
Virgem sagrada.
Nasceo a rosa do rosal,
Deos e homem natural:
Virgem sagrada.

(canta Jorge Teles)

 

Comentário:

Eis uma das mais violentas mostras do anti-clericalismo de Gil Vicente, que, profundamente religioso, não perdia a oportunidade para condenar os padres fingidos e, inclusive, Roma, com sua simonia – diabólico comércio de virtudes e objetos sagrados, para a salvação. A peça, todavia, fica desequilibrada, pois muda de rumo, após a saída da alegoria de Roma. Entram camponeses, há cenas cômicas entre todos e terminam por cumprir o objetivo do auto, que era festejar o natal. Na verdade, é o início da peça que está deslocado, já que as presenças de Roma, do Diabo, do Tempo e do Anjo lembram mais o clima do Auto da Barca do Inferno.
Na edição da obra de Gil Vicente de 1586, quando o Tribunal do Santo Ofício já vigorava em Portugal e já se acendia fogueiras para queimar os hereges, a Censura Inquisitorial cortou 21 versos do texto original.

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GIL VICENTE 34. TRAGICOMÉDIA PASTORIL DA SERRA DA ESTRELA (1527)

o ermitão

Resumo:

A personagem Serra da Estrela, acompanhada de um criado parvo, convoca alguns pastores para visitar a Rainha que deu à luz, estando a corte na cidade de Coimbra. A rainha é Dona Catarina, mulher de D. João III. A criança é a infanta Dona Maria. Entre os pastores há enormes desencontros amorosos. Um Ermitão surge, pedindo esmola. Um pastor sugere que o Ermitão indique a cada um o seu par. Ele apresenta uns papéis, onde se lê as sortes dos pastores e são feitos os pares. A seguir o Ermitão faz desfilar uma série de condições para uma ermida onde gostaria de viver, nada santamente: “…uma cela larga… e que fosse num deserto d’infindo vinho e pão, e a fonte muito perto e longe a contemplação; … e que a filha do juiz me fizesse sempre a cama. E enquanto eu rezasse, esquecesse as ovelhas, e na cela me abraçasse e mordesse nas orelhas!” Gonçalo, um pastor, reage: “Está ali, padre, um silvado viçoso, verde, florido, com espinho tão comprido, e vós nu ali deitado… porque a vida que buscais, não na dá Deus verdadeiro”. A Serra lhes lembra que precisam ir até a Rainha. E enumera os produtos especiais da região que levará como presentes. Entram dois foliões, cada um canta uma canção. E juntos, todos cantam e dançam.

GV103. Gonçalo

Volaba la pega y vaise:
Quem me la tomasse.

Andaba la pega
No meu cerrado,
Olhos morenos
Bico dourado
Quem me la tomasse.

(canta Gerson Marchiori)

GV104. Felipa

A mi seguem dous açores,
Hum delles morirá d’amores.

Dous açores qu’eu havia
Aqui andão nesta bailia,
Hum delles morirá d’amores.

(canta Kátia Santos)

GV105. Catherina Meigengra

A serra es alta,
O amor he grande,
Se nos ouvirane.

(canta Carmen Ziege)

GV106. Fernando

Com que olhos me olhaste,
Que tão bem vos pareci?
Tão asinha m’olvidaste,
Quem te disse mal de mi?

(canta Jorge Teles)

GV107. Madanela

Quando aqui chove e neva,
Que fará na serra.

Na serra de Coimbra
Nevava e chovia,
Que fará na serra?

(canta Kátia Santos)

GV108. Rodrigo

Vayámonos ambos, amor, vayamos,
Vayamonos ambos.
Felipa e Rodrigo passavão o rio,
Amor, vayámonos.

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV109. Lopo

E se ponerei la mano em vós
Garrido amor.

Hum amigo que eu havia
Mançanas d’ouro m’envia,
Garrido amor.

Hum amigo que eu amava,
Mançanas d’ouro me manda,
Garrido amor.

Mançanas d’ouro m’envia,
A melhor era partida,
Garrido amor.

(canta Kátia Santos)

GV110. Lopo

Ja não quer minha senhora
Que lhe falle em apartado;
Oh que mal tão alongado!

Minha Senhora me disse
Que me quer fallar hum dia,
Agora por meu peccado
Disse-me que não podia:
Oh que mal tão alongado!

Minha senhora me disse
Que me queria fallar,
Agora por meu peccado
Não me quer ver nem olhar,
Oh que mal tão alongado!

Agora por meu peccado
Disse-me que não podia.
Ir-me-hei triste polo mundo
Onde me levar a dita.
Oh que mal tão alongado!

(canta Graciano Santos)

GV111. Todos

Não me firais, madre,
Que eu direi a verdade.

Madre, hum escudeiro
Da nossa Rainha
Fallou-me d’amores:
Vereis que dizia,
Eu direi a verdade.

Fallou-me d’amores,
Vereis que dizia:
Quem te me tivesse
Desnuda em camisa!
Eu direi a verdade.

(canta Carmen Ziege)

 

Comentário:

Deliciosa pastoral de Gil Vicente. Mas uma pastoral bem diferente das que acontecerão na literatura a partir da segunda metade do século XVI, pois que aqui os pastores não são nada idealizados, não há modelo grego para definir características físicas ou de comportamento. Ao contrário, um realismo meio grosseiro perpassa a maioria das falas dos jovens. Exemplos: “Meigengra traz a saia descosida e não lhe dará um ponto. Oh, quantas lêndeas vi nela, e pentear, nem migalha”. “Aborrece-me Gonçalo como o cu do nosso galo!” Alguns dos diálogos entre os namorados lembram cenas semelhantes do Sonho de Uma Noite de Verão. Talvez o mais cativante dessa obra seja o grande número de canções populares, aqui, reproduzidas quase todas na íntegra.
O Ermitão tem uma função um tanto artificial, nada convincente, a não ser no momento cômico em que enumera as mordomias de sua pretendida ermida. Entra em cena já com papeizinhos onde estão escritos os versos que determinarão os pares.
Mas a comédia (chamada de tragicomédia, que era o nome dado às peças que serviam para comemorar algum acontecimento importante), certamente cumpriu o seu objetivo, que era embelezar as festas da comemoração pelo nascimento de uma filha do rei. Todo o clima é alegre, as cantigas encantam.

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