GIL VICENTE 21. FARSA DAS CIGANAS (1521)

cigana

Resumo:

Entram em cena quatro ciganas. Pedem esmolas e se dizem cristãs. Querem receber objetos em troca da “buena ventura”. Entram a seguir quatro ciganos. Querem trocar cavalos. Cantam. As ciganas se oferecem para ensinar feitiços às damas presentes e em seguida lêem suas linhas das mãos. Vão-se cantando.

GV059. Ciganas

En la cocina estaba el asno
Bailando,
Y dijéronme, don asno,
Que vos traen casamiento
Y os daban en axuar
Una manta y un paramiento
Hilando.

(canta Jorge Teles)

 

Comentário:

Toda em espanhol, esta é, por certo, a mais singela obra de Gil Vicente, sem contar o Auto de São Martinho, que se trata de uma cena de procissão de Corpus Christi. Não há praticamente enredo; é um quadro. Ciganos entram  no círculo de cortesãos e lêem a sorte. O que as ciganas chamam de feitiços, hoje se podia chamar de simpatias: “outro feitiço que posso lhe dar, é que possais, senhora, saber, qual o marido que haveis de ter, e o dia e a hora em que haveis de casar”. Isto se parece com nossas simpatias para a véspera do dia de Santo Antonio.
Dois aspectos fazem dessa obra uma peça ímpar. O primeiro são as expressões elogiosas que os ciganos dirigem aos presentes: “lírio da Grécia”, “rosa nascida às margens do Nilo”, “esmeralda polida”, “minha linda ave Fênix”, e vai por aí. O segundo é a linguagem dos ciganos: Gil Vicente, como sempre fez, adota uma escrita de acordo com a pronúncia do personagem. Os ciganos se apresentam falando com ceceio; há uma abundância de z: Diuz, cristianuz sumuz… Mais tarde, na Farsa Chamada Auto da Lusitânia, de 1532, as deusas entoarão uma cantiga toda com ceceios. Acreditava-se na época que os ciganos tinham vindo do Egito e, como os ciganos falavam ceceando, os deuses, que também vinham do oriente, deviam cecear. Eis Gil Vicente exibindo um de seus mais preciosos troféus: as falas das gentes do povo se apresentam com uma espontaneidade realista, sem embelezamento nem artificialidade. Eu compararia esta linguagem com a linguagem das pinturas do renascimento do norte europeu, despojadas de um classicismo que se pretende elegante mas é padronizador.

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GIL VICENTE 20. CORTES DE JÚPITER (1521)

Venus

Resumo:

A Providência entra, enviada por Deus. Faz vir a Júpiter, rei dos planetas. A infanta portuguesa Beatriz, filha de Dom Manuel, está de partida para Sabóia, para casar-se com o duque. O rei dos deuses deve ordenar ao mar e aos ventos tranquilidade para a viagem. Entram os quatro Ventos. Tocam trombetas para chamar o Mar. Vem o Mar, furioso. Diz a Júpiter que só obedece à Lua. Vêem a seguir o Sol, a Lua e Vênus (a Estrela Dalva). Júpiter dá as ordens. E os deuses começam a organizar o séquito da infanta: nobres, damas e gente da corte, metamorfoseados em peixes e aves, deverão acompanhar a frota pelo rio Tejo até a entrada no mar, quando ouvirão o canto de cento e trinta mil sereias. Vem Marte, que acompanhará o cortejo, para que não haja ataque de inimigos. O canto de um romance, que narra a viagem da infanta, desencanta uma Moura com seu linguajar estropiado (Mi no xaber que exto extar, mi no xaber que exto xer, mi no xaber onde andar – Não sei onde estou, não sei o que é isto, não sei por onde ando). A Moura entrega à Infanta 3 prendas mágicas. Cantam e finda-se a peça.

GV043. Sol

Niña erguedme los ojos,
Que a mi namorado m’hão.

(canta João Batista Carneiro)

GV044. Lua

Eu m’era Dona Isabel,
Agora raia do alto.

(canta Carmen Ziege)

GV045. Sol

Yo me soy Pero Çafío.

(canta João Batista Carneiro)

GV046. Júpiter

Não me quiz casar meu pae,
Ora folgae.

(canta Carmen Ziege)

GV047. Sol

Aquel caballero, madre, se me habrá
Con tan mala vida como há?

(canta Carmen Ziege)

 GV048. Sol

A que horas me mandais
Aos olivaes!

(canta Jorge Teles)

GV049. Venus

Nunca fue pena mayor,
Ni tormento tan estraño
Que iguale con el dolor.

(canta Carmen Ziege)

GV050. Venus

Estes meus cabellos, madre,
Dos á dos me los lleva el aire.

(canta Jorge Teles)

GV051. Venus

De vos y de mi quejoso,
De vos porque sois esquiva.

(canta Carmen Ziege)

 GV052. Venus

Enganado andais, amigo,
Comigo;
Dias ha que vo-lo digo.

(canta Carmen Ziege)

GV053. Júpiter

Gentil dama valerosa,
Y doncella por cuyo amor.

(canta João Batista Carneiro)

GV054. Júpiter

Sem mais mando nem mais rôgo
Aqui me tendes, levae-me logo.

(canta Carmen Ziege)

GV055. Sol

Al dolor do mi cuidado,
Y en tus manos la mi vida,
Me encomiendo condenado.

(canta João Batista Carneiro)

 GV056. Sol

Se disserão digão alma mia.

(canta Carmen Ziege)

 GV057. Sol

Por el rio me llevad, amigo,
Y llevadme por el rio.

(canta Carmen Ziege)

GV058. Todos

Niña era la Ifanta,
Doña Beatriz se decia,
Nieta del buen Rey Hernando,
El mejor Rey de Castilla.
Hija del Rey Don Manuel
Y Reina Dona María.
Reyes de tanta bondad
Que tales dos no habia.
Niña la casó su padre,
Muy hermosa á maravilla,
Con el Duque de Saboya,
Que bien le pertenecia,
Señor de muchos señores,
Mas que Rey es su valia.
Ya se parte la Ifanta,
La Ifanta se partia
De la muy leal ciudad
Que Lisbona se decia;
La riqueza que llevaba
Vale toda Alejandria.
Sus naves muy alterosas,
Sin cuento la artilleria;
Va por el mar de Levante,
Tal que temblaba Turquia.
Con ella va el Arzobispo
Señor de la Cleresia;
Van condes y caballeros
De muy notable osadía;
Lleva damas muy hermosas,
Hijas dalgo y de valía.
Dios los lleve á salvamiento
Como su madre querria.

(canta Jorge Teles)

 

Comentário:

Famosa obra de Gil Vicente. Já à maneira renascentista, mistura o maravilhoso pagão ao maravilhoso cristão. Observe-se, porém, que não comparecem os deuses mas os astros a que eles se referem: Júpiter, o Sol, a Lua e a Estrela Dalva (Vênus) Pela presença destes e dos ventos, a obra se constitui num exemplo rico de um espetáculo feérico, grandioso.
A peça foi encenada como ponto culminante de uma festa que durou a tarde e a noite, na véspera da partida da infanta para a Itália. Durante o dia um faustoso cortejo percorreu as ruas de Lisboa, indo do Palácio à Igreja da Sé, e indo dali para o paço da rainha viúva, Dona Leonor, para a despedida da infanta. Voltando ao Palácio por outro caminho, houve um baile – o rei dançou com a filha – e encerrou-se a noite com a apresentação da peça de Gil Vicente.
Pela maneira como os astros-deuses distribuem as transformações da nobreza em peixes e aves, para que sigam o cortejo das treze naus até o mar, designando alguns deles pelos nomes e grau de nobreza, a história de Portugal acaba fazendo parte da peça, já que a platéia está inserida na encenação.
Toda a peça é em português, com frases de canções em castelhano. O romance no entanto, que faz um resumo de toda a saga da viagem, é  em castelhano.
Almeida Garret (1799-1854), em 1838, apresentou a peça Um auto de Gil Vicente, com a explícita intenção de inaugurar o moderno teatro português. A trama gira em torno da encenação de Cortes de Júpiter, aparecendo como personagens Gil Vicente, Paula Vicente, sua filha, Bernardim Ribeiro (poeta contemporâneo) e pessoas da Corte. Bernardim Ribeiro ama a infanta Beatriz. Sabendo da encenação na véspera de sua partida, disfarça-se e assume o papel da Moura, entregando-lhe um anel como prenda. O rei Don Manuel percebe algo estranho e suspende a apresentação. A infanta desmaia. No dia seguinte Bernardim consegue entrar na nau que levará Dona Beatriz e faz sua declaração de amor.
(Obs: Há citações de trechos curtíssimos de canções populares; juntei-as em 4 sequências e criei um pequeno interlúdio entre elas, com variações).

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GIL VICENTE 19. FARSA CHAMADA AUTO DA ÍNDIA (1519)

Lemos


Resumo:

A Ama está chorando. A Criada acha que é porque o marido está de partida para as Índias. Não! É o contrário, pois dizem que já não vai. Mas ele se vai e ela fica, “em maio, quando o sangue novo atiça”. Logo surge o Castelhano que acabou de saber que o marido se fora. Ele desfia uma sequência longa de frases exageradas, para mostrar sua paixão: “y ando un cuerpo sin alma, un papel que lleva el viento, un pozo de pensamiento, una fortuna sin calma”. Ela não quer recebê-lo. E ele: “O mi vida y mi señora, luz de todo Portugal, teneis gracia especial para linda matadora”. Ela combina um encontro à noite.  A seguir surge Lemos, cheio de gentilezas: Ela: “Jesu! tamanha mesura! Sou rainha, porventura?” Ele: ” mas sois minha imperadora”. Ele despacha a Criada, para que vá as compras e traga vinho e comida. Enquanto Lemos faz a corte, o Castelhano  grita do lado de fora da janela. A Lemos, ela diz que é o irmão que está lá fora. Ao Castelhano, ela manda que se vá. Ele ameaça, fanfarrão: “Quiero destruir el mundo, quemar la casa, es la verdad, despues quemar la ciudad”. A Ama controla os dois. Quando volta o marido, ela dissimula, fala de suas saudades e rezas e jejuns. Ele narra os perigos da viagem. Vão-se a ver a nave.

GV042. Lemos

Quem vos anojou, meu bem,
Bem anojado me tem.

(canta João Batista Carneiro)

 

Comentário:

Típica comédia de situações, caracterizada principalmente pelos protótipos humanos. O marido bonachão e ingênuo, a mulher mentirosa e adúltera, o cortejador vulgar e o espanhol fanfarrão. Comentando com venenosos e realistas apartes, a Criada vai costurando as cenas entre si. Seria esta a mais perfeita comédia de Gil Vicente? Se não for, há de ser uma das mais graciosas.

O Auto da India é a primeira ficção portuguesa que tem por tema as viagens à India. As referências são bem claras. O marido vai para Calecut, na India, atrás da negra canela. Volta três anos depois. A mulher preparou pão especial, mais seco, para ser consumido na viagem. Ela presume que ele voltou rico mas ele disse que “se não fosse o capitão…”, ele teria muito mais. Mostra também a promiscuidade linguística vigente em Portugal nessa época, havendo diálogos entre portugueses e espanhol, cada um se manifestando na sua língua natal.

Esta peça de Gil Vicente tem, para mim, um vínculo muito especial. Quando a Professora Cecília Teixeira de Oliveira Zokner, à ocasião diretora do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal do Paraná, criou o Grupo Gil Vicente, em 1970, eu, no primeiro ano do curso de Letras, fui convidado a participar do Grupo. A peça já tinha sido escolhida, era o Auto da India. Meu conhecimento de Gil Vicente era superficial, o criador do teatro em Portugal com o Monólogo do Vaqueiro, o Auto da Barca do Inferno, pouca coisa… Por causa de minha pequena experiência caseira com fantoches, fui escolhido para a função de direção. E por força disso, tive que fazer um estudo mais detalhado, visando a encenação, o que incluia uma atualização do texto para platéia desacostumada ao português do século XVI.

Mas, o que mais me surpreendeu no trabalho de Gil Vicente, coisa que logo percebi como marca de seu teatro, era a maneira como o dramaturgo (e todos os contemporâneos, constatei a seguir), tratava a unidade de Tempo. No teatro ibérico da época não há separação cênica para indicar a passagem de tempo. As cenas vão se sucedendo num fluir contínuo, sem cortes. Numa mesma estrofe o tempo pode transcorrer uma noite, dias, meses, anos. Exemplo:

Dormirei, dormirei,

boas novas acharei.

São João no ermo estava,

e a passarinha cantava.

Deus me cumpra o que sonhei.

A título de curiosidade, apresento a seguir a lista dos participantes da primeira encenação do Grupo. Maria Salete Busnardo – Moça (Criada); Marilú Silveira – Constança (Ama); Brás Ogleari – Castelhano; Helio Silva Altieri – Lemos; Manoel Moacir Werner – Marido; Sônia Berto – Figurino; Leika Puccynsky – Coordenação; Jorge de Souza Teles – Direção; Cecilia Teixeira de Oliveira Zokner – Supervisão. A apresentação aconteceu em Curitiba, no Círculo de Estudos Bandeirantes, às 21 horas do dia 17 de novembro de 1970.

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