Alma desdobrada, cap. 149, 150, 151, 152 e 153.

Alma desdobrada, capítulos 149, 150, 151, 152 e 153.

 

149.

          estou pensando mais ou menos assim: a gente reclama tanto dos pais e das mães, por nossa condição de órfãos ou rejeitados ou mal-amados ou inseguros. não seriam a orfandade e a rejeição e o mal amor e a insegurança, as gotas maiores da taça da vida? isto é o que sinto agora. sinto que fui mal amado e rejeitado e feito órfão e que posso jogar chamas de culpa no pai e na mãe e em alguns irmãos. e, no entanto, o problema é meu e não deles; posso chamuscá-los e enegrecê-los com minha fúria e meu desgosto e minha vingança. mas não redimirei uma única das penas caídas de minhas asas e corro o risco de que as asas nunca se encorajarão a outro vôo. eu que cuide de mim!

          eu que cuide de mim.

          fantasmas odiados não me darão asas perdidas. fantasmas saudosos não me reensinarão a voar.

          rejeição é parte da condição humana!

          rejeição é animal e o homem é animal.

          quero deixar de falar que essa bestial rejeição de que fui vítima, venha a ser responsável por eu me sentir escravizado à terra da dor.

          construa eu sozinho minhas novas asas, colhendo as penas soltas no chão, essas penas inúmeras caídas dos sofrimentos alheios e de meus próprios sofrimentos. e trace eu no céu o projeto de meu vôo alucinado. e mergulhe no vazio, sozinho, no vazio daquilo que pode ser a loucura de viver a vida que é livre.

          ninguém tem culpa de minhas dores. ninguém vai pagar preços de dívidas inexistentes.

          isto se parece com algo que pensei há um tempo atrás, sobre as responsabilidades dos filhos e dos povos junto a pais e governos: se conheço a causa da dor, sou responsável por sua cura.

 

150.

          W…, faltaria ainda falar alguma coisa de você? acho que me basta dizer que você foi um dos grandes amores de minha vida. foi uma vitória de felicidade, um dia, ouvir você falar, aos doze-treze anos: quando você for morar em …, vou morar com você.

          é estranho que eu fale tanto de amar e não tenha observado ainda como é importante ser amado. o amar me modifica, o ser amado, não. mas é o ser amado que diz ao meu destino que o seu objetivo tem alguma razão a mais.

 

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Alma desdobrada, cap. 140, 141, 142, 143, 144. 145. 146. 147 e 148.

Alma desdobrada, capítulos 140, 141, 142, 143, 144. 145. 146. 147 e 148.

 

140.

          namorei B… às escondidas. era uma situação que me agradava porque, sendo ela casada e vizinha, não podíamos alimentar a relação com o tempo integral. eu não estava apaixonado. eu não estava nada apaixonado. na realidade, pesquisava-me. pretendia saber até onde chegaria. um dia, entre abraços e beijos, senti uma ereção. as coisas se encaminhavam como eu queria.

          fazia experimentos comigo mesmo.

 

141.

          matei aula e fui no cinema santa alice assistir um filme: os doze trabalhos de hércules. tinha dezesseis anos e estava no quarto ano ginasial. os argonautas prepararam o barco, os remadores iniciaram seu ritmo compassado, orfeu, o cantor, entoa um hino à deusa anfitrite e o barco principia seu flutuar em direção a incríveis aventuras. termina o filme, eu estou profundamente tocado. algo se mexe e se convulsiona dentro de mim. aqueles deuses todos me perseguem. tomo o bonde, começo a pensar no deus que diziam ser o verdadeiro. alguma coisa muito clara soa assim na minha cabeça:

          o homem de hoje não pode ser o único certo, contrariando todas as outras crenças. ou todos os deuses existem ou não existe nenhum deus.

          apavoro-me, sinto calafrios, meu respirar fica profundo e percebo que meus pés e mãos começam a formigar. estou muito assustado porque é uma situação nova na minha vida. tenho a impressão de que estou morrendo ou sendo possuído por um espírito. o formigar aumenta, a circulação está aceleradíssima e toda a energia do meu corpo parece querer concentrar-se no meu estômago ou próximo dele.

 

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Alma desdobrada, cap. 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137 138 e 139.

Alma desdobrada, capítulos 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137 138 e 139.

 

130.

          minha mãe, como é doído pensar em você. eu sempre me lembrei de uns olhos tristes e um sorriso cheio de um camuflado sofrimento, quando me lembrava de você. queria que suas dores alimentassem o que eu pensava ser saudade. então, na terapia, falando de você, descobri que você não me quis, não deve ter me querido, me prendendo na mais desastrada grade da rejeição.

          o que eu nunca quis entender, o que é difícil entender, é que mãe, você, qualquer mãe do mundo, é o conjunto de um milhão de criaturas. cada coisa que diziam de você, minha mãe, era uma criatura a mais que vinha pousar no pombal do meu entendimento. e eles falavam o tempo todo de você, contavam histórias de dor e traição e choro e luta e em todas estas histórias era você a vítima, a portadora da chama da bondade, a responsável pelo ato heróico. e todas essas imaculadas pombas-mãe vinham se acumulando no pombal daquilo que foi se transformando em conhecimento dentro de mim, virando parte de mim, acabando por ser eu mesmo.

          e venho, no ato de rever e decifrar o meu passado, com olhos de criança que quer aprender, venho a perceber que estas pombas todas, brancas e de doce memória, defecam verdades malcheirosas que se acumulam. e, cavalariças de áugias feitas para dulcíssimas lembranças, ameaçam sufocar o resto da vida que falta, tornando insuportável e impossível, uma existência sem choro infernal.

          e venho, mais, descobrir que, se fizeram dentro de mim mil imagens do que pode ser mãe, mãe, mãe de verdade, mãe minha, seria aquilo que foi minha mãe, aquilo que senti mãe, aquilo que ficou mãe dentro de mim.

          pomba ou dragão. mas a minha mãe.

          não simplesmente a minha mãe deles.

 

131.

          meu primeiro livro foi uma tragedinha chamada caim.

 

132.

          há tanto tempo não falo de Z….

          Z….

          meu amigo.

          tenho uma vida inteira para falar de você.

          há mil e trinta e três coisas para falar de você. há muitas outras para calar sobre você.

          falar ou calar, o que é isto de um coração se arrebentar tanto por dentro, porque exista alguém que venha a ser assim tão amado?

          que coisa é esta de amar?

          não sei o que faço nem o que digo. nada sei.

          Z…. meu amigo.

 

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