Alma desdobrada, cap. 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211 e 212.

Alma desdobrada, capítulos 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211 e 212.

 

205.

          vinho, vinho, na minha frente você tem a força de uma pessoa. ficarei a olhar você um tempo, namorando-te com os olhos. depois não resistirei e pegarei o teu corpo-copo. primeiro, delicadamente, para sentir que você existe e é real. depois, já ansioso por te provar.

          então, não haverá defesas para o que há de vir. para que eu te sorva, é preciso que eu te olhe, te sinta, te pegue, te leve à minha boca. precisarei excitar a tua loucura, para que ela faça despertar em mim a minha loucura e a minha embriaguez.

          depois do primeiro gole, haverá a ânsia do gole seguinte e sei que você estará ainda à disposição de minha volúpia lírica.

          eu te provo e enlouqueço. não sei mais de mim. não sei o que faço, não sei o que quero.

          não sei de respostas nem de perguntas.

          sou. faço o que você me manda. quero o que você me quer.

          dormirei de seguida. teu cheiro estará em mim um tempo, espalhado no meu sangue pelo teu sangue de frutas machucadas. há de chegar o tempo e a hora e a vez do esquecimento. dias após, lembrarei do nosso convívio cheio das verdades mais verdadeiras.

          vinho, vinho, no meu desejo você tem a força de uma pessoa.

          beber essa tua taça é como beber o teu orgasmo.

 

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Alma desdobrada, cap. 202, 203 e 204.

Alma desdobrada, capítulos 202, 203 e 204.

 

202.

          de todos os fatos que me aconteceram, eis então o mais mortalmente inesquecível; minha súbita paixão por aquele menino do pedro segundo.

          algumas vezes, um acontecimento vem a ser tão fulgurante que empalidece o que está ao seu redor. outras vezes, dá-se que o acontecimento não venha a ter assim tanto brilho, mas seja capaz de provocar mudanças ou novas constatações; estes acontecimentos se tornam coisas do sempre.

          se penso em meus primeiros amores, se penso nessas minhas todas únicas paixões e penso a seguir naquilo que senti por nilton (esse, o nome dele), o adolescente de olhos verdes e gestos femininos, concluo fácil que a paixão por esse menino foi frágil, quebradiça, passageira e menor do que tudo que veio em seguida. mas que grandezas e que terrores e que abismos e que serpentes se escondiam atrás daquela pequena paixão passageira e menor?

          eu amei nely, depois rejane, depois as meninas gêmeas não gêmeas no meu segundo ginasial. sabia o que era isto de amar. sabia o que era isto que pensava ser amar. se fosse escrever sobre o amor, repetiria coisas já escritas: que sofria e era feliz ao mesmo tempo; que ansiava por uma presença doce; que não se desligava o coração de um bater convulso e mais desritmado; que meu mundo se modificava e assim modificado adquiria um significado de crescimento, força e conquista. era isto o que eu sentia. as coisas iam e vinham e cada nova paixão era mais violenta que a anterior.

          dizer daqueles amores, violentos, não seria forçar a expressão, fazer exercícios de retórica; aquela era a violência máxima a que eu resistiria. sentir mais, seria fragmentar-me.

          então, numa tarde, eu distraído, quão distraído estava!, fui apanhado de surpresa. então, numa tarde, me sinto diferente, assim como que grávido de uma nova e forte emoção. um pequeno júbilo ameaçou esclarecer-se dentro de mim e transformar-se em grande júbilo.

          eu lembrava daqueles olhos e os achava belos e amigos; queria conhecê-lo melhor; ele me olhava de longe e piscava lentamente, como uma sereia sedutora. eu sentia crescer dentro de mim o fogo, o braseiro, a luz do que sabia ser um novo amor. eu imaginava poder aproximar-me dele e me transformar no seu novo colega. meu coração estava apossado de líricas canções impregnadas em loucura. eu pensava que tinha alguém a satisfazer em mim a ânsia de um outro, dentro do meu viver.

          era feliz porque amava. pensava nele o tempo inteiro. a quem amo?, perguntei-me. que duas constatações tão diferentes são essas, que ameaçam juntar-se? eu amo! mas ele não é uma menina!

          estava aflito. como um peixe preso no anzol!

          houve um dia uma pena de morte que consistia em amarrar os braços do condenado num cavalo e as pernas em outro cavalo. os cavalos eram chicoteados e a pessoa era partida ao meio.

          era como esse condenado, arrebentado em duas direções opostas, que eu me sentia.

          e chegou o momento em que a verdade se mostrou clara e condenatória: eu amava um menino.

          e um choro aterrador explodiu dentro do meu coração.

          e eu fui obrigado a chorá-lo.

 

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Alma desdobrada, cap. 198, 199, 200 e 201.

Alma desdobrada, capítulos 198, 199, 200 e 201.

 

198.

          meu pai, meu pai!

          e agora?

          teríamos ainda contas a ajustar?

          nada te devo, nada te cobro.

          o amor que descobri em você pende agora invisível no meu peito, como uma medalha adotada e estimada.

          te descobri gente, e isto teve que ser depois de tanto tempo.

          não tive oportunidade de te dar o abraço final.

          durante muitos anos você era um velho que eu esquecia na casa dos outros irmãos e eu pensava que não o amo e não me faz a mínima diferença que eu o veja ou não.

          agora, porém, eu te sinto como elo de alguma corrente que me impulsiona ao meu futuro e me segura às origens do homem.

          quando penso em você, agora, penso que você me é o que sou para leonardo e bruno:

          minha causa e ao mesmo tempo o vazio inútil que existiu antes de mim.

          para mim, nada importa no antes e no depois de mim: mas para o universo, sim. posso inverter essa afirmação.

          meu pai, meu pai.

          apareça e me olhe ainda pela última vez. com o seu casaco enorme, as calças acima da cintura, o eterno chapéu e o olhar manso e humilde, que me fala de apagadas e distantes constelações.

          pare um pouco assim, não se vá ainda.

          fale com sua voz rouca e frágil, nem que seja em italiano. sim, pai, fale comigo em italiano. diga arrivederci, sorrindo e saia do trem. mas antes olhe para trás que quero ter certeza de que é você.

          eis o espantoso e sobrenatural fato que me aconteceu em 1980, na itália:

          é noite, estou num trem que vai de lucca a pisa. é um vagão antiquíssimo, antiquíssimo. quando, nas estações, as portas se abrem, entra uma fumaça densa e azulada. o trem caminha lento e as janelas estão transpirando suores opacos. nada se vê lá fora. todo o universo se concentrou nesse velho vagão de madeira. eu me encolho de frio e cansaço, a alma perdida na solidão mais agradável. uma voz de velho, que fala sem parar, me chama a atenção. olho pra frente e vejo, de costas, um velho parecido com meu pai. o pescoço fino, os cabelos branquinhos e um chapéu. então, ele se levanta, fala mais alto, e fala com a voz do meu pai. senta-se mais próximo de mim e é como ver meu pai falando em italiano. o mesmo rosto, a mesma roupa, a mesma voz! gesticula feliz, conta histórias, sorri e olha para todos os lados. o trem pára, ele se levanta, tendo aos ombros o casacão de meu pai. olha para mim, eu sorrio apavorado, ele me diz arrivederci e se vai, desaparecendo rápido no vapor azul.

          estou feliz, mas aterrado.

          lembro agora dos olhos do meu pai. não mais humildes, mas terríveis olhos de falcão por sobre o nariz adunco. foi assim que o velho italiano me olhou, ainda que sorrisse.

          meu pai italiano me olhou pela última vez, arrivederci, arrivederci, eu respondi trêmulo e aterrorizado pela semelhança total. ele desapareceu no azul.

          arrivederci, meu pai. adeus. requiescat, requiescat.

          in pace.

 

199.

meu pai, meu pai,

onde é que você esteve?

e que nuvem escura é essa

que esconde a antiga luz do seu olhar.

 

filho, venho de longe,

de estranhas terras onde se sofre e se chora!

mas,

para não fazer estremecer teu coração,

direi apenas que visitei

a terra dos homens.

 

meu pai, meu pai,

onde é que você esteve?

e que carga de desastre é essa

que pesa nos teus ombros?

 

filho, venho de longe,

de estranhas terras onde não se sabe quem se é,

nem por que se chora!

mas,

para não fazer estremecer o teu abraço,

direi apenas que visitei

a terra dos homens.

 

meu pai, meu pai,

onde é que você esteve?

e que máscara é essa que esconde aquele que é meu pai,

a ponto de ficar difícil de te reconhecer,

o que faço tão somente com o coração cheio de dor.

 

filho, chego de longe,

de estranhas terras que não se entende.

aprendi que é viagem sem volta.

é toda uma vida em que só se aprende a viver.

e aprendi que não te posso ensinar esse aprender.

e se aperto essa vida na mão

e espremo com coragem,

o que fica me é tanto e tanto,

que ainda queima meu rosto

e ainda brilha e estala

cheio de vida.

 

e aprendi que certas perguntas

não têm respostas!

e certas respostas

não matam a sede!

e certas sedes

são como o poço sem fundo!

e aprendi coisas mais

que já esqueci.

esqueci-as no caminho que me trouxe até você.

 

mas,

para não fazer estremecer

tua alminha faminta,

não direi que foi essa a herança que recebi.

nem que é esse o mesmo legado que te entrego;

direi apenas que visitei

a terra dos homens.

 

meu pai, meu pai,

você me esconde coisas,

querendo me proteger.

 

mas agora já é tarde!

 

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