Alma desdobrada, cap. 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169 e 170.

Alma desdobrada, capítulos 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169 e 170.

 

163.

          há uma ave encarcerada na gaiola do meu coração. está aflita e medrosa. tem o peito machucado e as asas cansadas. feriu-se de tanto voar contra as grades do ferro já enferrujado. o sangue envenenado e preto empapou-se e pesa-lhe nas penas sujas. escorre grosso e coagulado, misturando-se à sujeira fedorenta que lhe gruda nas unhas afiadas.

          eu queria soltá-la, gostaria muito de soltá-la.

          mas não tenho a chave.

          há uma ave encarcerada na gaiola do meu coração. seu bico rachou de tanto bater no cadeado de ouro. seu biquinho fendido dói muito e ela pára de súbito, arfa, estremece ofegante, cambaleia e recomeça os ataques. ela sabe que é ali, no cadeado de ouro, que está escondida a sua liberdade. ela sabe que essa chave mágica é, mais que tudo, a chave do mistério.

          eu queria abrir o cadeado. gostaria muito de abri-lo.

          mas não tenho a chave.

          há uma ave encarcerada na gaiola do meu coração. algumas vezes, febril e mole, fatigada dos vôos inúteis e das bicadas dolorosas, ela se encolhe, murcha, se arrepia e solta um pio agourento e medonho, que cresce por dentro e vem ferir por inteiro os ouvidos da minha razão. é mais que um gemido, é um grito de morte, é uma explosão que ameaça fazer ruir toda a minha segurança. e eu, cá de fora, febril e mole, fatigado de vôos e bicadas, me encolho, murcho, me arrepio e choro.

          eu queria soltar-me. gostaria muito de soltar-me.

          mas não tenho a chave.

 

164.

          saí do rio de janeiro, finalmente. já estou no ônibus, com destino a curitiba. devo chegar às oito da manhã, o ônibus adianta-se e há uma parada em que, olhando pela janela, vejo uma igreja. imagino que falta muito ainda, deito-me de novo mas alguém grita que já chegou.

          já?! não dar-se-ia de eu poder esperar um pouco mais?

          por que certos destinos se nos apresentam tão antes de sua hora?

 

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Alma desdobrada, cap. 158, 159, 160, 161 e 162.

Alma desdobrada, capítulos 158, 159, 160, 161 e 162.

158.

          os primeiros meses do ginásio foram o período mais atormentado da minha vida. hoje, percebo as diferenças que machucavam, desvendo suas causas, descubro suas justificativas e vislumbro suas necessidades: aqueles inseguros adolescentes, dependentes de uma auto-afirmação como machos, carentes de uma confirmação de suas supostas normalidades, temerosos da possibilidade de virem a ser mais mal amados do que mal amados já eram, aqueles infelizes descobriram onde se firmar, para não morrer afogados nas suas vidinhas de merda. alguém que podia ser criticado, ridicularizado, gozado, pisoteado, para presentear-lhes a eles com a coroa das mil redenções. esse alguém era eu. e o momento era o da chamada, porque, ao responder, eu falava – presente – baixinho. tenho certeza de que não falava com afetação nem de modo feminino. só falava baixinho. para eles, todavia, esse era um ponto fraco, inda que não fraco. esperavam atentos o momento e, deflagrada a discreta explosão, um murmúrio quente pairava um momento sob suas cabeças de meninos perdidos.

 

159.

          Z… à minha espera na porta do teatro. conversamos. tranquilamente. nenhum terremoto ameaça meu peito. nenhuma águia vem cantar que arrancará pedaços de minha carne com seu bico afiado. sem terremotos nem águias, eu pairo diante de você, menino, estranhamente, a ouvir e a falar. os passantes se chegam, entram, cumprimentam rapidamente, percebem que estamos juntos ainda uma vez. não me preocupa o que poderiam pensar os passantes. mas penso que me envaidece ser visto com você. por algumas pessoas, principalmente. mas, claríssimo, não por vaidade te quero comigo, e sim, porque te quero comigo.

 

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Alma desdobrada, cap. 154, 155, 156 e 157.

Alma desdobrada, capítulos 154, 155, 156 e 157.

 

154.

          houve um período de minha vida em que eu queria parar de crescer. crescer era abrir as portas a tanta coisa perigosa e desagradável! sonhava, cheio de nostalgia, com habitar a terra de peter pan. peter pan não soube me segurar em sua gruta. o deus tempo arrebatou minha alma e, através de sangramentos e lágrimas, a maioria deles camuflados e reprimidos, eu cresci. certo estava o tempo com me ter transformado em gente grande. hoje descobri que é difícil crescer, mas só o crescer me leva à terra da liberdade. terra, não gruta. terra do hoje, não terra do nunca.

          o que é isto de terra da liberdade?

          é que cada dia me sinto mais senhor do meu destino. sei que posso morrer num acidente ou perder um filho, situações que não admitem a mínima luz de liberdade. o meu dia a dia, porém, naquilo que não gravita em torno do acaso, me deixa seguro de estar tecendo opções de ser ético por conhecimento e de evitar ser imoral por ignorância.

          como eu gostava da história de peter pan! foi o único álbum confeccionado na infância que não tive coragem de destruir.

          e, no entanto, algumas vezes me sinto ainda peter pan.

          tempo, venha devagar, por favor. por favor, devagar, pra não doer tanto!

          por favor…

 

155.

          fizemos um jogo, eu e B… sinto que isto tenha acontecido: minha atração era diminuta e ela via em mim a possibilidade de me tornar um iniciado através de seu corpo. as coisas foram se combinando lentamente, me dá preguiça de contar detalhes, inda que os tenha todos na mente. deu-se, então, que um dia resolvemos que estava na hora de irmos para um encontro amoroso. você sabe onde? um amigo me falou de um hotel. nunca fui num lugar destes. pode ser amanhã? sim.

          se me pergunto agora, o que significaram para mim aqueles orgasmos, diria ainda uma vez que os recordo como se fossem complicadas masturbações que precisassem de antecedentes, tais como, fazer a corte, escrever expressivas cartas mentirosas, nas quais eu acreditava em pelo menos metade da metade, dar beijos e abraços e fingir um interesse bem cuidado, que não me alterava as entranhas.

          eu poderia dizer que foi um momento forte, que houve no coração uma concentração de vida e na alma uma canção desfraldada à força pelos vendavais. nada disto. eu me emocionava muito pouco. hoje, tanto tempo passado, depois de tantos encontros amorosos, em que luzeiros descem do espaço para queimar aquilo a que eu poderia chamar de eu, vejo que aqueles encontros não eram encontros.

          havia tão só dois corpos sem sentido, que se desnudavam lentamente, havia pastilhas de hortelã na boca. e um tocar-se discreto e um momento em que nada mais pode acontecer, a não ser a penetração e o gozo.

          se o gozo não é absoluto, não merece ser relembrado. tão melhor seria sonhar com algum outro gozo, ainda que muito pouco provável.

 

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