CONTA OUTRA VÓ 14. A MORTA-VIVA

a morta viva

desenho de Ricardo Garanhani

Nota: O sepultamento de pessoa ainda viva, tendo os sintomas de morta, sempre foi tema de narrativas terríveis. Allan Poe (1809-1849), como não podia deixar de ser, tem duas (Premature Burial e The fall of the House of Usher); na introdução da primeira, ele apresenta casos famosos em sua época. Numa novela cheia de emoções, Selma Lagerllöf (1858-1940) também narra a história de uma moça que acaba sendo resgatada do sepultamento (En herrgårdssägen -1899).
Uma observação que cabe aqui, também, é de como eram simples os contos de minha avó. Os analfabetos contavam e recontavam as historinhas e aos poucos ela se reduzia a uma matéria prima nua e crua, mantendo intacta apenas a essência do acontecido.

Era uma vez… um fazendeiro tinha uma filha. Ele era um viúvo muito rico e tinha muitos escravos e escravas e gado. Ele só tinha essa filha e gostava muito dela. Ela estudava música, ele trazia professores do litoral, e ela ia ficando prendada.
Vai que um dia a moça morreu. O fazendeiro ficou apaixonado e quase morreu de desgosto. Mandou fazer uma mortalha branca, muito rica, e pediu uma coroa de flores de laranjeira e um buquê e um véu de noiva. Naquele tempo as moças que morriam virgens não eram enterradas de roxo mas iam com uma mortalha de noiva, muito branca e muito linda. Aí o fazendeiro mandou que colocassem no caixão todas as jóias que eram da familia porque já não tinha mulher e nem filha e não queria vender nada daquilo.
Então as velhas lavaram a defunta, pentearam os seus cabelos, vestiram a mortalha que era o vestido de noiva e colocaram o buquê na mão dela e o véu na cabeça e a grinalda por cima do véu. Depois colocaram na moça as pulseiras e os colares e os anéis e os brincos.
Ela mais parecia uma filha de reis, de tão maravilhosa que ficou.

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CONTA OUTRA VÓ 13. O PADRE

o padre

desenho de Ricardo Garnhani

Nota: A segunda novela do Decameron de Boccacio (1313/1375), entre algumas outras, mostra a devassidão no comportamento dos religiosos católicos no século XIV. Parece que nem a contra-reforma conseguiu alterar a moral de muitos padres.
Esta historinha, na verdade uma debochada anedota, exemplifica, de modo cru. um tipo de comportamento clerical que floresceu (ou espinhou) até metade do século passado. Muito disso é resultado de um costume da maioria das famílias com algumas posses: um dos filhos era destinado ao sacerdócio, desrespeitando-se individualidades e vocações. A vítima era a última a manifestar alguma vontade.

   Era uma vez um padre muito sem-vergonha. Quando ele ia confessar as mulheres, ficava perguntando indecências pra elas. Mas ele preguntava de um jeito muito matreiro, que mais parecia que era mesmo confissão. Aí, quando ele entendia que a mulher tinha pecado contra o marido, ele conversava e conversava e acabava dando um jeito de seduzir a coitada. Umas gostavam e acabavam se acostumando, de jeito que nas confissões aconteciam outras coisas. E assim ele ia vivendo.
Aconteceu de mudar praquela cidade uma mulher casada com um viajante. Ela era muito bonita. No sábado foi à igreja e se apresentou pro padre, que queria confissão. Na verdade o que ela contou foi um bocado de pecadinhos bobos. Ele mandou que ela rezasse ave-maria e credo e ela foi embora.
Mal sabia a coitada que tinha acendido os desejos na alma do padre pecador. Naquela noite ele não conseguiu dormir. Só pensava na mulher bonita e virtuosa e resolveu que teria que dormir com ela porque se não ia ficar maluco.

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CONTA OUTRA VÓ 12. O LADRÃO LADINO (quarta parte – origens) A História, de Herodoto

      Nota: Conforme eu tinha dito na nota inicial deste conto, sua parte final sempre foi intrigante porque nunca encontrei uma variante em outro livro. Finalmente, há dois anos, achei uma narrativa que certamente é a sua origem. É o capítulo 121 do segundo livro da História, de Heródoto (480-425aC).
Pode-se pensar em dois aspectos sobre essa curiosa origem. Primeiro, acerca das semelhanças e divergências entre um conto egípcio, recolhido por um grego há dois mil e quatrocentos anos mais ou menos, e o conto repetido sempre com as mesmas palavras, por uma analfabeta do interior de Minas Gerais, no Brasil. É muito provável que minha avó nada tenha acrescentado de importante na sua narração. Fica patente pois que o tesouro e a armadilha, o corpo em pedaços, os guardas vigiando, o rei e sua filha, vieram dos tempos antigos. Na variante de minha avó, em vez de irmão, surge o pai. Em vez de burricos, os bodes fedorentos. E a estranha intromissão de uma negra feiticeira, reminiscência do período em que havia escravidão. No caso da princesa, certamente o cristianismo fez a devida correção ética, tirando-a de um bordel e fazendo-a bordar uma toalha de linho.
O segundo aspecto é imaginar o lento caminhar dessa história até chegar aos dias de hoje. Daria para dizer que as alterações ocorridas em dois mil anos chegam a ser desprezíveis. Do Egito para a Grécia, dali para a Europa Ocidental e, com os portugueses, eis o conto vindo para o interior brasileiro. É de se supor que muitas vezes esta historinha viajou no boca-a-ouvido e não através da escrita.
Devo mencionar ainda que a prática de colocar soldados para vigiar cadáveres de condenados à morte aparece por vezes na literatura ocidental. O exemplo mais conhecido está no conto A Matrona de Éfeso, do Satíricon, de Petrônio (?-66). É um dos momentos mais encantadores de um filme de Federico Fellini (1920-1993).

    A narrativa abaixo foi feita a partir de texto em Esperanto, da versão integral da História de Heródoto, traduzida do grego antigo por Spiros Sarafian, conforme publicado em 2006 pela Editora “Silloges” – Argiris Vurnas, de Atenas, Grécia. O tradutor detém os direitos autorais e me autorizou por escrito a apresentar seu texto em Esperanto.

 


121. Após Proteo, foi rei Ramsesnito (1), que mandou fazer o vestíbulo do santuário de Hefesto, voltado para o ocidente. Em frente ao vestíbulo ele levantou duas estátuas com a altura de vinte e cinco côvados. A estátua que está no lado norte é chamada de Verão e a outra, que está no sul, é chamada de Inverno. Os egípcios adoravam e honravam a que é chamada Verão mas com o Inverno faziam o contrário. Disseram-me que este rei tinha muitas riquezas (2) em dinheiro, e que nenhum rei que veio posteriormente conseguiu superá-lo.

    Como este rei quisesse proteger seus tesouros, ele ordenou que fosse levantada uma construção de pedra. Um dos lados dessa construção era o próprio muro externo do palácio.

    No entanto, o homem responsável pela construção teve uma idéia: fez o projeto de tal maneira que uma das pedras podia facilmente ser tirada pelo lado externo do muro, por duas pessoas ou uma apenas. 

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