Rubaiat, de Omar Khayyam, de 61 a 75

Rubaiat, de Omar Khayyam, de 61 a 74

traduzido por Matos Pereira. Editora Jangada, Rio de Janeiro, 1944. 

 

LXI

Tu, que de precipícios e de vinhas

minha estrada semeaste com cuidado,

não poderás, se é Predestinação,

imputar minha alma ao vil pecado.

 

LXII

Sonhando, quando a aurora pincelava

o céu, de dentro da taverna, ouvi:

“Acorda, mocidade, empunha a taça,

E beba, enquanto há vinho para ti.”

 

LXIII

Se a bela Iran morreu, e a taça de ouro

do rei Jamshi deixou de adivinhar,

que importa! A uva ainda nos dá vinho

e ainda existe um jardim à beira mar.

 

LXIV

Emudeceu David, porém, escuta

o alegre rouxinol cantarolar.

– “Vinho, rosa, vinho” e fica olhando

um rosto branco, aos poucos, carminar.

 

LXV

Enche a taça e, no ardor da primavera,

deixa o remorso antigo calcinar.

A ave do tempo tem um quase nada

a percorrer, e já se encontra no ar.

 

LXVI

Quanto tempo em pesquisa inoperante

de “ser” e de “não ser” a gente estraga.

Uva, fazes a vida menos triste.

Louvado o vinho teu, que me embriaga.

 

LXVII

Vós sabeis desde quando minha casa

para um novo conúbio preparei:

expeli a razão de minha cama

e a filha da Parreira desposei.

 

LXVIII

Querida, bebe um pouco mais de vinho.

Teu rosto tem a palidez da lua.

Fica mais triste, Omar, Olha! Um sorriso

nos lábios dela, aos poucos, se insinua.

 

LXIX

Se do ”Ser” e “Não Ser” garantir posso,

tenho certeza, sei, não adivinho.

Em tudo aquilo que aprender eu pude,

só fui profundo numa coisa: o vinho.

 

LXX

Que importa a mim que a devorante chama

do amor, ou do ódio, me consuma inteiro.

É melhor ver o vinho na taverna,

que perdido na adega de um mosteiro.

 

LXXI

Mais tarde, pela porta da taverna

forma angélica entrou, devagarinho,

trazendo um vaso ao ombro e disse: “Prova.”

E, obedecendo, eu vi que era – do vinho.

 

LXXII

O vinho, com sua lógica absoluta,

pode todos os dogmas refutar.

Alquimista sutil, pode, num triz,

nosso metal, em ouro transformar.

 

LXXIII

Enche a taça! Que vale repetir

que o Tempo voa sob o pé desnudo?

O amanhã que ainda vem e o Ontem que foi,

é melhor esquecer – pois Hoje é tudo.

 

LXXIV

Colando a boca sequiosa à taça,

quis o arcano da Vida conhecer.

E a taça me falou: “Enquanto vives,

resta-te o lenitivo de beber.”

 

LXXV

Penso que a taça com que delicada

ironia falou, também viveu.

Antes do ósculo meu, ah!, quantos, quantos,

beijos de desgraçados recebeu. 

Visitas: 165

Desistória – capítulos 9 e 10 (final).

Desistória – capítulo 9.

 

 

Ai, ai, ai dos que moram sobre a terra.

 

            9. crepúsculo de dor.

 

            desci a montanha de neve. não tenho idade. nunca terei. um espírito insano me condenou a presenciar estes fatos e participar desta história.

            fecho os olhos e vejo uma multidão atribulada a correr entre casas enormes. as criaturas estão escravizadas a máquinas imensas e inúteis. algumas dessas criaturas estão vivas.

            fecho os olhos e vejo uma catástrofe. explosões e morte. há um simultâneo silêncio de alguns dias. dos buracos saem criaturas sujas de negro. algumas dessas criaturas estão vivas.

            fecho os olhos e vejo um grande formigueiro, ordenado e correto. todos executam suas pequenas tarefas, pertencentes a uma grande tarefa: manter vivo aquilo que está morto. as criaturas trabalham. algumas dessas criaturas estão vivas.

            fecho os olhos e vejo discussões. as criaturas querem convencer as criaturas. amordaçam o instinto da vida e liberam o instinto da morte.

            fecho os olhos e vejo guerras.

            vejo guerras.

            abro os olhos e vejo uma tribo trabalhando seu cobre e seu bronze. vestem-se de maneira vistosa, cultuam seus deuses, elevam seus templos e palácios. escravizam os semelhantes. cada vez que conquistam um povo, destroem a todos. a vida humana não tem valor.

            ruem suas construções de tijolos e de pedras. quebram-se seus carros. arruínam-se suas pequeninas embarcações. fogem para a vida selvagem alguns dos seus animais domésticos. esquecem-se de semear a nova seara. seus filhos discutem e se dividem e procuram seus próprios caminhos. sacrificam seres humanos aos seus deuses, para que sucedam bem os seus planos.

            e mais guerras.       

            chegados aos lagos e mares mais mansos, elevam suas palafitas. nas toras de madeira, cavoucam o barco frágil. com fibras de vegetais, executam redes para pescar. das peles das caças fazem cobertas contra o frio. queimando o barro preparam vasilhas rústicas. quando têm tempo, sulcam no barro úmido desenhos simples. não se lembram que os avós dos avós derretiam metais. fazem suas armas com pedras que esfregam em pedras mais duras.

            espalham-se em pequenos grupos, pelo mundo cheio de perigo.

            ainda guerras.

            a vida é difícil. frio, fome, feras, espíritos que entram no corpo e matam com dores, inchaços, arrepios, prostração. os que morrem são enterrados, para que os animais não os devorem. mas eles aparecem em sonho, enchendo de terror o acordar. vão ao local onde o morto foi enterrado e o cobrem de pedras, para que ele não fuja e venha perturbar a noite. fazem de barro os pequenos simulacros dos que se foram, para que eles fiquem tranquilos. as mulheres estão sempre barrigudas. mas as crianças morrem por um nada. as mais peludas resistem mais ao frio.

            quando brigam, os que saem vivos se separam em bandos menores e se espalham mais ainda.

            não se lembram mais de como eram as casas dos lagos. entrar no lago é ser devorado pelos monstros. fogem e acham cavernas. vivem em pequenos grupos. espíritos terríveis habitam o mundo lá fora. desenham animais nas paredes. fabricam estatuetas de fêmeas inchadas, seios, nádegas, barriga.

            e guerras.

            falta água. o rio secou. o bando avança lento, as narinas ao vento, sentindo cheiros. qualquer ruído os enche de terror. as mães protegem seus pequenos. quando encontram, comem raízes, mel, frutas. armam-se com pedaços de madeira pesada. um chefe, à frente, avança encurvado. as narinas farejam. de repente um cheiro distante de água. os olhos brilham. por meio de grunhidos avisam-se uns aos outros. alegria, satisfação. ao transpor a colina, porém, vêem o brilho da água mas sentem também um cheiro diferente, ameaçador, inimigo. descem cheios de furor. os pequenos ficam à espreita, lá no alto, os olhos arregalados de espanto e horror. o bando inimigo avança. medem-se. farejam-se. pulam e recuam. súbito, um encontro de paus no ar, o ruído excita, todos se lançam à frente e se batem e se destroem e quebram-se as pernas e os braços e os crânios.

            os pequenos, lá no alto, voltam em desabalada carreira. os mais frágeis vão morrendo, comem o que encontram. de medo dos perigos, sobem em árvores. dias e noites a fugir e a procurar comida e água. os pelos aquecem.

            o tempo parou.

            é um eterno presente.

            um espírito insano me condenou a presenciar estes fatos e participar desta história. eis o que vi:

            uma fêmea caminha sobre a vegetação. está excitada. os cheiros a entontecem. qualquer ruído a assusta. tem o sexo molhado e sente contrações fortes. apalpa-se, umedece os dedos, cheira, estranha. as narinas arfam. então surge um macho. ele também excitado, impetuoso, o cheiro diferente. assustam-se, gritam, correm, vigiam-se. aproximam-se gemendo. arreganham-se os dentes mas avançam. inimigos mortais que se buscam. dois medos que se aproximam um do outro. olhos cheios de um ódio receoso. tocam-se, assustam-se, gritam, pulam. aquietam-se. nova tentativa. o macho arreganha as unhas e os dentes. seu sexo está crescido, furioso, grande, duro, com um cheiro fortíssimo. a fêmea tem medo. gemendo, os dentes afiados à mostra, curva-se, põe-se de quatro, exibe suas carnes molhadas. o macho sente o impulso, segura-a nos ombros, morde-a de jeito a subjugá-la, inicia uma série de movimentos e ao sentir o pênis encontrar o orifício, acelera, geme, enfia embrutecido, o baixo ventre trabalhando por si mesmo, convulsivo. uma pequena explosão, ele retira e se prostra no chão. ela se encolhe e descansa.

            um aviso longínquo não chega até eles: de que existe olhar, sorriso, abraço, carinho e beijo.

            um espírito insano me criou para que eu viesse presenciar estes fatos e participar desta história. eis o que vi:

            a fêmea está intranqüila. catou gravetos, folhas, farejou, afastou-se um tanto do resto. não muito, para não correr perigo, não pouco, para não ser incomodada. fez um ninho. algo se move dentro dela. está cansada, lenta, um peso ameaça escorrer por entre as pernas. suas mamas estão inchadas. então se deita e espera. a barriga como que fecha e abre. ela se entrega. as pernas se abrem, se escancaram. sente arder a vagina. leva as mãos, está molhado. algo se rompe, se abre. ela tateia. os olhos doces. ajuda a retirar o que quer sair. puxa devagar, sente-se livre. levanta-o, uma cria, um menininho. morde a tripa que lhe sai, vai mordendo, mascando, até chegar na barriguinha. aperta, esfrega os dentes. corta. a outra parte da tripa, ela puxa devagar e a abandona. leva a cria ao peito, para aquecê-la. aos poucos a cria se anima, sua boca procura, tateia, se mexe. acha o bico da mama. suga forte. a fêmea sente escoar-se o sangue de seu corpo. num gesto de instinto, aconchega o rosto junto à cria.

            nenhum dos dois ouve o aviso longínquo de que existe nome. e liberdade.

            um espírito insano me pediu para presenciar estes fatos e participar desta história. eis o que vi:

            a cria cresceu e sai atrás da mãe. procuram comida. mexem, levantam folhas, cavoucam o chão. a fêmea ouve um grito. tem tempo de ver uma cobra escorregando para longe. toma a cria no colo. berros de dor. ela o abraça, acaricia-o, dá-lhe a teta. a cria grita, cada vez mais alto, a fêmea geme desnorteada. chega ao rostinho da cria o seu rosto aflito. lambe-o. os gritos vão ficando mais fracos. a cria vai mudando de cor e sua perna aumenta de tamanho. os olhos fechados. gemidinhos. a fêmea caminha com aflição, geme cada vez mais alto. de um lado para o outro. de um lado para o outro. a cria está mole em seus braços. a fêmea levanta a cria, olha para os lados, medo e impotência. a cria esfria. a cria esfria. a fêmea carrega-o um tempo. deposita-o no chão, senta-se, fica olhando.

            não ouve um aviso longínquo, de que existe choro.

            um espírito insano me perguntou dessas coisas.

            respondi que vi a fêmea estender as duas mãos abertas para o alto e ficar um tempo a olhá-las.

            cheias de nada.

 

  

Desistória – capítulo 10 (final).

 

 

            Amém.

 

            10. a noite negra.

 

            assim não seja.

 

  

Curitiba, 22 de abril de 1982.

Visitas: 243

Rubaiat, de Omar Khayyam, 46 a 60

Rubaiat, de Omar Khayyam, 46 a 60

traduzido por Matos Pereira. Editora Jangada, Rio de Janeiro, 1944.

 

XLVI

Do ganha pão, na faina atormentada,

vi o Oleiro moldando diligente;

e o barro, numa voz quase sumida,

pedia: “Meu irmão, mais docemente!.”

 

XLVII

Uma tarde, no fim de Ramadan,

– antes da lua grande se ostentar –

detive-me no pátio da olaria

com meus irmãos de barro a conversar.

 

XLVIII

Uma fila de vasos multiformes

junto à parede achava-se alinhada.

Havia ali uns jarros que falavam

e outros que ouviam, mas sem dizer nada.

 

XLIX

Quando eu entrei no pátio da olaria

um jarro disse para seus iguais:

“Deixe que o ilustre visitante evoque

os oleiros, que já não somos mais.”

 

L

Este exclamou: “Por mais zangada a criança,

não despedaça o copo predileto.

E Ele também não quebrará um vaso

que soube modelar com tanto afeto.”

 

LI

Aquele diz, em voz queixosa e triste:

“Perdi meu timbre, ressequido o barro;

mas encham-me com o suco delicioso

e reaverei meu ressoar bizarro.”

 

LII

Disse outro, então: “Não é decerto, embalde,

que, extraídos do barro, e feito gente,

Ele que tão sutil nos deu a forma

nos arremessa à terra novamente.”

 

LIII

Nenhum lhe respondeu, mas, finda a pausa,

fala um pote mais feio que o primeiro:

“Eles zombam de mim, porque sou torto.

Por acaso tremeu a mão do Oleiro?”

 

LIV

Outro falou: “Ouvi dizer, há pouco,

que dentro em breve, aqui virá alguém

que destruirá os vasos ruins – Qual nada!

Ele é amigo e tudo acaba bem.”

 

LV

E o mais extraordinário é que, entre os jarros

– representando o nosso mundo inteiro –

um , de repente, exclama impaciente:

“Digam, quem é o pote e quem o Oleiro?”

 

LVI

Enquanto os potes conversavam baixo,

um espia, o Crescente, e então, sorrindo,

exclama: “Irmãos, irmãos, escutem como

no ombro do Oleiro o laço está rangendo!”

 

LVII

Oh, mestre Oleiro, se és capaz, evita

ferir a argila de onde veio Adão.

Tens em teu torno, a mão de Feridum

e o crânio besuntado de um sultão.

 

LVIII

A argila deste vaso foi outrora

um poeta que era um verdadeiro Apolo.

A alça ao redor do bojo, o braço dele,

quanta vez não cingiu formoso colo!

 

LIX

Ontem, sentado em frente do seu torno

o Oleiro trabalhava, e muito bem.

Quanta mão de mendigo ele amassou.

E quanto crânio de sultão, também.

 

LX

Deixa os problemas sacros e profanos,

e as tramas do porvir; então, sozinho,

embrenha os dedos nas sedosas tranças

desta vestal, que te dispensa o vinho.

Visitas: 245