Rubaiat, de Omar Khayyam, 46 a 60

Rubaiat, de Omar Khayyam, 46 a 60

traduzido por Matos Pereira. Editora Jangada, Rio de Janeiro, 1944.

 

XLVI

Do ganha pão, na faina atormentada,

vi o Oleiro moldando diligente;

e o barro, numa voz quase sumida,

pedia: “Meu irmão, mais docemente!.”

 

XLVII

Uma tarde, no fim de Ramadan,

– antes da lua grande se ostentar –

detive-me no pátio da olaria

com meus irmãos de barro a conversar.

 

XLVIII

Uma fila de vasos multiformes

junto à parede achava-se alinhada.

Havia ali uns jarros que falavam

e outros que ouviam, mas sem dizer nada.

 

XLIX

Quando eu entrei no pátio da olaria

um jarro disse para seus iguais:

“Deixe que o ilustre visitante evoque

os oleiros, que já não somos mais.”

 

L

Este exclamou: “Por mais zangada a criança,

não despedaça o copo predileto.

E Ele também não quebrará um vaso

que soube modelar com tanto afeto.”

 

LI

Aquele diz, em voz queixosa e triste:

“Perdi meu timbre, ressequido o barro;

mas encham-me com o suco delicioso

e reaverei meu ressoar bizarro.”

 

LII

Disse outro, então: “Não é decerto, embalde,

que, extraídos do barro, e feito gente,

Ele que tão sutil nos deu a forma

nos arremessa à terra novamente.”

 

LIII

Nenhum lhe respondeu, mas, finda a pausa,

fala um pote mais feio que o primeiro:

“Eles zombam de mim, porque sou torto.

Por acaso tremeu a mão do Oleiro?”

 

LIV

Outro falou: “Ouvi dizer, há pouco,

que dentro em breve, aqui virá alguém

que destruirá os vasos ruins – Qual nada!

Ele é amigo e tudo acaba bem.”

 

LV

E o mais extraordinário é que, entre os jarros

– representando o nosso mundo inteiro –

um , de repente, exclama impaciente:

“Digam, quem é o pote e quem o Oleiro?”

 

LVI

Enquanto os potes conversavam baixo,

um espia, o Crescente, e então, sorrindo,

exclama: “Irmãos, irmãos, escutem como

no ombro do Oleiro o laço está rangendo!”

 

LVII

Oh, mestre Oleiro, se és capaz, evita

ferir a argila de onde veio Adão.

Tens em teu torno, a mão de Feridum

e o crânio besuntado de um sultão.

 

LVIII

A argila deste vaso foi outrora

um poeta que era um verdadeiro Apolo.

A alça ao redor do bojo, o braço dele,

quanta vez não cingiu formoso colo!

 

LIX

Ontem, sentado em frente do seu torno

o Oleiro trabalhava, e muito bem.

Quanta mão de mendigo ele amassou.

E quanto crânio de sultão, também.

 

LX

Deixa os problemas sacros e profanos,

e as tramas do porvir; então, sozinho,

embrenha os dedos nas sedosas tranças

desta vestal, que te dispensa o vinho.

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Rubaiat, de Omar Khayamm, 31 a 45

Rubaiat, de Omar Khayamm, 31 a 45

traduzido por Matos Pereira. Editora Jangada, Rio de Janeiro, 1944. 

 

XXXI

Nada mais é que a tenda onde repousa

um rei que vai cumprir o árduo destino.

Ergue-se o Rei, abate-o a negra Morte

e limpa a tenda à espera do inquilino.

 

XXXII

Um falso instante – e então, no palco humano,

se desenrola o dramalhão da fraude

que, para diversão da eternidade,

o próprio Allah engendra, encena e aplaude.

 

XXXIII

Que importa a mim, o que perdido eu tenha

por ter seguido a trilha que escolhi?

Dizem que Allah me perdoará – recuso

este perdão que nunca lhe pedi.

 

XXXIV

Rápidos como o vento no deserto,

velozes como as águas da corrente

os dias passam, mas ao Amanhã

e ao Ontem me conservo indiferente.

 

XXXV

Pergunta o povo se eu reduzir pude

o Ano à expressão mais simples – não. Porém,

já consegui riscar do calendário

o Ontem que foi e o Amanhã que vem.

 

XXXVI

Vais tu passar o resto da existência

buscando a chave do segredo – oh, lida!

Um fio só divide o bom do falso.

Não é de um fio que dependa a vida?

 

XXXVII

Talvez as gotas que nós derramamos

Beba-as a terra, e pelos seus arcanos

vão extinguir a dor nuns olhos tristes

que lá se escondem, Deus, há tantos anos!

 

XXXVIII

Céu é a visão das ânsias realizadas.

Inferno é a sombra da alma em dor premente,

atiradas às trevas – de onde nós,

mal saímos – voltamos novamente.

 

XXXIX

Quando eu morrer, não haverá mais rosas,

crepúsculos e sóis, orvalho e vento;

o mundo, então, se acabará também

pois sua vida é o nosso pensamento.

 

XL

Pois se a alma pode, despojando a argila,

erguer-se nua e livre pelos ares,

seria um crime, tê-la presa ao barro

que a aperta e expõe a todos os azares.

 

XLI

O que disseram santos e letrados

queimados na fogueira pelo povo,

nada mais são que histórias inventadas,

entre o acordar e o adormecer de novo.

 

XLII

Não temas que, encerrada a nossa conta,

não mais se veja aqui outras iguais.

Deus vem lançando pela Eternidade,

milhões de bolhas como nós, ou mais.

 

XLIII

É um jogo de xadrez – há noite e há dia –

onde nós sendo as peças, temos baixas.

O Destino nos move, humilha e mata,

e depois, um por um, devolve à Caixa.

 

XLIV

Senhor, tu que do pó tiraste o homem

e o Édem, com a serpente, entretiveste,

perdoa-nos o mal que nós fazemos

como perdoamos o que nos fizeste.

 

XLV

Como? Exigir que o mísero te entregue

ouro de lei, quando emprestaste escória.

Querer que ele te pague o que não deve

nem podia dever – como é essa história?

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Rubaiatt, de Omar Khayyam, 16 a 30

RUBAIAT, DE OMAR KHAYYAM, 16 a 30

 traduzido por Matos Pereira. Editora Jangada, Rio de Janeiro, 1944. 

 

XVI

Na primeira manhã do Paraíso

o Homem não sente mágico transporte.

Adão já era um ser desiludido

que chorara, de noite, pela morte.

 

XVII

Tira a papoula a cor do próprio sangue

que das veias jorrou de um ser qualquer.

E os lírios da Madona germinaram

das lágrimas de uns olhos – de mulher!

 

XVIII

Debruça-te de leve sobre a relva

na margem deste rio. Ela é rebento

dos lábios que com beijos nós selamos

e que a Morte selou no esquecimento.

 

XIX

Vede, dentre as que amamos, as mais lindas

a quem os fados bons favoreceram,

seus momentos tiveram de delírio

e, uma por uma, desapareceram.

 

XX

E nós, folgando neste espaço em que eles

vagaram – e cantando no verão,

sob um leito de terra nós iremos

fazer um leito – para quem?, irmão.

 

XXI

Ah!, gozemos o tempo que nos resta

antes que ao pó volvamos, antes, sim.

Pó para o pó, e sob o pó jazemos,

sem fé, sem vinho, sem amor, sem fim.

 

XXII

Tanto aqueles que vivem para hoje,

quanto os que no amanhã têm o olhar fito,

o Muezzin, da sombria torre, exclama:

Loucos! A vossa recompensa é um mito.

 

XXIII

Dos sábios e dos santos que se arguiram

sobre o Ser e o Não Ser, com vozes roucas,

já foram as palavras esquecidas

e eles ao pó, que lhes tapou as bocas.

 

XXIV

Vem com Khayyam e deixa o egrégio sábio

falar; verdade é só que a vida corre…

Isto é verdade. E tudo o mais, mentira.

Desabrochada, a rosa murcha e morre.

 

XXV

Eu, quando jovem, procurei ouvir

argumentos de santo e de letrado

sobre isto e aquilo, mas ao fim,

sempre saí tal como havia entrado.

 

XXVI

Planto a semente do saber com eles

mas foi a minha mão que a cultivou.

E isto foi tudo que colher eu pude:

– Como a água eu vim e como o vento vou.

 

XXVII

E, sem saber porque a este mundo vim

– Folha a boiar, das águas à mercê,

sem mesmo saber de onde nem pra onde,

eu vou saindo, sem saber: Por quê?

 

XXVIII

Pela sétima porta me elevei

ao trono de Saturno soberano;

mil problemas solvi pelos caminhos.

Mas não da Morte nem do Fado Humano.

 

XXIX

Houve uma porta que eu abrir não pude.

Houve um véu através do qual não vi.

Foi breve o instante em que nos falamos.

Depois, silêncio sobre mim e ti.

 

XXX

Eu pergunto a mim mesmo o que é que eu tenho

e após a morte do que será do “Eu”.

A vida é breve, é chama, é cinza, e o vento

ao dispersá-la diz: Alguém viveu.

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