GIL VICENTE 10. AUTO DA SIBILA CASSANDRA (1511)

cassandra

Resumo:

    Cassandra é cortejada pelo pastor Salomão mas não quer se casar. Ela fala sobre o lado desagradável do casamento: as mulheres são cativas, os homens são ciumentos ou conquistadores; um purgatório. Salomão traz três camponesas, Eritrea, Ciméria e Peresica (Pérsica), tias da moça, para que a convençam. A seguir vêm os tios Esaias, Moyses e Abrahão. Moises fala que o casamento é um sacramento e as camponesas, que têm os nomes das Sibilas, apresentam as profecias sobre a Virgem. Cassandra diz a todos que também profetizou que o Salvador nascerá de uma virgem e ela presume ser esta virgem. Abrem-se cortinas e surge o presépio. Anjos cantam uma cantiga de ninar. Cada um dos presentes dirige-se ao menino e à Virgem, em adoração. Cassandra pele perdão a Maria. Cantam um hino à Virgem e um hino bélico.

GV022. Cassandra

Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

Mas quiero vivir segura
Nesta sierra á mi soltura,
Que no estar en ventura
Si casaré bien ó no.
Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

Madre, no seré casada,
Por no ver vida cansada,
Ó quizá mal empleada
La gracia que Dios me dió.
Dicen que me case yo;
No quiero marido, no.

No será ni es nacido
Tal para ser mi marido;
Y pues que tengo sabido
Que la flor yo me la só,
Dicen que me case yo,
No quiero marido, no.

(canta Carmen Ziege)

GV023. Salomão, Esaias, Moysés, Abrahão

Que sañosa está la niña!
Ay Dios, quien le hablaria!

En la sierra anda la niña
Su ganado á repastar;
Hermosa como las flores,
Sañosa como la mar.
Sañosa como la mar
Está la niña;
Ay Dios, quien le hablaria!

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Ruben Ferreira Jr.)

GV024. Quatro Anjos

Ro ro ro
Nuestro Dios y Redentor,
No lloreis, que dais dolor
Á la vírgen que os parió.
Ro ro ro.

Niño hijo de dios Padre,
Padre de todalas cosas,
Cesen las lágrimas vuesas,
No llorará vuestra madre,
Pues sin dolor os parió.
Ro, ro, ro,
No le deis vos pena, no.

Ora, niño, ro ro ro.
Nuestro Dios y Redentor,
No lloreis, que dais dolor
Á la vírgen que os parió.
Ro ro ro.

(canta Jorge Teles)

GV025. Todos

Muy graciosa es la doncella:
Como es bella y hermosa!

Digas tú, el marinero,
Que en las naves vivías,
Si la nave ó la vela ó la estrella
Es tan bella.

Digas tú, el caballero,
Que las armas vestías,
Si el caballo ó las armas ó la guerra
Es tan bella.

Digas tú, el pastorcico,
Que el ganadico guardas,
Si el ganado ó las valles ó la sierra
Es tan bella.

(canta Jorge Teles)

GV026. Todos

Á la guerra,
Caballeros esforzados;
Pues los ángeles sagrados
Á socorro son en tierra.
Á la guerra.

Con armas resplandecientes
Vienen del cielo volando,
Dios y hombre apelidando
En socorro de las gentes,
Á la guerra,

Caballeros esmerados;
Pues los ángeles sagrados
Á socorro son en tierra
Á la guerra.

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori e Graciano Santos)

Comentário:

Texto integralmente em espanhol. Este Auto mostra um notável passo estilístico em Gil Vicente. Abandonou completamente a estrutura dos autos de natal ibéricos. Juntou quatro nomes bíblicos, Abraão, Moisés, Salomão e Isaías, como pastores, três profetizas da antiguidade, adotadas pelo cristianismo, e Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, também profetiza, mas do ciclo troiano. Esta última não tem nenhuma ligação com o cristianismo. Com relação a estas profetizas pagãs, desde um sermão de Agostinho (354-430) elas eram reverenciadas pelo cristianismo. O filósofo citava supostas previsões das mesmas sobre o nascimento de Cristo. Michelangelo pintaria cinco delas no teto da Capela Sistina, de 1508 a 1512. Rafael pintaria quatro Sibilas na Capela Cighi da Igreja Santa Maria della Pace, em Roma, em 1514; o Auto de Gil Vicente é tido como de 1511.
Notável é o desenlace que o Autor dá à presunção de Cassandra. A atitude que facilmente poderia ser considerada como blasfêmia é perdoada com toda tranquilidade.
O Auto apresenta cinco belíssimos textos de canções, terminando com um canto à guerra, totalmente fora de contexto. Sobre a canção Muy graciosa es la doncella, uma rubrica dentro do texto diz que a mesma foi “feita e ensaiada pelo autor”. Deve-se deduzir, então, que as outras não seriam de sua lavra, mas cantos populares aproveitados. Veremos mais tarde que ele mesmo cuidou das canções de muitas de suas peças, por pertencerem a um contexto muito específico, como a que narra a viagem para a Itália da filha do rei dom Manuel ou o nascimento do príncipe herdeiro, filho de Dom João III, entre muitas outras. Por outro lado, sabemos que muitas canções de peças de Gil Vicente eram cantares populares, na maioria anônimos, por constarem em Cancioneiros famosos (coleções de textos, verdadeiras peças de arte, geralmente em pergaminho, com a letra, a partitura e iluminuras).
Com relação ao hino bélico do final, acredita-se que seja um incentivo à aceitação das atividades militares dos portugueses na África.

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GIL VICENTE 09. AUTO DA FÉ (1510)

benito

Resumo:

Dois pastores entram numa capela e ficam maravilhados com os bonitos objetos, que nunca tinham visto. Há pessoas da corte, com roupas festivas. Tudo que os pastores falam é engraçado. Tentam adivinhar o que é cada objeto e para que serve. Surge a Fé, segundo eles, vestida como uma moura. A Fé explica: é noite de natal. E esclarece sobre a natividade.

GV021. Benito e Brás.

No no no no no no

No no no,

Que no quiero estar en casa;

No me pagan mi soldada,

No no no, que no que no.

No me pagan mi soldada,

No tengo sayo ni saya

No no no, que no que no.

(canta João Batista Carneiro)

 

Comentário:

Para cada auto de natal Gil Vicente criava uma situação nova. O objetivo das apresentações era sempre o mesmo mas o dramaturgo variava as situações. Os pastores falam um castelhano bem rústico e a Fé fala português. Nesta peça há dois aspectos que indicam o que virá a ser o futuro Gil Vicente: um grande humanista precursor e um crítico feroz ao tipo de catolicismo do Portugal de então.

Quando a Fé pede aos pastores que cantem em louvor ao nascimento do menino, ela insiste: cantai per vosso uso acostumado, como lá cantais co’ o gado. (Cantem como estão acostumados a cantar junto do gado). E eles cantam uma canção popular. Isto era vanguarda, o uso das tradições populares como recurso expressivo para manifestação da religiosidade.

Por outro lado, uma das primeiras falas de um dos pastores, quando entra na capela, é: Mas que monton de coronas! Bendigalos santo Anton. (Mas que monte de coroinhas! Bendiga-os santo Antonio), aludindo ao grande número de padres. Santo Antonio é uma zombaria, pois que era o protetor dos animais. Numa peça futura, Gil Vicente vai abordar o problema da quantidade de religiosos com mais precisão e sarcasmo. Chegaremos lá.

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GIL VICENTE 08. FARSA CHAMADA AUTO DA FAMA (1510)

a fama

Resumo:

Uma mocinha guardadora de patos é a Fama. Tem como ajudante um bobo. Diante dela se apresentam um francês, um italiano e um espanhol. Cada um quer levar a Fama para seu país. Mas ela sabe que pertence a Portugal, pelos grandes feitos portugueses. Faz uma descrição do poderio lusitano, enumerando terras descobertas e povos subjugados. Chegam a Fé e a Fortaleza, coroam com louros a Fama e a colocam num carro triunfal. Levam-na ao som de música.

GV020. Fé (fala)

Vós, Portuguesa Fama, não tenhais ciumes.

(fala Jorge Teles)

Comentário:

Estamos diante de um Gil Vicente que tece louvores à gloria de seu país, após os grandes descobrimentos. As falas dos cortejadores são engraçadíssimas porque mescladas com português irregular. “Vu vendrés comigo em França.”. “Il cor me dole qui me mata tu parole”.
Um dos méritos mais fascinantes de Gil Vicente é o aspecto linguístico de suas obras. Cada personagem tem na sua fala uma riqueza de detalhes que precisam sua condição social, seu nível intelectual, além de seu estado emocional. Tal aspecto se perderá no clacissismo e só será recuperado no realismo.
Pela primeira vez na obra de Gil Vicente, é mencionado o Brasil, como um dos grandes trunfos do império português. E, como a peça é em versos, como todas do autor, surgem já aí duas palavras que se perpetuarão como rimas inevitáveis, toda vez que a língua portuguesa versejar sobre o Brasil: “mil” e “varonil”.
A fala da Fé ao final, é em hendecassílabos (ou decassílabos, se se desconsiderar a sexta sílaba, átona). Isto introduz no auto um novo clima, épico, grandiloquente.
Que arquétipo esconderia esta simpática guardadora de gansos, título de um dos contos mais significativos dentre os recolhidos pelos irmãos Grimm? Como curiosidade, no conto dos irmãos Grimm a guardadora de patos é uma princesa deserdada pelo pai, que queria dividir o reino entre as três filhas; exatamente o episódio inicial da tragédia do rei Lear. No caso de Shakespeare, a fonte teria sido a Historia Regnum Britanniae, de Geoffrey of Monmouth, de 1147.

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