GIL VICENTE 24. AUTO PASTORIL PORTUGUÊS (1523)

o pastor

Resumo:

Um lavrador entra como Prólogo e, antes de anunciar os outros personagens, fala de si mesmo: casou-se contra a vontade dos pais e foi deserdado. Há então uma interessante referência ao próprio Autor: é mesmo Gil Vicente, que agora anda sem dinheiro, quem pediu para que ele anunciasse um Auto de Natal. Entram aos poucos seis pastores com seus amores entrecruzados: Joane gosta de Caterina que gosta de Fernando que gosta de Madanela que gosta de Afonso que gosta de Inês que gosta de Joane. Discutem em torno de suas declarações de amor e suas recusas. Vem uma última pastora, Margarida, com um feixe de lenha. Diz ter visto a Virgem, o menino e seis ou sete donzelas. A Virgem mandou que ela fizesse uma advertência ao cura e ao prior. E lhe deu uma imagem sua. Margariga sai e volta com quatro clérigos. Estes entoam um hino à Virgem. E ao final cantam todos uma delicada canção natalina.

GV075. Catherina

Tirae os olhos de mim,
Minha vida e meu descanso,
Que me estais namorando.

Os vossos olhos, senhora,
Senhora da formosura,
Por cada momento de hora
Dão mil annos de tristura:
Temo de não ter ventura.
Vida, não m’ esteis olhando,
Que me estais namorando.

(canta Kátia Santos)

GV076. Clérigos

Ó gloriosa Senhora do mundo,
Excelsa princeza do ceo e da terra,
Fermosa batalha de paz e de guerra,
Da sancta Trindade secreto profundo!
Sancta esperança, ó madre d’amor,
Ama discreta do filho de Deos,
Filha e madre do Senhor dos Ceos,
Alva do dia com mais resplandor!

Fermosa barreira, ó alvo e fito
A quem os profetas direito atiravão!
A ti, gloriosa, os Ceos esperavão,
E as tres pessoas hum Deos infinito.
Ó cedro nos campos, estrella no mar,
Na serra ave phenix, hua so amada,
Hua so sem mácula e so preservada,
Hua so nascida, sem conto e sem par!

Do que Eva triste ao mundo tirou
Foi o teu fructo restituidor;
Dizendo-te ave o embaixador,
O nome de Eva te significou.
Ó porta dos paços do mui alto Rei,
Camera cheia do Spírito Sancto,
Janella radiosa de resplandor tanto,
E tanto zelosa da divina lei!

Ó mar de sciencia, a tua humildade,
Que foi senão porta do ceo estrellado?
Ó fonte dos anjos, ó horto cerrado,
Estrada do mundo para a divindade,
Quando os anjos cantão a glória de Deos,
Não são esquecidos da glória tua;
Que as glórias do filho são da madre sua,
Pois reinas com elle na corte dos Ceos.

Pois que faremos os salvos por ella,
Nascendo em miseria, tristes peccadores,
Senão tanger palmas e dar mil louvores
Ao Padre, ao Filho e Esprito, e a ella!

(cantam Geovani Dallagrana, Gerson Marchiori, Graciano Santos e Rubem Ferreira Jr.)

GV077. Todos

Quem he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem he a que paria?
A Virgem Maria.
Em Bethlem, cidade
Muito pequenina.
Vi hua desposada
E Virgem parida.
Em Bethlem, cidade
Muito pequenina,
Vi hua desposada
E Virgem parida.

Quem, he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem he a que paria?
A Virgem Maria.
Hua pobre casa
Toda reluzia,
Os anjos cantavão,
O mundo dizia:
Quem he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem é a que paria?
A Virgem Maria.

(canta Kátia Santos)

 

Comentário:

Um Auto natalino muito singelo. O texto do hino à Virgem é tradução parafraseada de laudes em latim. E Gil Vicente aproveita novamente para criticar ferozmente os religiosos. Quando Margarida fala do cura e do prior, os outros pastores zombam do hábito que estes têm, de desrespeitarem as moças do lugar.
Num Auto posterior, o da Serra da Estrela, muito semelhante a este, volta o autor a brincar com amores desencontrados de pastores. Só que, naquele, um Ermitão, ao final, juntará os pares e todos acabarão por aceitar com alegria seus parceiros. Outros são os nomes dos pastores, mas há também um Fernando, que ficará com sua Madanela.

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GIL VICENTE 23. FARSA DE INÊS PEREIRA (1523)

lianor vaz

Resumo:

Inês não aceita sua condição social, panela sem cabo, presa em casa. A mãe discute com ela. Vem a comadre Lianor Vaz, esbaforida. Um clérigo tentou estuprá-la. (“Irmã, eu te absolverei com o breviário de Braga”). Lianor vem falar de casamento. Traz uma carta do pretendente. Vem o mesmo a seguir, mas não passa de um simplório inexpressivo. Inês o rejeita. pois quer um homem inteligente e que toque viola. Latão e Vidal, dois judeus casamenteiros, apresentam um escudeiro a Inês. Ele fala bonito e toca viola. Casam-se. O escudeiro transforma-se numa peste (“Já vos preguei as janelas, porque não vos ponhais nelas; estareis aqui encerrada, nesta casa tão fechada, como freira d’Oudivelas”). Vai para a guerra e morre. O primeiro pretendente herdou uma fazenda e Inês se casa com ele. Ele, ao contrário do primeiro marido, satisfaz todos os desejos dela. Surge, como Ermitão, um antigo namorado. Mora numa ermida. Inês, montada a cavalo no marido, vai visitar a ermida.

GV069. Latão

Canas do amor, canas
Canas do amor.
Polo longo de hum rio
Canaval está florido,
Canas do amor.

(canta Gerson Marchiori)

GV070. Escudeiro

Mal me quieren en Castilla.

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV071. Latão

Pelo mar vay a vela
Vela vay pelo mar.

(canta Gerson Marchiori)

GV072. Todos

Mal herida iba la garza
Enamorada
Sola va y gritos daba.

(canta Geovani Dallagrana)

GV073. Ines

Quem bem tem e mal escolhe,
Por mal que lhe venha não sanoje.

(canta Jorge Teles)

 

GV074. Ines e Pero

Marido cuco me levades
E mais duas lousas.
-Pois assi se fazem as cousas.

Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero;
Sempre fostes percebido
Pera cervo:
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.
– Pois assi se fazem as cousas.

Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo,
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss’amo,
Com duas lousas.
– Pois assi se fazem as cousas.

(cantam Carmen Ziege e João Batista Carneiro)

 

Comentário

Gil Vicente era destratado por intelectuais como sendo um imitador de dramaturgos espanhóis, principalmente Juan de Encina. Sabe-se hoje que as influências foram recíprocas. Gil Vicente começou imitando mas, a partir de um certo momento, seu gênio explodiu em criações importantes que ditaram aos autores peninsulares os caminhos do teatro ibérico.
Foi-lhe dado como mote o provérbio: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube, para que, a partir daí, criasse uma peça teatral. Inês Pereira é o resultado do desafio. Considerada como sua mais perfeita comédia é um desfilar homogêneo de tipos e situações hilariantes.

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GIL VICENTE 22. COMÉDIA DE RUBENA (1521)

feiticeira

Resumo:

Cena primeira: Um prólogo, como no teatro latino, anuncia a narrativa. Rubena foi engravidada por um jóvem clérigo. Ela apresenta um triste monólogo sobre a sua situação (“mais dói o arrependimento que a dor do parto”). Sua criada traz uma parteira que nos brinda com sortilégios facilitadores do parto (“Dizei tres vezes passinho: o verbo caro fato he: dou-vos a San Sadorninho…” A parteira faz vir uma Feiticeira para que cuide dela, escondendo assim o parto do pai de Rubena. Diabos, a mando da Feiticeira, levam Rubena à montanha. Ali ela dá à luz uma menininha, Cismena.

Cena segunda: A Feiticeira e os Diabos cuidam da menina. Duas fadas devem zelar por ela. A seguir vê-se a pequena Cismena com pastorezinhos. As fadas predizem uma boa fortuna para a menina.

Cena terceira: Já jovem, as Fadas encaminham Cismena a Creta. É adotada por uma nobre que morre e lhe deixa a fortuna. Cismena é cortejada por muitos mas acaba se casando com o príncipe da Síria.

GV060. Benita

Tiempo era caballero,
Que se me acorta el vestir.

(canta Carmen Ziege)

GV061. Feiticeira

Ru ru, menina, ru, ru,
Mourão as velhas e fiques tu
C’o a tranca no cu.

(canta Jorge Teles)

GV062. Ama

Llevantéme un dia
Lunes de mañana.

(canta Kátia Santos)

GV063. Feiticeira

De las mas lindas que yo vi.

(canta Jorge Teles)

GV064. Cismena

Grandes bandos andão na côrte,
Traga-me Deos o meu bonamore.

(canta Carmen Ziege)

GV065. Lavrandeiras

Halcon que se atreve
Con garza guerrera
Peligros espera.

Halcon que se vuela
Con garza á porfía,
Cazar la queria
Y no la recela:
Mas quien no se vela
De garza guerrera
Peligros espera.

La caza de amor
Es de altanaría;
Trabajos de dia,
De noche dolor:
Halcon cazador
Con garza tan fiera
Peligros espera.

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

GV066. Dario

D’amores jaço,
Quando as torço d’amores dormo.

(canta Geovani Dallagrana)

GV067. Dario

Consuelo véte con Dios;
Pues ves la vida que sigo,
No pierdas tiempo conmigo.
Consuelo mal empleado,
No consueles mi tristura;
Véte á quien tiene ventura,
Y deja el desventurado.
No quiero ser consolado,
Antes me pesa contigo:
No pierdas tiempo conmigo.

(canta Geovani Dallagrana)

GV68. Lavrandeiras

Bien quiere el viejo,
Ay madre mia,
Bien quiere el viejo
A la niña.

(canta Kátia Santos)

 

Comentário:

Uma comédia bem cuidada, cheia de referências ao cancioneiro popular. Mas não mantém uma unidade, é fragmentada. Pela primeira vez em seu teatro, Gil Vicente apresenta um prólogo e divide a narrativa em cenas, como já era costume no teatro espanhol. Em algumas peças futuras, o prólogo aparecerá outras vezes, mas não mais se verá a divisão em cenas, mesmo em peças com mais de um cenário.

Na primeira cena e em parte da segunda, a atuação entre os diabos, a feiticeira e as duas fadas dá uma nota cômica e fantástica à tragédia da moça engravidada pelo clérigo irresponsável. Ao final da segunda cena surge um clima do que poderíamos chamar de pastoral infantil. Só a terceira cena apresenta-se como comédia romântica, na verdade um drama romântico, com todos aqueles ingredientes emocionais característicos, como a disputa dos pretendentes, o enamorado que morre por amor e o Príncipe disfarçado por amor. Este mantém, em quadrinhas, um longo e lírico diálogo com o eco.

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