GIL VICENTE 25. O JUIZ DA BEIRA (1525)

pero marques

Resumo:

Pero Marques, o marido de Inês Pereira, é juiz em Beira. Houve mexericos sobre seu desempenho e ele é chamado para que julgue na corte, diante do rei. Para mostrar que ele é um rústico, o Porteiro apresenta a ele uma cadeira, para que se sente durante o julgamento. Ele não sabe de que lado deve se sentar e exige um banquinho. Vem Ana Dias e reclama justiça, pois sua filha foi violada. O Juiz diz que são coisas de moços. Diz também que se deve verificar o trigal onde o fato aconteceu. Se as plantas estiverem muito amassadas. é sinal de que houve violência; do contrário, não. Vem um sapateiro e discute com Ana Dias. Ela alcovitou e seduziu sua filha para o pecado, convidando-a a visitar um jovem. O Juiz dá a sentença: se fosse um convite para trabalhar, será que a moça iria? Mas manda que Ana Dias seja açoitada. Vem um Escudeiro. Apaixonou-se por uma moura e usou os serviços de Ana Dias. Gastou o que tinha e não conseguiu a moça. O Juiz absolve a alcoviteira. O mesmo escudeiro pede que o criado lhe devolva a roupa nova, já que não quer trabalhar mais para ele. O Juiz faz o julgamento, deixando o caso como está. Vêm quatro irmãos discutir uma herança, um asno deixado pelo pai. Cada um tem uma característica principal: um é preguiçoso, um é dançarino, um é esgrimista e um é apaixonado. O Juiz quer que o asno seja citado para a próxima audiência, para que conclua o julgamento. Cantam todos e acaba-se a comédia.

GV078. Amador

Leixar quero amor vosso,
Mas não posso.

(canta Jaqueson Magrani)

GV079. Todos

Vamos ver as Sintrans,
Senhores, á nossa terra,
Que o melhor está na serra.
As serranas Coimbrans
E as da serra da Estrela,
Por mais que ninguem se vela,
Valem mais que as cidadans:
São pastoras tão louçans,
Que a todos fazem guerra
Bem desde o cume da serra.

(canta João Batista Carneiro)

 

Comentário:

Leve comédia com personagens engraçados, em situações típicas da época. O fato de o Juiz ser o personagem de uma peça anterior prova muito que aquela peça realmente tinha agradado. Há toda uma crítica a julgamentos muito parciais, pois, na verdade, todas as decisões do Juiz são inusitadas. Pero Marques representa aqui uma justiça ingênua, desatada dos labirintos da lei, mas que se revela como verdadeira sabedoria popular. A literatura oral de todos os povos apresenta casos semelhantes.
É bom citar os julgamentos rápidos e inteligentíssimos de Sancho Pança, no capítulo 45 da segunda parte do Don Quixote de Cervantes (1547-1616). Num dos casos mais difíceis, verdadeira charada apresentada para julgamento (capítulo 51), Sancho diz que o homem deve continuar vivo pois quando a Justiça está em dúvida, recorre-se à misericórdia.
No Alcorão, num trecho que narra parte da história de José no Egito, há também um julgamento simples a respeito da calúnia da mulher do egípcio que comprara José (não é mencionado o nome Putifar): esta diz que o jovem tentou violentá-la e ele desmente. Um testemunho da familia dela sentencia: se a túnica de José estiver rasgada na frente, ela fala a verdade; se estiver rasgada atrás, ele está sendo sincero (capítulo 12, 22 a 30).

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GIL VICENTE 15. COMÉDIA DO VIÚVO (1514)

dom rosvel

Resumo:

Um homem lamenta a perda de sua mulher. Vem um Frade consolá-lo. A seguir um Compadre diz que ele é feliz e invejado por estar viúvo. O compadre descreve sua mulher, que é uma verdadeira serpente. Saem estes e as duas filhas do viúvo, Paula e Melícia, lamentam a orfandade. Falam as duas: “Grande segredo é morrer. Mas é muito declarado, maior segredo é viver e sendo certo a partida, não estar bem preparado”. Dom Rosvel, um Príncipe, as vê e disfarça-se de empregado. O viúvo o admite para os mais baixos serviços: cuidar dos porcos, trazer lenha. Num momento em que o viúvo está ausente, Dom Rosvel declara-se. Está apaixonado pelas duas e diz-se ser feliz apenas com as tarefas que desempenha, por poder estar junto delas, apesar de ser filho de duque e duquesa. O viúvo volta e diz já ter acertado o casamento de Paula. Nesse momento surge dom Gilberto, irmão de dom Rosvel. Algumas feiticeiras haviam falado aos seus pais de como vivia o filho perdido e ele saíra pelo mundo, para procurá-lo. Vai dom Rosvel até o príncipe Dom João III, que faz parte da platéia (nessa altura, com 12 anos) e pergunta com quem deve se casar. O príncipe indica Paula. O irmão do príncipe se apaixona por Melícia. Chegam músicos e um padre e a obra termina com os dois casamentos.

GV034. D. Rosvel

Arrimárame à tí, rosa,
No me diste solombra.

(canta Jaqueson Magrani)

GV035. D. Rosvel

Mal herido me ha la niña,
No me hacen justicia.

(canta Jaqueson Magrani)

GV036. Quatro Cantores

Estanse dos hermanas
Doliéndose de si;
Hermosas son entrambas
Lo mas que yo nunca ví.
Hufa! Hufa!
Á la fiesta, á la fiesta
Que las bodas son aqui.

Namorado se había dellas
Don Rosvel Tenori:
Nunca tan lindos amores
Yo jamas contar oí.
Hufa! Hufa!
Á la fiesta, á la fiesta,
Que las bodas son aqui.

(cantam Gerson Marchiori e Graciano Santos)

 

Comentário:

A peça é toda em castelhano. Aos poucos a obra de Gil Vicente vai sendo enriquecida com situações psicológicas mais sutis e um humor recheado com mais finas ironias. Esta obra é um exemplo, ao mostrar a indecisão do Príncipe em relação às duas moças e as palavras do Compradre ao descrever a serpente que é sua mulher. O tema do nobre enamorado que se finge de trabalhador rústico é constante na literatura da época. Gil Vicente vai repetí-lo em Dom Duardos, Cervantes narra episódios no Dom Quixote.

Há uma certa simplicidade no desenrolar da ação, resultado de uma cultura conservadora muito presa ao catolicismo. Se pensarmos que, duzentos anos antes, a literatura italiana já mostrava uma moderníssima licenciosidade, podemos levantar grandes diferenças entre as culturas portuguesa e a italiana. Pensemos no Decameron, de Boccaccio (1313-1375) e na Mandrágora, de Maquiavel (1469-1527). A Itália era o centro do catolicismo e sabe-se da corrupção e imoralidade que reinava no Vaticano, motivo da revolução protestante, que se iniciará em 1517, com a reação luterana à venda das indulgências. Portugal e Espanha se mantinham num cristianismo mais puro (apesar das constantes denúncias de Gil Vicente aos maus costumes do clero). O resto da Europa fervilhava em discussões sobre religião e ética. Gil Vicente tentou acompanhar o pensamento de Erasmo de Roterdã, como se percebe em seu trabalho e em uma carta endereçada ao rei João III, muito mais tarde. Mas os costumes apresentados em sua obra são pautados por um comportamento rígido e preso às normas ditadas pelo catolicismo.

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GIL VICENTE 05. FARSA DE “QUEM TEM FARELOS” (1505)

aires rosado

Resumo:

    Ordonho e Aparício, dois criados, se encontram na rua. Um deles trabalha para um escudeiro, Aires Rosado, sem dinheiro mas metido a galante. O escudeiro faz uma serenata à namorada. Cães, gatos e galos fazem barulho. A mãe da moça, a Velha, entra fazendo uma longa imprecação, maldizendo quem a faz levantar-se no meio da noite. Vai-se o Escudeiro cantando. A Velha fica ralhando com a filha, Isabel. Quer que a filha trabalhe mas esta só quer saber de se enfeitar. Saem.

GV009. Aires Rosado
Si dormís, doncella,
Despertad y abrid,
Que venida es la hora
Si quereis partir.
Si estais descalza,
No cureis de vos calzar,
Que muchas agoas
Teneis de pasar,
agoas dAlquebir;
Que venida es la hora
Si quereis partir.

(canta Rubem Ferreira Jr.)

GV010. Aires Rosado
Cantan los gallos,
Yo no me duermo,
Ni tengo sueño.
(canta Gerson Marchiori)

.…Aires Rosado
Por mayo, era por mayo.
(canção com esse refrão estará na peça 38.romagem dos agravados, GV131)

GV011. Aires Rosado
Apartar-me-hão de vós,
Garrido amor.
Eu amei uma senhora
De todo o meu coração:
Quis Deos e minha ventura
Que não m’a querem dar, não.
Garrido amor.
Não me vos querem dare;
Irme hei a tierras agenas,
a chorar meu pesare.
Garrido amor.
(canta Jaqueson Magrani)

GV012. Aires Rosado
Já vedes minha partida.
Os meus olhos ja se vão;
Se se parte minha vida,
Ca me fica o coração.
(canta João Batista Carneiro)

Comentário:

    Enfim, uma obra em língua portuguesa. É também a primeira peça profana de Gil Vicente.  Apenas um escudeiro fala espanhol. Uma comédia simples, com tipos sociais definidos, situações engraçadas e canções populares, algumas ainda em castelhano, uma delas bilingue. Este fato retrata a população de Portugal na época. A nobreza dos dois países da península ibérica fazia casamentos entre si e, nesse vai e vem, a criadagem de um país passava para o outro. Na compilação é indicado que o nome: “Quem tem farelos?” pôs-lhe o vulgo. Pode-se concluir daí que as peças de Gil Vicente eram também assistidas pelo povo. É muito provável que, se foram apresentadas, foram só aquelas faladas em português e, com toda a certeza, somente aquelas menos ferinas.

 

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