Monteiro Lobato

O POÇO DO VISCONDE

 Capítulos 03 e 04

 

3 – Como se forma o petróleo

          No terceiro serão o Visconde começou sem a clássica tossidinha do costume. Emília reclamou:

         – Esqueceu-se de limpar o pigarro, Visconde.

         A fim de contentá-la, o grande geólogo teve de fingir um pigarro que não existia – mas para castigo principiou a aula com esta pergunta:

         – Senhora Emília, explique-me o que é hidrocarboneto.

         A atrapalhadeira não se atrapalhou e respondeu:

         – São misturinhas de uma coisa chamada hidrogênio com outra coisa chamada carbono. Os carocinhos de um se ligam aos carocinhos de outro e formam metanas e butanas e propanas e benzinas e outras coisas gasosas ou voláteis que pegam fogo.

         – Isso mesmo. Só que esses carocinhos têm o nome científico de átomos. E onde se encontram esses hidrocarbonetos, Pedrinho?

         – Nos sedimentos marinhos, sobretudo rente às costas, em terras que já foram mares, ou dentro dos continentes, em terras que também já foram mares.

         – Muito bem. Os tais sedimentos orgânicos, os tais cemitérios de animálculos e plantículas, geram os tais hidrocarbonetos que pegam fogo; mas isso só quando se reúnem umas tantas condições favoráveis. Esses cemitérios de matéria orgânica devem ser cobertos um pouco depressa pelos tais aterros dos rios. Têm que ficar incubados, como ovos na incubadeira, sob tais e tais condições; do contrário não saem os pintos do petróleo.

         – Que condições são essas? – perguntou Pedrinho.

         – Uma delas é ficarem isolados das águas. Esse isolamento livra a matéria orgânica de ser devorada por certos seres viventes, os urubuzinhos do mundo pequeno. E também a livra da fome insaciável do maior urubu que existe na Natureza, o tal Senhor Oxigênio. Este freguês tem um apetite de cabra. Come tudo quanto encontra, isto é, oxida tudo quanto encontra, como dizem os químicos. O oxigênio existe na água e no ar; por isso a matéria orgânica que cai na água, ou está exposta ao ar, estraga-se depressa, desaparece, oxida-se – é devorada, em suma, pelo terrível urubu.

         – Ahn! – exclamou Pedrinho. – Então é por esse motivo que não se forma petróleo na matéria orgânica de cima da terra. Está exposta ao ar, entregue à fúria do oxigênio…

         – Isto mesmo. O oxigênio é uma espécie de guarda da natureza, com a missão de conservar as coisas num certo estado de equilíbrio. Vemos isso com o ferro. Esse metal não existe na natureza no estado livre de ferro puro. Existe sob forma do óxido de ferro, isto é, misturado ou combinado, com o oxigênio. Os minérios de ferro, ou as pedras de ferro, como o povo diz, não passam dessa combinação – são óxidos de ferro. Mas vai o homem e derrete a pedra e fabrica o ferro metálico de que se utiliza para fazer mil coisas – facas, arame, pregos, vergalhões, chapas, trilhos…

         – Ferros de engomar, alfinetes – ajuntou Emília.

         – .Tudo enfim que é máquina, instrumento ou material de construção. Mas o Senhor Oxigênio, que não concorda com a mudança, trata logo de desfazer a obra do homem – e enferruja o ferro. Sabem o que é a ferrugem?

         – É o ruge do ferro – disse Emília.

         – Ferrugem é óxido de ferro. E’ o oxigênio que se liga ao ferro para restabelecer o que a natureza criou e o homem alterou. Vai lentamente trabalhando nisso, sem parar nunca, e força o homem a fabricar muito ferro novo para substituir o ferro velho que volta a ser ferrugem, ou óxido.

         – Que bisca o tal oxigênio! – exclamou Emília.

         – Também com a matéria orgânica o oxigênio faz a mesma coisa. Oxida-a, enferruja-a, combina-se com o carbono que há nela e solta o hidrogênio. Mas quando a matéria orgânica fica enterrada, e portanto fora de contato com o oxigênio da água ou do ar, podem acontecer coisas diferentes – como essa de formar-se o petróleo.

         – Mas se é assim – disse Pedrinho – então o homem pode, se quiser, fabricar petróleo…

         – Pode e já fabricou. Um sábio alemão, de nome Engler, provou que as graxas de origem vegetal ou animal se transformam em petróleo, quando aquecidas a uma temperatura de mais ou menos 400 graus a uma pressão de 20 a 25 atmosferas.

         – Que história de pressão atmosférica é essa?

         – Pressão atmosférica é o peso que o ar exerce sobre um corpo.

         – O ar então tem peso?

         – Claro que tem. Todos os corpos têm peso.

         – Parece tão leve…

         – Leve é, não há dúvida; levíssimo até, mas tem peso. Um litro de ar pesa um bocadinho mais de um grama. E como a atmosfera é a camada gasosa que vai desde o nível do mar até lá em cima onde o ar acaba, essa camada atmosférica está sempre fazendo peso sobre tudo que existe na terra, inclusive nós, gente. Uma coluna de ar de um centímetro quadrado de base pesa 1.033 gramas, ou 1 quilo e 33 gramas.

         – Puxa! – exclamou Emília. – Mais de um quilo para cada centímetro quadrado, que é uma isca de espaço!… Não entendo! Se é assim, então o peso do ar sobre a cartolinha do Visconde deve ser duns dez quilos, porque a cartolinha, com as abas, terá uns dez centímetros quadrados de superfície. E com tamanho peso não achata a cartolinha?

         – Porque essa pressão se exerce de todos os lados e também debaixo para cima e de dentro para fora, de modo que se anula. Mas se a gente extrair o ar que há dentro da cartolinha, fazendo o vácuo, ela se achatará imediatamente.

         – Bom, Visconde. Basta de ar e pressões atmosféricas.. Volte ao petróleo – reclamou Pedrinho.

         – Esta digressão…

         – Que é digressão, Visconde?

         – É sair do assunto principal, como nós saímos. Esta digressão, digo eu foi para explicar por que motivo não se forma petróleo nas matérias orgânicas expostas à água ou ao ar. Para que se forme petróleo é necessário que a matéria orgânica fique isolada pelos aterros que os rios fazem com os materiais trazidos pela correnteza. No começo há mistura do aterro com a matéria orgânica; depois não se mistura mais, fica aterro puro – o qual aterro puro forma uma capa, uma camada isoladora que livra a massa de matéria orgânica do contato com a água, com o oxigênio e os outros urubuzinhos comedores de matéria orgânica. Quando isso acontece, a massa sossega e vai lentamente fabricando o petróleo.

         – Interessante! – exclamou Pedrinho, e o Visconde continuou:

         – As jazidas de petróleo mais importantes que o homem conhece encontram-se, como já contei, perto das costas e nos extintos mares interiores, ou mediterrâneos, como foi o nosso Mar de Xaraés. Os riquíssimos campos de petróleo de Bacu, rente ao Mar Cáspio, estão nessas condições. O mesmo direi dos campos petrolíferos da Mesopotâmia, rente ao Golfo Pérsico. Aqui na América do Sul temos os campos petrolíferos de Comodoro Rivadávia, na Argentina, rente ao Golfo de S. Jorge. Esse golfo já foi muito maior. Os aterros é que o reduziram ao tamanho atual. Na parte aterrada os argentinos abriram mais de 3.000 poços de petróleo.

         – Então é fácil saber onde está o petróleo – disse Pedrinho. – Basta determinar se uma terra é formada de aterro do mar.

         – É o que os argentinos estão fazendo. Por meio de estudos geológicos e geofísicos, eles procuram determinar as terras de aterro para nelas abrirem as perfurações.

         – Está tudo muito bem, Visconde – disse Pedrinho. – Mas eu queria saber como a tal matéria orgânica vira petróleo.

         – Ah – exclamou o Visconde – isso é uma história bastante comprida. São precisos milhões de anos de paciência. A natureza é uma lesma nos seus processos, como já observei. Primeiro há a mistura dos sedimentos orgânicos com as areias que os rios trazem; depois acaba a mistura e começa o aterro puro. Esse aterro puro deve ser de materiais que permitam a formação duma camada impermeável, uma casca, uma capa que defenda o sossego da matéria orgânica aprisionada no fundo. Quando, em terra, uma vegetação fica por muito tempo recoberta e, por consequência, livre de contato com o ar, os vegetais, em vez de apodrecerem, transformam-se em turfa, ou em carvão de pedra. E quando, no mar, a matéria orgânica composta das gorduras e dos caldinhos dos animálculos do lodo marinho fica isolada do oxigênio, ela vai se convertendo numa série de matérias betuminosas.

         – Que é isso?

         – Matérias betuminosas são as que contêm hidrocarbonetos; o asfalto, o petróleo bruto e certos xistos são matérias betuminosas. O homem refina essas matérias para extrair os hidrocarbonetos puros empregados na indústria.

         – Mas eu quero saber como se faz a passagem do tal lodo de matérias orgânicas para petróleo – reclamou Narizinho.

         – No laboratório os químicos sabem fazer essa passagem. Já contei a experiência de Engler. Calor de 400 graus e pressão de 20 a 25 atmosferas.

         – Espere, Visconde. Vossa Excelência esqueceu de explicar o que é UMA atmosfera. Só falou na atmosfera em geral.

         O Visconde tomou fôlego e explicou:

         – Em física, a palavra “atmosfera” quer dizer uma medida de pressão, como o metro quer dizer uma medida de comprimento. Atmosfera, neste sentido de medida, equivale ao peso de 1.033 gramas por centímetro quadrado. A pressão de 20 a 25 atmosferas usada por Engler corresponde, pois, a um peso de 20 a 25 quilos por centímetro quadrado. Mas no laboratório a formação do petróleo se faz imediatamente, com a pressa com que os homens querem todas as coisas. Na natureza, não. O petróleo leva milhares de séculos se formando – e os sábios não se entendem nesse ponto. Não sabem qual é a marcha do processo de transformação.

         O Visconde passou o lencinho pelo rosto e prosseguiu:

         – Muito bem. Creio que quanto à formação do petróleo basta ficarmos nisto. Meu curso não é para formar especialistas, sim para dar uma idéia geral da coisa. Temos agora de ver quais as condições que tornam esses depósitos de petróleo exploráveis. Este ponto é da maior importância para o mundo. Se o petróleo fosse inexplorável, de nada valeria para nós. É preciso não esquecer que a formação das camadas de sedimento se deu há milhões e milhões de anos, num tempo em que o globo era ainda uma fruta fresca e roliça. Depois o coitado foi murchando até ficar a passa que é hoje.

         – Que história de fruta fresca e passa é essa, Visconde?

         – Uma comparação para que vocês me entendam melhor.

         – Comparações dessa ordem só servem para nos fazer vir água à boca – disse Narizinho. – Passas! Quem me dera ter aqui um pacotinho daquelas sem caroço – seedless, que vêm da Califórnia…

         – Pois uma passa é uma fruta murcha e ressecada, como aquele maracujá que Pedrinho descobriu atrás do armário, todo enrugadinho, cheio de montanhas e vales. Com a terra aconteceu o mesmo. Começou a esfriar e a murchar, e foi se encolhendo, e se enchendo das rugas que hoje formam as montanhas e os vales. A Cordilheira dos Andes é uma das maiores rugas desse tipo; segue através de toda a América do Sul e continua nos Estados Unidos com o nome de Montanhas Rochosas.

         – E que tem isso com o petróleo?

         – Tem que no começo as camadas de sedimento  depositadas no fundo dos mares eram horizontais, ou mais ou menos horizontais. Com o enrugamento, ou o murchamento da crosta da terra, essas camadas horizontais perderam a sua horizontalidade, tornando-se por assim dizer montanhosas, ou onduladas. Ainda existem no globo zonas onde a crosta está como era nos primeiros tempos. As grandes planícies dos pampas da América do Sul e das estepes da Rússia foram planícies no começo e continuaram planícies até hoje. Não enrugaram. Mas isso é raro. No geral a crosta se enrugou, formando as montanhas e os vales. Nesse enrugamento houve muita ruptura de camadas, com escorregamentos duma sobre outra, torcimentos, penetração duma camada em outra, etc. Mil acidentes aconteceram. Vou desenhar na pedra um desses pregueamentos dos mais simples, para mostrar onde se acomoda o petróleo.

         O Visconde berrou para tia Nastácia que lhe trouxesse o quadro-negro e o giz.

         A preta saiu, estonteada de sono (o quadro-negro morava no quarto de Pedrinho), e voltou resmungando:

         – Peixe, peixe podre, peixe seco, esqueleto de peixe… Para que serve esse lixo? Bobagem…

         O quadro-negro foi arrumado de jeito que o Visconde de pé na sua cadeirinha, pudesse desenhar uma figura assim:

         – Isto é um corte da terra no estado em que ela se achava antes do enrugamento. Temos uma camada sedimentária com o petróleo já formado. Notem que o petróleo fica em nível plano e em cima da água.

         – Por que em cima? – quis saber Narizinho.

         – Porque na massa de lodo aprisionado pela capa do aterro havia também água – água do mar, água salgada. E como é mais leve que a água, o petróleo, à medida que se forma, vai subindo e se colocando em cima da água. E o gás que também se forma fica em cima do petróleo, porque o gás é mais leve que o petróleo. A ordem de colocação, pois, é, primeiro água, depois petróleo, depois gás.

         Dona Benta piscou para tia Nastácia, como quem diz: “Que danadinho, hein?” O Visconde continuou:

         – Muito bem. Mas um petróleo que se acha disposto dessa maneira de nada serve ao homem. Não há jeito de recolhê-lo. Para que o petróleo sirva é necessário que se aglomere num certo ponto – o que se dá quando as camadas sofrem o tal enrugamento. Vamos fazer outro desenho, com estas mesmas camadas já enrugadas. Teremos isto:

         – As camadas enrugaram – explicou o Visconde – ficaram onduladas que nem montanha russa. E que aconteceu com o petróleo já formado e acumulado por igual em cima dos sedimentos?

         – Subiu para a parte mais alta por ser mais leve que a água – respondeu Pedrinho.

         – Exatamente. O petróleo subiu e ficou entalado entre o gás, em cima, e a água, embaixo. Essas rugas têm o nome de anticlinais, quando são para cima e em forma de montanhas; e têm o nome de sinclinais quando são para baixo, em forma de vale. O petróleo nunca está no topo do anticlinal, sim nas encostas. Se abrirmos um poço bem no pico do anticlinal, não sai petróleo, sai gás. Se abrimos um poço muito no pé das encostas, sai água. Mas se abrimos um poço bem na encosta, sai petróleo.

         – Então é facílimo tirar petróleo – observou Pedrinho.

         – Seria, se nós aqui de cima pudéssemos ver com os nossos olhos essas dobras lá dentro da terra. Infelizmente nossos olhos não penetram fundo assim.

         – E como fazer, então?

         – Por meio de observações geológicas, isto é, de estudos da terra na superfície, os homens conseguem, muitas vezes, localizar esses anticlinais. Ultimamente apareceu uma ciência nova que  tem ajudado muito: a Geofísica. Graças aos processos geofísicos é possível determinar com muita precisão os anticlinais e os sinclinais, e, portanto, marcar os melhores pontos para as perfurações.

         – Emília antigamente tinha uns olhinhos de ver através dos corpos opacos – disse a menina olhando para a boneca. – Quem sabe se com esses olhinhos podemos determinar algum anticlinal de petróleo aqui no sítio de vovó?

         Emília remexeu-se toda.

         – Ainda não fiz a experiência, mas acho possibilíssimo. Hei de verificar esse ponto.

         Tia Nastácia arregalou os olhos, murmurando:

         – Credo! – e como o relógio marcasse nove horas, foi se levantando.

         – Basta por hoje – disse Dona Benta, erguendo-se também. – Continuo a aprovar a ciência do Visconde. Tudo quanto ele disse está de acordo com o que os geólogos ensinam. Ele é um sábio de verdade, mas… cama, cama, criançada!

         Meia hora depois todos dormiam, sonhando com anticlinais, matérias orgânicas, hidrocarbonetos e peixinhos fósseis. Emília sonhou com uma baleia imensa, que esguichava petróleo.

 

4 – Petróleo! Petróleo!

         No serão seguinte, antes de o Visconde começar a aula, cada um contou o sonho geológico que teve. O de Emília, como sempre, foi o mais complicado. Tinha-lhe aparecido uma “baleia petrolífera”, com várias torneiras pelo corpo imenso; uma que dava gasolina; outra, querosene; outra, óleo combustível; outra, óleo lubrificante…

         – Pare, Emília! – gritou Narizinho quando a boneca chegou nesse ponto. – Vovó fala de 300 produtos extraídos do petróleo. Quer dizer que a sua baleia vai ter 300 torneiras pelo menos – e se você começa a encarreirar todas, o Visconde fica sem tempo de dar a lição de hoje.

         – Além disso – ajuntou Pedrinho – eu desconfio muito dos sonhos da Emília. São bem arranjados demais. Essa tal baleia com torneiras petrolíferas está me cheirando a tapeação…

         Emília pôs-lhe a língua, mas “guardou” a baleia, deixando que o Visconde abrisse a boca.

         – Muito que bem – começou ele. – Vimos ontem como se formam os lençóis de petróleo, e vimos que esses lençóis devem estar protegidos por uma capa impermeável que prenda os gases e o óleo. Vimos também que é preciso que os lençóis se enruguem e o petróleo se acumule na parte superior das dobras. Se a capa se rompe, o gás e o óleo escapam e perdem-se.

         – Perdem-se como? – quis saber Pedrinho.

         – Quando você pinga um pingo de azeite num papel, que acontece? – propôs o Visconde.

         – Acontece que o azeite vai se espalhando até tomar conta do papel inteiro.

         – Isso mesmo. Espalha-se, vai caminhando. O mesmo se dá com o petróleo lá do fundo, quando a capa impermeável se  rompe. Vai se espalhando, vai subindo, até chegar à superfície da terra. Em muitos pontos do Brasil vemos os tais xistos e arenitos betuminosos, que não passam de materiais impregnados do petróleo que veio subindo do fundo. No Vale do Paraíba, aqui em São Paulo, no Riacho Doce, em Alagoas, em São Gabriel, no Rio Grande do Sul e em muitos outros pontos existem grandes  quantidades de xistos betuminosos. Esse betume é sinal de petróleo do fundo que subiu até em cima.

         – Antes de mais nada, Visconde, explique o que é xisto.

         – Xisto é uma argila compacta que aparece em lâminas, ou camadinhas; e arenito já ensinei: é areia com os grãozinhos cimentados entre si, formando uma espécie de pedra meio dura.

         – Nesse caso, quando há em cima da terra xisto ou arenito betuminoso não deve haver petróleo no fundo. Se o petróleo chega até em cima, então não está mais acumulado lá onde se formou.

         – É e não é assim – respondeu o Visconde. – O petróleo existente na camada subterrânea pode ter-se derramado todo ou em parte. Por uma fenda, ou racha na capa impermeável, pode subir uma parte do petróleo, ficando o resto no fundo.

         – Tome fôlego, Visconde. Não temos pressa.

         O Visconde encheu de ar os pulmões e continuou:

         – Muito bem. Já sabemos ser indispensável que a capa do petróleo seja impermeável e inteiriça, sem fendas ou portas por onde o óleo fuja. Temos agora de saber mais uma coisa: os lençóis de petróleo não são compostos de petróleo solto, líquido; ele está sempre misturado com areia, formando uma papa. Os geólogos dizem, na sua linguagem técnica, que “a camada portadora de petróleo tem de ser de rocha porosa”, isto é, composta de grãozinhos com espaços entre si. Nesses espaços é que o petróleo se acumula.

         – Então nas camadas de argilas não pode haver petróleo – observou Pedrinho.

         – Não pode. Os grãozinhos de argilas cimentam-se de tal modo que não fica entre eles nenhum espaço em que o petróleo se acomode. Essas camadas de argila servem de capa, isso sim.

         – Bem – continuou o Visconde depois de uma pausa. – Estamos na capa impermeável. Com o enrugamento da terra, a capa, no alto dos anticlinais, fica muito perto da superfície do solo; e, portanto, está mais arriscada a romper-se.

         – Por quê?

         – Sempre por artes da Senhora Erosão. Não sua mania de corroer tudo, ele vai rebaixando o solo, afundando-o até que alcança o alto da capa impermeável e a ataca. O anticlinal é uma montanha enterrada – e a Erosão tem ódio às montanhas, como já vimos. Não admite nenhuma. Quer arrasá-las todas para deixar a terra uma planície sem fim.

         – Como é democrática! – exclamou Narizinho.

         – Sim a Erosão é inimiga das grandezas. O Himalaia, por exemplo, que é a montanha mais alta do mundo, já foi muito mais alta. A erosão vai raspando, vai roendo, vai destruindo essa orgulhosa montanha, até que um dia dê cabo dela.

         – Que dia?

         – Um dia lá no futuro, daqui a 100 ou 200 milhões de anos. Nesse dia a terra toda estará lisinha, sem nenhuma das rugas que se formaram quando houve o tal enrugamento.

         – Que bom para as geografias dessa época! – exclamou Emília.

         – Por quê?

         – Porque com o desaparecimento das montanhas desaparece das geografias a parte mais pesada, justamente as montanhas. Que gosto estudar geografia lá para o ano 20000000037!

         – Ficarão mas é muito sem graça – disse Narizinho. – Acho as montanhas a coisa mais linda do mundo. Os Andes! O Himalaia! O Monte Branco, na Suíça! As neves que há nas montanhas, as águias, os condores, a edelvais – tudo isso desaparecerá…

         – Sim, tudo desaparecerá porque a Erosão não para nunca. Rói sem cessar, para fazer aterros na água.

         – Boba! – exclamou  Emilia. – Desde que não pode destruir a água, o mais que consegue é que a água se mude dum ponto para outro. Quem aterra um mar não destrói a água desse mar – obriga-a a mudar-se, só.

         – Isso mesmo – concordou o Visconde. – E essas mudanças são contínuas. Tudo está mudando, sem que a gente o perceba. Os mares estão virando continentes; e os continentes, virando mares. E a incansável operária dessa eterna mudança é sempre a Senhora Erosão. No caso do petróleo, a Erosão vai roendo a crosta por cima dos anticlinais, roendo, roendo, roendo, baixando cada vez mais o nível da superfície até que toca na capa do petróleo. Começa a afinar essa capa, e por fim a rompe no ponto mais alto. O petróleo então escapa – ou aflora, como dizem os geólogos.

         – Que é aflorar?

         – É aparecer à flor da terra.

         – Terra tem flor? – disse Emília, arregalando os olhos.

         O Visconde coçou a cabeça.

         – Flor, Emília, não é só esse mimo colorido e perfumado que as plantas produzem. A palavra flor também significa superfície. Quando a gente diz: À flor da pele, está dizendo: na superfície da pele. Aparecer à flor da terra quer dizer aparecer na superfície da terra. Logo, quando uma coisa aparece à flor da terra, aflora. Aflorar é isso; é aparecer na superfície. Entendeu?

         Emília fez um focinhinho de lebre, sinal de que tinha entendido. O Visconde continuou:

         – O petróleo aflora, escapa, escorre, põe-se em contato com o oxigênio do ar – e o oxigênio o oxida, transformando-o em asfalto. Há pelo mundo numerosos depósitos desses restos do petróleo vasado pelos anticlinais roídos pela erosão. Nesses casos, procurar petróleo ali é tolice. Se ele se derramou, como há de estar lá dentro?

         – Mas pode estar perto, em outro anticlinal que ainda não fosse alcançado pela Erosão – observou Pedrinho.

         – Perfeitamente. Perto ou embaixo do anticlinal esvaziado. As camadas, ou os horizontes, ou os lençóis de petróleo aparecem muitas vezes em série, superpostos, uns em cima de outros. Se o primeiro lençol está a 800 metros; outro estará a 1.000; outro estará a 1.500 – e assim por diante. É por isso que os petroleiros de hoje cuidam muito de perfurações profundas; e em pontos onde já tiraram petróleo a 800 metros, estão agora a tirá-lo a 1.000, 1.500 e até 3.000 metros.

         – Muito bem, Visconde – disse Pedrinho. – Pelo que o senhor diz, a Erosão tirou petróleo muito antes de o homem se ocupar disso. Logo, a grande petroleira é a Erosão.

         – Perfeitamente. Quem começou a lidar com o petróleo no mundo foi a Erosão; e observando o trabalho dela é que o homem resolveu fazer o mesmo. Em vez de esperar milhões de anos para que a Erosão rompa a capa impermeável dos anticlinais, o homem vai e fura nesses anticlinais – e passa a perna na Erosão. O homem antecipa-se à Erosão, mas para alcançar e soltar o petróleo faz o mesmo que ela: vai erodindo a terra. Uma perfuração para petróleo é uma erosão vertical, feita num espaço pequeno, num círculo de dois ou três palmos de diâmetros, em linha reta que desce da superfície até o lençol de petróleo. A Erosão natural não faz buraquinhos retos assim: rói por igual e horizontalmente toda a superfície do campo petrolífero; por esse motivo é que leva tanto tempo. Gasta milhares de anos para alcançar um anticlinal que o homem, com as suas máquinas de furar, alcança em poucas semanas de trabalho – e até em dias. Em certas zonas os petroleiros abrem um poço numa semana.

         – Numa semana? – exclamou Pedrinho.

         – Sim, numa semana. Tudo depende das rochas formadoras da terra naquele ponto. Se são rochas moles, como as argilas e os xistos, tudo corre a galope. Mas se os perfuradores encontram uma peste chamada diábase, rocha de extraordinária dureza, babau! Aí só à força de paciência de santo. No Poço do Araquá, furado aqui em São Paulo no Município de São Pedro, os perfuradores deram numa camada de diábase duríssima. Tão dura que a perfuração, que estava caminhando com a marcha de 7 metros por dia, passou a caminhar centímetros por dia – cinco centímetros, dez, quinze, para cada 24 horas de trabalho ininterrupto. Um horror!

         – E quem foi que teve a ideia de lograr a Erosão e chegar aos depósitos de petróleo antes dela?

         – Foi o Coronel Drake, nos Estados Unidos. No ano de 1859 esse coronel entendeu de abrir um poço em Titusville, no Estado da Pensilvânia – e tanto lidou que o abriu, apesar das ferramentas de que dispunha serem das mais rudimentares. Esse poço virou o pai de todos os poços abertos naquele país.

         – Quantos filhos teve? – perguntou Narizinho.

         – Mais de 900 mil. Já há mais de 900 mil poços de petróleo abertos nos Estados Unidos. Os americanos são umas feras. E como fazem tudo em ponto grande, tornaram-se o povo mais adiantado e rico do mundo.

         – E nós, no Brasil, quantos poços abrimos?

         – Que desse petróleo, nenhum. Até hoje foram abertos no território brasileiro apenas sessenta e poucos poços, na maioria rasos demais para atingirem alguma camada petrolífera.

         – Que vergonha! E a Argentina?

         – A Argentina já abriu mais de 4.000, quase todos produtivos. Por essa razão está hoje extraindo 16 milhões de barris de petróleo por ano.

         – E os outros países da América?

         – Todos estão cheios de poços de petróleo, donde tiram milhões e milhões de barris. A Venezuela conseguiu tornar-se o terceiro produtor do mundo, com mais de 140 milhões de barris por ano. O Peru extrai milhões de barris. A Colômbia extrai outros milhões. O Equador extrai outros milhões. A Bolívia, idem. Todos os vizinhos do Brasil são grandes produtores de petróleo, exceto o Uruguai e o Paraguai.

         – E por que o Brasil também não produz milhões e milhões de barris? Será que não existe petróleo aqui?

         – Não existem perfurações, isso sim. Petróleo o Brasil tem para abastecer o mundo inteiro durante séculos. Há sinais de petróleo por toda parte – em Alagoas, no Maranhão, em toda a costa nordestina, no Amazonas, no Pará, em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio Grande, em Mato Grosso, em Goiás. A superfície de todos esses Estados está cheia dos mesmos indícios de petróleo que levaram as repúblicas vizinhas a perfurar e a tirá-lo aos milhões de barris. Os mesmíssimos sinais…

         – Então por que não se perfura no Brasil?

         – Porque as companhias estrangeiras que nos vendem petróleo não têm interesse nisso. E como não têm interesse nisso foram convencendo o brasileiro de que aqui, neste enorme território, não havia petróleo. E os brasileiros bobamente se deixaram convencer…

         – Que araras! – exclamou Emília. – Mas não estão vendo petróleo sair em todos os países vizinhos do nosso?

         – Estão, sim, mas que quer você? Quando um povo embirra em não arregalar os olhos não há quem o faça ver. As tais companhias pregaram as pálpebras dos brasileiros com alfinetes. Ninguém vê nada, nada, nada… E cada ano o Brasil gasta mais de meio milhão de contos na compra do petróleo que as companhias espertalhonas nos vendem.

         – Meio milhão de contos! – exclamou Pedrinho. – Mil trezentos e tantos contos por dia! Quarenta e três contos por hora! Que doença cara é a cegueira…

         – E a profundidade, Visconde! – perguntou Narizinho. – A que profundidade vão os poços abertos pelos homens?

         – Varia. Há poços de 200 metros; outros de 500; outros de 800, outros de 1.000, de 1.500, de 2.000 etc. O mais profundo parece-me que é um de 3.468 metros, no Estado da Califórnia. Na Argentina há um com 2.500 metros, na Província de Mendonza. Mas ficam muito caros esses poços profundos. Os de preço comercial nunca vão a mais de 2.000 metros.

         – E depois que o furo alcança o depósito de petróleo, que acontece?

         – Quando o poço alcança um anticlinal intacto, isto é com a capa impermeável perfeitamente fechadinha, encontra lá, petróleo preso, submetido a pressões muito fortes, de 150, 200 ou mais atmosferas. Assim que o furo rompe a capa impermeável, essa pressão faz que o petróleo suba por ele acima e jorre. Às vezes, quando a pressão é muito forte, o petróleo esguicha com tamanha fúria que escangalha com a torre de sondagem, arremessando as ferramentas a grande distância. No México foi aberto o célebre poço de Cerro Azul, que jorrou com uma vazão de 300 mil barris por dia. O esguicho do petróleo subiu a 180 metros de altura!…

         – Que maravilha! – exclamou Pedrinho. – E a torre de sondagem, com certeza, foi para o inferno…

         – Sim, foi tudo arremessado a dezenas de metros de distância.

         – E como fizeram para domar o monstro?

         – Uma trabalheira horrível. Mas quem pode com o bicho-homem? No fim de alguns dias o Cerro Azul estava domado – estava de freio na boca, isto é, com um registro, que é uma imensa torneira adaptada à boca do cano. Esse poço produziu milhões e mais milhões de barris de petróleo, permanecendo até hoje o campeão mundial.

         – Ah, se nós descobríssemos um Cerro Azul aqui no sítio de  vovó! – suspirou Narizinho. – Eu só queria ver a cara de assombro de tia Nastácia…

         – Quem sabe?! Tudo é possível neste mundo – disse o Visconde. – Mas temos de perfurar. Sem perfurar não aparecem Cerros Azuis, nem Verdes, nem Amarelos. Quem quer ter petróleo, perfura. Esperar que ele apareça por si, é bobagem. E os brasileiros bobamente se deixaram convencer de que aqui, neste enorme território, não havia petróleo.

         – E que se faz para prevenir que o jorro de petróleo escangalhe com tudo?

         – Os petroleiros tomam todas as precauções para evitar isso, em virtude dos muitos desastres do começo. Colocam na boca do poço as tais torneiras fortíssimas, que são fechadas assim que o petróleo começa a subir. Por falta dessa precaução, certa companhia americana levou a breca.

         – Como?

         – Estava a abrir um poço e descuidou-se de colocar o torneirão. Subitamente o petróleo jorrou com enorme violência, varrendo com a sonda e arrancando os tubos de aço do encanamento. Não houve jeito de estancar o repuxo. O petróleo inundou tudo, formou uma lagoa em redor, invadiu os riachos próximos – uma verdadeira calamidade! As indenizações que os vizinhos exigiram da pobre companhia arrastaram-na à falência.

         – Que engraçado! Uma companhia que quebra por ter tirado petróleo demais! …

         – De fato foi assim. Pagou bem caro o descuido, e para evitar desastres dessa ordem os petroleiros tomam o máximo cuidado para “sossegar o leão” do petróleo quando ele começa a jorrar.

         – E essa tal pressão que há lá no fundo dos depósitos de petróleo, donde vem?

         – São pressões dos gases do próprio petróleo. O petróleo está ao mesmo tempo em estado líquido e em estado gasoso. Como os gases ficam muito comprimidos pela capa impermeável, eles exercem grande pressão; e assim que o furo rompe a capa, essa pressão força o petróleo a sair. Os gases são da maior importância para os petroleiros; por isso evitam que eles se escapem pelo furo; se o gás se escapa, lá se vai a pressão e o petróleo não subirá por si mesmo; terá de ser puxado por meio de bombas aspirantes. Depois de rasgado o primeiro furo na capa impermeável da jazida de petróleo, abrem-se outros perto; a capa vai ficando toda furadinha e por todos os furos sai o petróleo. Desse modo os petroleiros aumentam a produção do campo. Se um poço dá 1.000 barris por dia, abrindo outro eles obtêm 2.000; e assim por diante, até que a pressão dos gases diminua e a saída do petróleo esmoreça. O poço mais violento é sempre o primeiro; os abertos nas proximidades já encontram o leão sossegado, porque a pressão do gás diminuiu com a abertura do primeiro.

         – E como os poços acabam? – quis saber Pedrinho.

         – Acabam como tudo na vida – e até como as aulas – respondeu o Visconde com os olhos no relógio. Eram quase 9 horas.

         Todos se levantaram. Tia Nastácia, que dormira o tempo inteiro, ainda estava nos peixes; e certa de que o Visconde só falara de peixes fósseis, retirou-se resmungando:

         – Peixe, peixe seco, peixe podre. Para que serve isso? Peixe há de ser pescado ali na horinha. Bobagem…

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