A propósito da tradução de Medéia…

A propósito da tradução de Medéia, de Eurípides…

Comentários sobre tradução de textos clássicos.

Primeira reflexão: Todas as tragédias gregas são em versos. Não há rimas mas as frases apresentam ritmos ordenados (sequência de repetições de sílabas fortes e fracas). Os versos variam no número de sílabas e nas diferenças de ritmos, conforme sejam falas, falas com fundo musical, solos, corais; os corais variam conforme a emoção do texto cantado.

Segunda reflexão: De acordo com as características de cada língua, uma mesma idéia pode ser representada por frases curtas ou longas. Sabe-se que línguas que abusam das preposições apresentam textos mais longos do que aquelas línguas sintéticas, com declinações. Uma mesma frase varia, pois, em tamanho, de língua para língua. A língua inglesa, por exemplo, apesar de fazer uso de preposições, tem grande quantidade de vocábulos curtos, o que resulta em textos de frases curtas. (Há uma frase que, de brincadeira, é citada aos iniciantes no estudo da língua, para mostrar exatamente o contrário: Era uma vez um velhinho… Once upon a time, there was a litlle old man…)

Terceira reflexão: Esta diferença entre as características das línguas é um grande desafio para quem pretende traduzir, versificando, um texto em versos. A estrutura de um texto versificado acaba sendo uma jaula com medidas rígidas, onde devem ser ajustados a idéia, o número de sílabas, o ritmo e – mais modernamente – a rima.

Quarta reflexão: Esta dificuldade é resolvida de duas maneiras: 1. abandona-se a estrutura original em versos, assumindo-se a prosa; é um voo livre em direção à fidelidade. 2. aceita-se a jaula, ajustando dentro dela os elementos que compõem o texto, novamente, a idéia, o número de sílabas, o ritmo e a rima.

Quinta reflexão: Os resultados, geralmente, são: 1. o texto em prosa é realmente fiel mas perde-se toda a essência da forma original. 2. o texto em verso acaba por se transformar num texto pesado, um quebra-cabeças linguístico, por causa das interpolações, ordem de palavras não coloquial, sinônimos nem sempre ideais. É coisa de gênio, quando encontramos um tradução em versos que nos dê a exata idéia do original. Quando se trata de um pequeno poema, uma boa solução é mais encontradiça. No caso de obras mais longas, epopéias, odes, tragédias ou comédias… o resultado quase sempre é deficitário.
    Vou citar um exemplo: A Ilíada foi traduzida para o português, entre outros, por Manuel Odorico Mendes. Eis o início do canto primeiro:

Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
a ira tenaz, que, lutuosa aos gregos,
verdes no Orco lançou mil fortes almas,
corpos de heróis a cães e abutre pasto.

    Faço agora uma tradução do texto em prosa (mais uma vez apelo para o francês, não fui além do único ano de Grego da Faculdade):

Canta, deusa, a ira funesta de Aquiles, filho de Peleu, que tanto mal causou aos gregos, precipitando no Inferno almas corajosas de tantos heróis e fazendo, de seus corpos, pasto para cães e abutres.

Sexta reflexão: Nesse momento eu me lembro de um trecho da pequena epopéia de Olavo Bilac, O Caçador de Esmeraldas:

Fernão Dias Pais Leme agoniza. Um lamento
Chora longo, a rolar na longa voz do vento.
Mugem soturnamente as águas. O céu arde.
Trasmonta fulvo o sol. E a natureza assiste,
Na mesma solidão e na mesma hora triste,
À agonia do herói e à agonia da tarde.

    Que maravilha! É tão fácil de ler, tão limpo, escorregadio, quase prosa!

Sétima reflexão: Pensemos, também, no começo do Hino Nacional Brasileiro:
    
Ouviram do Ipiranga as márgens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante,
E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.

“Tradução” para a prosa:

As márgens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico e nesse instante, em raios fúlgidos, o sol da Liberdade brilhou no céu da Pátria.

Oitava reflexão: Deveríamos, então, anatematizar as traduções existentes em verso, por seus resultados tão malabarísticos, truncados algumas vezes, difíceis de ler?
    De jeito nenhum!
    Primeiro, porque nem todas as traduções em verso são assim. Tenho cinco traduções de tragédias gregas em Esperanto, que são a perfeição da perfeição. O Kalevala, epopéia finlandesa, o Fausto, de Goethe, a Divina Comédia e Os Lusíadas, e as peças de Ibsen, Peer Gynt e Brand, tudo em verso, foram traduzidas também para o Esperanto, de forma miraculosa. Não por acaso (Kalevala e Fausto), alguns trabalhos exigem mais de uma década.
     Segundo, porque, apesar do truncado e do malabarismo, no geral as obras traduzidas em verso recriam, sim, a atmosfera original. Nunca me esqueci de um verso desta Ilíada que citei, que me incomodou a vida inteira, por sua artificialidade:
    
    Hei filhas três no vasto meu palácio… (canto 9).
    
    … mas foi esta a versão da Ilíada que conheci antes dos vinte anos e, reconheço, cheio de gratidão, foi esta versão que me encheu de algo como uma “fúria estética”, uma emoção inesquecível pelo confronto que significou, eu, descobrindo o mundo da arte, sendo atropelado por um dos seus mais fascinantes monumentos.

Nona e última reflexão: O mal das traduções é inevitável.
    E nem falei do crime que cometi, traduzir de uma tradução. Horror dos horrores! Que fazer? Poucos países gozam do privilégio de ter profundos conhecedores de línguas antigas. País que não investe em educação está condenado a ler tradução de tradução. Em prosa.
    Ouso garantir que, se um grupo de teatro amador pretender montar uma tragédia grega baseado numa dessas traduções malditas, com certeza vai poder passar para o público o grandioso que significa o pensamento desses gênios tão antigos, tal é a força da obra, diamante bruto, invulnerável à passagem do tempo e, principalmente, invulnerável à estragos feitos pelos tradutores de tradutores – traidores de traidores.
    Tradução de livro é como legenda em filme. Ou dublagem. Não há outra saída.
    
    O pobre do Homo Sapiens fala mais de seis mil línguas. Mas a alma é uma só.

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Reflexão paralela: Antes de concluir esta série de pensamentos sobre traduções de clássicos em verso ou não, me proponho divagar sobre outro tema: o vocabulário dos textos. Geralmente, quando se lê um clássico, somos bombardeados por toneladas de palavras desconhecidas. Algumas antigas e em desuso, outras muito eruditas, outras ainda neologismos criados pelo próprio tradutor, quando ele usa radicais e afixos gregos e latinos. São tentativas de recriar a alma da palavra original, algumas vezes apenas a junção de dois vocábulos, o que é permitido por algumas línguas e não por outras; exemplo: Atena olhitáurea, a deusa Atena de olhos de touro (porque muito grandes). O que ficava bonito no grego pode ficar estranho noutra língua.
    As línguas modernas, à época do renascimento, foram enriquecidas pela introdução direta de palavras latinas ou gregas ou pela tradução literal de vocábulos compostos. Isto, porque os escritores “modernos” resolveram abandonar o latim, que era  a língua culta, e criar nas línguas nacionais. O povão dizia grande e grandão mas não sabia o que era grandíssimo. O povão sabia o que era mancha mas o autor não queria dizer a Virgem sem mancha. O escritor introduziu na lingua palavras como grandíssimo e Virgem imaculada. Ou criou o termo magnânimo – de magna alma, de grande alma. É claro que a consequência imediata foi o aumento rápido da quantidade de palavras da língua. (Por alguma razão, os franceses não quiseram assumir os superlativos latinos, de que nós, portugueses, espanhóis e italianos, gostamos tanto: fulana é belíssima.)
    Alguns tradutores, é verdade, pedantemente exageram no uso destas palavras pouco conhecidas. Mas o que se deve ter em conta é que as obras antigas, como as modernas, quando profundas, usam uma colossal quantidade de palavras diferentes. É o próprio assunto que determina isto.
    O livro Miru, Pensu, Ridu, de Paul Bennemann, de 1950, da Editora Heroldo de Esperanto (cidade?), traz uma interessante estatística, sobre a quantidade de palavras diferentes usadas por algumas obras ou autores, argumentando que as posições ocupadas são indício da profundidade de cada trabalho:
    
    Novo Testamento         4.800 palavras diferentes;
    Velho Testamento        5.600
    Obra do poeta Milton    6 a 7.000
    Ilíada e Odisséia            9.000
    Goethe                         11.000
    Shakespeare                 24.000

    Como se vê, a obra de Homero é mais ampla e rica que o Velho Testamento da Bíblia. E como se vê, também, o monstro dos monstros é o pináculo Shakespeare. Hoje em dia, com o uso do computador, acredito que esta estatística poderia envolver outros escritores. Desconheço se há gente cuidando disso.

Curitiba, 30.novembro.2010.

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