Alma desdobrada, capítulos 198, 199, 200 e 201.
198.
meu pai, meu pai!
e agora?
teríamos ainda contas a ajustar?
nada te devo, nada te cobro.
o amor que descobri em você pende agora invisível no meu peito, como uma medalha adotada e estimada.
te descobri gente, e isto teve que ser depois de tanto tempo.
não tive oportunidade de te dar o abraço final.
durante muitos anos você era um velho que eu esquecia na casa dos outros irmãos e eu pensava que não o amo e não me faz a mínima diferença que eu o veja ou não.
agora, porém, eu te sinto como elo de alguma corrente que me impulsiona ao meu futuro e me segura às origens do homem.
quando penso em você, agora, penso que você me é o que sou para leonardo e bruno:
minha causa e ao mesmo tempo o vazio inútil que existiu antes de mim.
para mim, nada importa no antes e no depois de mim: mas para o universo, sim. posso inverter essa afirmação.
meu pai, meu pai.
apareça e me olhe ainda pela última vez. com o seu casaco enorme, as calças acima da cintura, o eterno chapéu e o olhar manso e humilde, que me fala de apagadas e distantes constelações.
pare um pouco assim, não se vá ainda.
fale com sua voz rouca e frágil, nem que seja em italiano. sim, pai, fale comigo em italiano. diga arrivederci, sorrindo e saia do trem. mas antes olhe para trás que quero ter certeza de que é você.
eis o espantoso e sobrenatural fato que me aconteceu em 1980, na itália:
é noite, estou num trem que vai de lucca a pisa. é um vagão antiquíssimo, antiquíssimo. quando, nas estações, as portas se abrem, entra uma fumaça densa e azulada. o trem caminha lento e as janelas estão transpirando suores opacos. nada se vê lá fora. todo o universo se concentrou nesse velho vagão de madeira. eu me encolho de frio e cansaço, a alma perdida na solidão mais agradável. uma voz de velho, que fala sem parar, me chama a atenção. olho pra frente e vejo, de costas, um velho parecido com meu pai. o pescoço fino, os cabelos branquinhos e um chapéu. então, ele se levanta, fala mais alto, e fala com a voz do meu pai. senta-se mais próximo de mim e é como ver meu pai falando em italiano. o mesmo rosto, a mesma roupa, a mesma voz! gesticula feliz, conta histórias, sorri e olha para todos os lados. o trem pára, ele se levanta, tendo aos ombros o casacão de meu pai. olha para mim, eu sorrio apavorado, ele me diz arrivederci e se vai, desaparecendo rápido no vapor azul.
estou feliz, mas aterrado.
lembro agora dos olhos do meu pai. não mais humildes, mas terríveis olhos de falcão por sobre o nariz adunco. foi assim que o velho italiano me olhou, ainda que sorrisse.
meu pai italiano me olhou pela última vez, arrivederci, arrivederci, eu respondi trêmulo e aterrorizado pela semelhança total. ele desapareceu no azul.
arrivederci, meu pai. adeus. requiescat, requiescat.
in pace.
199.
meu pai, meu pai,
onde é que você esteve?
e que nuvem escura é essa
que esconde a antiga luz do seu olhar.
filho, venho de longe,
de estranhas terras onde se sofre e se chora!
mas,
para não fazer estremecer teu coração,
direi apenas que visitei
a terra dos homens.
meu pai, meu pai,
onde é que você esteve?
e que carga de desastre é essa
que pesa nos teus ombros?
filho, venho de longe,
de estranhas terras onde não se sabe quem se é,
nem por que se chora!
mas,
para não fazer estremecer o teu abraço,
direi apenas que visitei
a terra dos homens.
meu pai, meu pai,
onde é que você esteve?
e que máscara é essa que esconde aquele que é meu pai,
a ponto de ficar difícil de te reconhecer,
o que faço tão somente com o coração cheio de dor.
filho, chego de longe,
de estranhas terras que não se entende.
aprendi que é viagem sem volta.
é toda uma vida em que só se aprende a viver.
e aprendi que não te posso ensinar esse aprender.
e se aperto essa vida na mão
e espremo com coragem,
o que fica me é tanto e tanto,
que ainda queima meu rosto
e ainda brilha e estala
cheio de vida.
e aprendi que certas perguntas
não têm respostas!
e certas respostas
não matam a sede!
e certas sedes
são como o poço sem fundo!
e aprendi coisas mais
que já esqueci.
esqueci-as no caminho que me trouxe até você.
mas,
para não fazer estremecer
tua alminha faminta,
não direi que foi essa a herança que recebi.
nem que é esse o mesmo legado que te entrego;
direi apenas que visitei
a terra dos homens.
meu pai, meu pai,
você me esconde coisas,
querendo me proteger.
mas agora já é tarde!
200.
T…, você foi uma pequena esperança que sobrevoou durante um tempo o arquipélago das ilhas do meu desejo.
saímos uma manhã, a resolver coisas de teatro. conversamos um pouco e você disse que ficaria comigo toda a manhã, porque não tinha o que fazer. interpretei isto como uma pequena dedicação de sua parte, embrulhada numa deliciosa promessa. à noite do mesmo dia você me telefonou. passei a acreditar na possibilidade de uma história a se desenrolar entre as órbitas dos nossos destinos.
nada mais. te telefonei duas vezes a pretextos diversos, você não mais demonstrou interesse em âncoras que se fincassem nos teus mares.
convivemos tranquilos, hoje. e só.
eis aquilo que você veio significar pra mim. o prólogo de um texto desconhecido. ainda que se tenha a esperança de um romance longo e emocionante, nem sempre ele se faz realidade.
T….
201.
ouço a primeira sinfonia de brahms. estou no apartamento e amo Z…. por Z… ouço música? não. a música é mais música por que amo Z…? sim.
a sinfonia vai passando por mim, começo a pensar no homem que a compôs. no seu cotidiano. no seu jeito de sorrir e se ele se sentava na varanda e ficava cuidando do mundo que desfilava à sua frente. e quando ficou doente, gordo e velho. e de suas possíveis maneiras de olhar e sorrir e conversar.
eu te escuto com a mente e o coração, criatura, e, no entanto, você está morto.
choro. choro muito. um homem existiu um dia para que esta maravilha passasse a pertencer ao universo. veio, viveu sua vida e de sua vida escaparam luzes que nunca mais se apagariam.
choro, sim. choro por brahms.