GIL VICENTE 42. DIÁLOGO SOBRE A RESSURREIÇÃO (1535)

o centúrio

Resumo:

Dois rabinos conversam entre si. Um deles enuncia uma série de provérbios populares, aprendidos de pai, mãe, tio. “…quem chora ou canta, fadas más espanta… não comas quente, não perderás os dentes, quem não mente, não vem de boa gente, não achegues à forca, não te enforcarão”. Dois centuriões se juntam a eles e comunicam que o corpo de Cristo desapareceu, tendo ressuscitado como havia dito. Os rabinos não acreditam. Os centuriões enumeram os efeitos que a ressurreição fez com eles. Um ficou sem os cabelos, o outro sem os dentes e as unhas. Chega outro rabino e eles decidem que, se for verdade, calar-se-ão e negarão tudo. Anunciam que farão festas, para não darem a perceber que foram derrotados.

GV138. Levi (fala)

Que nos calemos em nosso calado:
… Que seja verdade, calar e negar.

(fala: Jorge Teles)

 

Comentário:

É uma peça muito curta, escrita num tom jocoso, satirizando os judeus, todavia sem menosprezá-los. A narração da ressurreição, vista pelo ângulo dos judeus. Como fez em muitos de seus autos, Gil Vicente moderniza a situação de ações antigas, falando de fatos ligados ao Portugal de seu tempo.

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GIL VICENTE 41. AUTO DE MOFINA MENDES (1534)

a Virgem

Resumo:

Um Frade entra com um sermão cheio de citações, algumas sem nexo. Diz-se enviado para apresentar as figuras do Auto: a Virgem e suas criadas, Prudência, Pobreza, Humildade e Fé. As criadas têm livros e Maria pergunta a cada uma o que estão lendo. Elas enumeram diversas profecias sobre o nascimento de Cristo. Maria exclama: “Oh, se eu fosse tão ditosa que com estes olhos visse senhora tão preciosa, tesouro da vida nossa, e por escrava a servisse”.  Entra Gabriel e faz a ela a anunciação. Prudência, Pobreza, Humildade e Fé instruem sobre as respostas ao Anjo. Após este passo, fecha-se a cortina e a cena se desloca. Pastores estão entretidos em suas tarefas e entre eles Mofina Mendes. É desajeitada. Anuncia os desastres que aconteceram a todos os animais sob seus cuidados. É despedida e recebe um pote de azeite. Há o recantado relato sobre a sonhadora que ficará rica vendendo o azeite, comprando ovos, vendendo ovos, e casando-se. Quebra-se o pote e o devaneio termina. Mofina sai cantando. Chegam outros pastores e dormem. Segue-se a segunda parte do Auto natalino, que é uma “contemplação” da natividade. Virtudes conclamam ao louvor a todos e a tudo, incluindo os fenômenos da natureza. Maria pede que a Fé vá ao povoado e traga acesa a vela da fé. A Fé volta e diz que não conseguiu pessoa que a acendesse. Maria pede à Prudência que vá ao povo para acender a vela da esperança. José intercede e pede que ela desista de pedir luz às gentes. Prudência diz que não há necessidade de luz, pois que “o Senhor qu’ há de nascer é a mesma claridade”. Um Anjo canta para que os pastores acordem e adorem seu rei. Anjos tocam os instrumentos, as Virtudes cantam e os pastores dançam, saindo todos.

GV136. Mofina Mendes

Por mais que a dita m’engeite,
Pastores, não me deis guerra;
Que todo o humano deleite,
Como o meu pote d’azeite,
Ha de dar comsigo em terra.

(canta Carmen Ziege)

GV137. Anjo

Recordae, pastores!
Que vos levanteis.
Naceu em terra de Judá
Hum Deos so, que vos salvará.
Que vos levanteis.
Ah pastor! Ah Pastor!
Chama todos teus parceiros,
Vereis vosso Redemptor.

(canta Jaqueson Magrani)

 

Comentário:

Último auto natalino composto por Gil Vicente, uma peça madura e poética. Entre a anunciação e o nascimento, acontece a cena profana de Mofina Mendes.
Ao que tudo indica, alguns Autos separavam o sagrado do profano por meio de uma cortina. Alguns aconteciam em capelas, como o Auto dos Quatro Tempos. A anunciação feita por Gabriel é interessantemente dramatizada. Após cada palavra do Anjo, Maria pergunta a suas criadas o que deve responder e elas vão aconselhando suas respostas. A ave-maria acaba se transformando num lírico texto expandido.
Todo o texto da introdução, o prólogo dito pelo Frade, foi proibido nas edições de 1586 e 1624.

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GIL VICENTE 40. AUTO DA CANANÉIA (1534)

belzebu

Resumo:

Três pastoras se apresentam, representando as três leis: lei da natureza, lei da escritura e lei da graça. Silvestra, a lei da natureza, pastoreia os gentios; Hebréia, a lei da escritura, pastoreia os judeus;  Veredina, a lei da graça, é pastora dos cristãos. Esta última anuncia que o Messias já nasceu e que está pregando entre as gentes. A seguir Satanaz reclama por não ter conseguido tentar o Cristo. Belzebu lhe diz que está atormentando a filha da Cananéia. Saem e entra Cristo com seis apóstolos. Estes pedem que Cristo lhes ensine a rezar. Cristo ensina o pai-nosso, estendendo o texto em explicações detalhadas. A Cananéia vem e lhe pede para curar sua filha, que está possuída. Ela faz uma descrição do sofrimento da moça: “Tem os seus braços torcidos, os olhos encarniçados, os cabelos desgrenhados, seus membros amortecidos. Dá gritos, faz alaridos, e o socorro está em ti”. Cristo diz a ela que veio para salvar os judeus: “Meu padre me fez pastor do gado da sua vontade, das ovelhas de Jacob que procedem de Abraão”. Os apóstolos intercedem. Segue-se a passagem bíblica da réplica da mulher sobre os cachorrinhos que se alimentam das migalhas do banquete. Sua fé a salva. Sua filha é curada. Os demônios se atormentam.

GV133. Silvestra

Serra que tal gado tem,
Não na subirá ninguem.
Não na subirá ninguem.
Serra que tal gado tem.

(canta Carmen Ziege)

GV134. Veredina

Serranas, não hajais guerra,
Que eu sam a flor desta serra.
Pera ser flor desta serra.
Serranas, não hajais guerra.
E vos escusae a guerra,
Que eu sam a flor desta serra.
Eu sam a flor desta serra.
Serranas não hajais guerra.

(canta Kátia Santos)

GV134. Cananea

Senhor, filho de David,
Amercea-te de mi:
Clamabat autem.

(canta Kátia Santos)

 

Comentário:

Fez Gil Vicente este Auto a pedido de uma abadessa. É uma das últimas obras. Percebe-se um estilo maduro, fluente e equilibrado, que tira partido dos momentos mais dramáticos.
Cristo aqui aparece pela terceira e última vez na obra do autor. No Auto da Barca da Glória sua presença é muda: apenas estende os remos da barca para que os pecadores nele se apoiem e ganhem a salvação. No Auto da História de Deus, Cristo dialoga com o Diabo, resistindo às tentações, e anuncia que está indo para Jerusalém, para sofrer os tormentos. Neste auto da Cananéia, é descrita toda uma cena do apostolado.
Foi dito no comentário sobre o Velho da Horta que por duas vezes Gil Vicente se utilizou do texto do pai-nosso em suas peças. No Velho da Horta, o personagem acrescenta a cada frase em latim um desdobramento da idéia, enriquecendo-a. No Auto da Cananéia, Cristo fala a metade da oração em latim e em versos apresenta um texto em português, detalhando partes do original: “… E  direis com grande amor: seja louvado teu nome, e santificado neste nosso orbe menor como és no Céu adorado. E direis a sua alteza: o teu reino venha a nós, em que pedis fortaleza…” O resultado é um belíssimo poema.
Falemos de judeus. Sabe-se que a presença de judeus na península ibérica era maciça e vinha de longa data. O convívio entre cristãos, árabes e judeus foi pacífico durante muito tempo. No Comentário que fiz sobre a peça Auto da História de Deus, enumero a sequência de fatos que terminaram com as fogueiras da inquisição.
Gil Vicente, como não podia deixar de ter feito, por ter incluido em suas peças pessoas de todos os tipos sociais do Portugal de seu tempo, apresenta personagens judeus em alguns autos. A Sibila Cassandra é cortejada por um judeu e judeus são seus tios. Na farsa de Inês Pereira, judeu é o casamenteiro que vem apresentar à protagonista o escudeiro que toca viola. No Auto da Barca do Inferno um dos condenados é um judeu, não por ser judeu, mas porque não cumpria com os preceitos do cristianismo. No Auto da Lusitânia há a presença tranquilíssima de uma família de judeus, devendo ser eles mesmos quem vai montar um teatro para comemorar a presença da corte na cidade. Não nos esqueçamos também da carta enviada por Gil Vicente ao Rei João III, criticando a atuação de padres após o terremoto de 1531, que bradavam ser o cataclismo culpa da presença dos cristãos novos – judeus convertidos – em Portugal. A última mostra de judeus na obra do autor será no Diálogo sobre a ressurreição.
Nesse Auto da Cananéia, pela única vez, Gil Vicente se mostra preconceituoso. A pastora Hebréia diz que deve cuidar dos judeus: “… meu gado é tão erreiro, que sempre o verás errar, dum pecar em outro pecar, de cativeiro em cativeiro…”  Mas ela tinha acabado de dizer: “… tudo raposas e lobos e eu te dou minha fé, que é a mais falsa ralé que há aí nos gados todos…”

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