a espécie humana 5, 6, 7, 8 e 9

A Espécie Humana – capítulos 5, 6, 7, 8 e 9

5.   

    meu pai já tinha preparado o café.  o menino comeu rápido e já saiu.  ele nunca fica à mesa até o fim da refeição porque lá fora sempre há algo que o atrai.  continuamos sentados, eu e meu pai.   
    precisamos falar de algumas coisas sobre a rotina da casa, pai.   
    pois muito bem.   
    eu tenho que sair às tardes pra trabalhar.  tenho um empregado durante a semana.  faz os serviços lá de fora, geralmente é gramado e lenha.   
    ele pode vir uma vez por semana.   
    sim.  e se precisarmos sair todos, eu combino com ele.   
    não vamos sair todos.   
    então, sim.  e mais tarde tirarei duas férias atrasadas.   
    meu pai foi até seu saco de bagagem e tirou um jornal.   
    quero te ler uma notícia.   
    deixe primeiro que eu leve comida aos cães.   
    já fiz isso.   
    voltei-me e sentei-me novamente.  o menino passou pela janela, já montado, e acenou.   
    não me pergunte de onde eu tirei esse jornal.  
    e o velho iniciou a leitura:

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a espécie humana 0, 1, 2, 3 e 4

a casa do jorge

A Espécie Humana – capítulos 0. 1. 2. 3 e 4

(nota: a partir de hoje, 3 de julho de 2012, toda semana apresentarei 5 capítulos deste livro.)

0.   

    pode o velho conviver com o adulto que ele foi um dia?  ou com o menino?, cuja lembrança já está quase de todo apagada!

    o tempo é um espelho.  posso ver dentro desse espelho um menino distraído, mas não posso adverti-lo.  posso ver também um adulto ocupado, mas não posso consolá-lo.   

    e posso estender a mão para tocar o velho que me olha.  mas as pontas de meus dedos tocarão pontas de dedos de uma criatura que só existe nesse tempo de espelho.   

    e os três, o menino, o homem e o velho, com seus olhares tristes, me falarão daquilo que é irremediável.   

    ai de nós!, os vivos.   

1.   

a casa do jorge

ilustração: a casa do jorge, tela e óleo de Aluísio von Zuben (1979, 70cmx40cm)

    o entardecer silenciou as vozes do mundo.  os últimos pássaros teimosos se aninham em seus berços de galhinhos e plumagem.  no meio do silêncio eu espero.   
    então, sentindo que a vizinha noite está prestes a bater à minha porta, vou lá fora, abro a casinha de lenha, encho três caixas e as trago para a cozinha.   
    preciso insistir com meu fogo.  lento, ele se vai mostrando, tímido, inquieto, brincalhão, e de meu sopro sai sua vida.  ele se espalha e ilumina.  acendo as velas.   
    meu coração está cheio de ansiedade.  olho a porta da casa.  daqui a pouco entrarão meu filho e meu pai.  o menino e o velho estão para chegar e virão para ficar muito tempo.  por isso dói meu coração com esse palpitar de estranha e invencível alegria.   
    porque vem meu filho, por isso limpei vidros e arejei a casa.  porque vem meu pai, por isso lavei calçadas.  porque eles se chegam juntos, e desta vez para ficar muito tempo, por isso areei panelas e as transformei em espelhos de encantamentos.  por que eles se chegam daqui a pouco.   
    e é com o coração transbordando que corto e descasco legumes e preparo uma sopa, uma sopa cheia de saudades de outros tempos em que nós três estávamos juntos.  preparo a sopa que nós três preferimos: pedacinhos de mandioca soltos num caldo grosso e de tempero suave.   
    meus olhos voltam à porta à espera daqueles que virão.  tudo parou atento em torno a mim: o chão, os vidros, o calor que cresce lento, as panelas como que acesas; só o fogo inquieto não se segura na sua expectativa, dançando e esticando línguas tagarelas à porta de entrada.   
    eu me sento e espero.  quero estar tranqüilo porque sei que estou feliz.  mas meu coração, meu um só coração, para o que sou de pai e de filho, meu coração não aguenta a demora.   
    enquanto espero, dançam nas paredes as sombras de todas as coisas.  minha sombra espera.   
    eis que ladram lá fora os cães lá fora, na barriga da noite.  lá fora.  e uivam.   
    esse uivo sobe até os ventos e os ventos empurram as nuvens e um grande buraco no céu mostra a azulada lua nua.  meu pai e meu filho, iluminados, pairam à minha frente.  enrolados em cobertores, com seus sacos cheios da preciosa bagagem.  avançam cansados.  a lua se escondeu novamente e nós três nos miramos com os olhares cheios de alma.   
    meu pai partiu o silêncio:
    estamos aqui, enfim.  e viemos pra ficar muito tempo.   
    três abraços num só abraço.  peguei o menino no colo.   
    como é que se faz quando se tem saudades?
    chora-se.  e prepara-se a volta.   
    apertei-o mais forte e beijei-o na testa.   
    entramos.  eu, para o menino:
    quer comer uma sopinha bem gostosa?
    não.  estou com sono.  quero fazer xixi e dormir.   
    foi ao banheiro, lavou o rostinho, urinou, puxou a descarga e voltou, aconchegando-se nas almofadas.   
    preparei o prato de meu pai.  ele se sentou e pôs-se a comer.  sentei-me junto ao menino e o peguei no colo novamente.  estive a olhar o velho.  iluminado pela metade, com um lado do rosto afogado na obscuridade e tendo a silhueta assim marcada pelo vermelho das chamas do fogão lá atrás, mais parecia uma pintura do espanhol.  no lugar da malignidade, porém, pairava sobre ele uma atmosfera sacra.   
    de onde saem os pais?, pensei.  e o menino disse:
    pai, fale alguma coisa pra alimentar o meu sonho.   
    vou então falar sobre a verdade.   
    o pai suspendeu a colher e pôs-se à escuta.   
    sua sopa vai esfriar se pára pra me ouvir.   
    ele sorriu e balançou a cabeça, negando.  agora era uma escultura olhando para a eternidade.   
    de olhos nos olhos de meu pai, abraçando o quente corpo de meu filho, principiei:

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