Alma desdobrada, cap. 124, 125, 126, 127, 128, e 129.

Alma desdobrada, capítulos 124, 125, 126, 127, 128, e 129.

 

124.

          tenho a sensação, apesar de um pouco confusa, de que a cada vez que me apaixono, dou um passo em direção a um futuro por mim forjado. e não um futuro engolido. assim como se, a cada paixão, eu me preparasse para um novo estágio. a cada vez, também, mais felicidade e menos dor.

          mais felicidade e menos culpa. como isto é grande! como é bonito! como é medonhamente meu!

          quero me lembrar de minha primeira paixão homossexual.

          mas digo, antes, que já estivera apaixonado por meninas: aos nove anos, por nely. como seria possível alguém se apaixonar aos nove anos? e, no entanto, nas férias de 1951, fomos a realeza e eu estive dias e dias cabisbaixo, mudo, meio que quase choroso, lembrando dela. eu fantasiava que, se ficasse olhando a estrada, eu veria o carro do pai dela com toda a família, indo em direção ao nordeste. amava, não sabia que amava. não havia sexo dentro de mim, nem desejo nem erotismo. só a lembrança dolorida de uma menina linda e de olhos inesquecíveis.

          não sei quanto tempo a seguir, amei rejane, amiga da angela. a gente se conheceu numa festa junina da escola e, apesar da minha timidez, conversamos. à noite fui presa de estremecimentos, insonia e inquietação. imaginava que ela ia visitar a angela e íamos conversar mais ainda e, de olhos fechados, dar-lhe-ia um beijo no rosto. ela me mandou um cravo vermelho pela angela e minha alma se encheu de uma felicidade assustadora.

          a seguir, eu no segundo ano do ginásio, namorava com os olhos duas meninas que estavam sempre juntas: aurora e maria luisa. elas pegavam o mesmo bonde que eu, meier, 82. um dia peguei o bonde e vi que elas estavam próximas. como era o bonde que eu pegava para visitar a madrinha ieda, minha irmã, eu resolvi não saltar no ponto perto de casa e continuei, para descobrir onde elas saltavam. a quem eu amava? às duas. amava o par. aquela paixão de olhos durou um ano inteiro.

          no ano seguinte, eu tinha quinze anos. então, aconteceu.

          não. não quero sofrer isto tão já.

 

125.

          clara me assustava pelo fato de ser mulher. viveu na minha casa dos treze-catorze, até os dezoito. no começo, nós menores reagimos a ela, agredíamos com frases azedas e implicâncias mal conduzidas. depois, acostumamo-nos com ela. virou um tipo de irmã. nós, os menores saíamos juntos, conversávamos todo o tempo, ela estava sempre junto. num momento ou noutro, porém, ela surgia com seios volumosos, olhos brilhantes e boca sensual. não que ela me provocasse, acho que era meu instinto. daí, imediatamente, vinha à minha mente sua calcinha suja de sangue. eu tinha nojo.

 

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Alma desdobrada, cap. 118, 119, 120, 121, 122 e 123.

Alma desdobrada, capítulos 118, 119, 120, 121,122 e 123.

 

118.

          meu pai, eu te convoco a aparecer à minha frente! não o seu fantasma ou a sua memória, mas aquilo que, de você, existe dentro de mim. aquilo que te sou.

          chegue-se e converse comigo. como são confusas estas marcas de pai! que estranho fogo que não queima, redime, mas assusta tanto! eu te vejo de cabeça baixa, humilde, envergonhado. quem foi que tanto te humilhou?, criatura de amor nos olhos e tristeza no sorrir. foram porventura as mulheres da família?, as cadelas ululantes? levante a cabeça, meu pai, dentro de mim, fora de mim! levante a cabeça e diga para todos que você não vai mais parar de beber, que beber é o mundo que você construiu com a sua liberdade. e não tenha culpa, não tenha jamais o sentimento de ser culpado porque você beba. viva de novo sua vida.

          quando meu pai faleceu, bruno, meu segundo filho, estava se fazendo dentro de um ventre.

          meu pai, agora eu te amo.

 

119.

          bruno, ao contrário de leo, nasceu cor de rosa e fofinho como um bebê de brinquedo. parecia mentira ver aquele enorme boneco cheinho de carne, rechonchudo, pedindo beijos e afagos.

          você, pequenino, enquanto espermatozóide, não recebeu a atenção do pai que te imaginava caminhando cheio de vitórias, nem teve a mão a te proteger benévola, aquecendo o ventre de sua mãe.

          não. você era mais uma espécie de sonho, ele dormia meio dormindo e te pensava lutando no meio do turbilhão, pensando mais ou menos assim: conseguirá, aquele que se escolheu, chegar ao fim do tumulto e se transformar em potência de gente? bruno, foi assim que ele te deixou, meio entregue à tua própria iniciativa e assim parece que você é até hoje: senhor de si, cumpridor de seu destino, independente.

          então a A… foi trazida para o quarto, abriu os olhos enormes e cheios de luz e perguntou: nasceu? nasceu, eu disse chorando. eu já sabia o que era ser pai. chorava porque descobria como é isto de ser pai de um bebê que se transformaria no que bruno é.

 

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Alma desdobrada, cap. 113, 114, 115, 116 e 117.

Alma desdobrada, capítulos 113, 114, 115, 116 e 117.

 

113.

          depois que rodeei por três vezes a zona, sem ter tido coragem de lá entrar, desisti da idéia de trepar com uma prostituta. daria para dizer que, de certa forma, eu me resignara à condição de casto, virgem, puro. desistira de tentar, de medo da derrota.

          então, apareceu B…, minha vizinha. ela entrava e saía de nossa casa com muita liberdade – eu morava com milinha, márcia e carlinhos. eu percebi nela um certo interesse em estar junto de mim. numa noite, em que íamos sair, ela pediu que eu pintasse seus olhos. quando minha mão estava junto a seus lábios, ela a beijou. olhamo-nos. eu antevi alguma possibilidade de redenção. mas meu coração estava ligeiramente indiferente.

 

114.

          é tão confuso escrever. para quem escrevo? para mim, ou para o mundo? não seria honesto eu afirmar que escrevo só para mim. passa pela minha cabeça que eu seja lido um dia e alguém diga: que vida incrível!, esta. e que capacidade extremada de dar expressão exata a tanta difusa experiência! por outro lado, não me interessam opiniões a respeito do que faço. penso que escrevo para tentar traduzir o profundo do que sou.

 

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