Alma desdobrada, cap. 118, 119, 120, 121, 122 e 123.

Alma desdobrada, capítulos 118, 119, 120, 121,122 e 123.

 

118.

          meu pai, eu te convoco a aparecer à minha frente! não o seu fantasma ou a sua memória, mas aquilo que, de você, existe dentro de mim. aquilo que te sou.

          chegue-se e converse comigo. como são confusas estas marcas de pai! que estranho fogo que não queima, redime, mas assusta tanto! eu te vejo de cabeça baixa, humilde, envergonhado. quem foi que tanto te humilhou?, criatura de amor nos olhos e tristeza no sorrir. foram porventura as mulheres da família?, as cadelas ululantes? levante a cabeça, meu pai, dentro de mim, fora de mim! levante a cabeça e diga para todos que você não vai mais parar de beber, que beber é o mundo que você construiu com a sua liberdade. e não tenha culpa, não tenha jamais o sentimento de ser culpado porque você beba. viva de novo sua vida.

          quando meu pai faleceu, bruno, meu segundo filho, estava se fazendo dentro de um ventre.

          meu pai, agora eu te amo.

 

119.

          bruno, ao contrário de leo, nasceu cor de rosa e fofinho como um bebê de brinquedo. parecia mentira ver aquele enorme boneco cheinho de carne, rechonchudo, pedindo beijos e afagos.

          você, pequenino, enquanto espermatozóide, não recebeu a atenção do pai que te imaginava caminhando cheio de vitórias, nem teve a mão a te proteger benévola, aquecendo o ventre de sua mãe.

          não. você era mais uma espécie de sonho, ele dormia meio dormindo e te pensava lutando no meio do turbilhão, pensando mais ou menos assim: conseguirá, aquele que se escolheu, chegar ao fim do tumulto e se transformar em potência de gente? bruno, foi assim que ele te deixou, meio entregue à tua própria iniciativa e assim parece que você é até hoje: senhor de si, cumpridor de seu destino, independente.

          então a A… foi trazida para o quarto, abriu os olhos enormes e cheios de luz e perguntou: nasceu? nasceu, eu disse chorando. eu já sabia o que era ser pai. chorava porque descobria como é isto de ser pai de um bebê que se transformaria no que bruno é.

 

 120.

          a maratona de arte está chegando ao fim. sinto que estou um pouco apaixonado por Y… é demasiado bonito, terno, suave, feminino, carinhoso. algumas vezes estamos próximos. sinto que ele me deixa no coração pedaços de sutil atenção, apesar de namorar a bila todo o tempo. num momento qualquer, eu digo: não quero te perder não, viu? então, carregadíssimos que estamos todos da mais feroz felicidade e cheios de uma imensa volúpia pela vida, fazemos a última roda de biodança e devemos beijar-nos nos rostos. eu te vejo lá do outro lado da roda imensa, você balbucia, apenas mexendo os lábios: eu quero abraçar você! então eu rompo com as regras, vou até você e nós nos beijamos na boca.

          acordei.

          ressuscitei.

          o feio adormecido se transforma nisto que estou sendo estes dias, uma criatura nova, cheia de sangue e de vida.

 

121.

          cheguei em curitiba em sete de março de mil novecentos e sessenta e cinco. por que vim? não sei. não sabia. o rio me magoava muito, era uma só asfixia feita de mil promessas de sedutores pecados. a consequência do pecado era a dor. como foi que conseguiram me transformar nesse cabisbaixo e desesperado eunuco cristão? como conseguiram? rio de janeiro para mim era pecado e dor. aquelas praias, eu querendo me perder nas páginas do livro, mas prestando atenção nas pernas grossas e no sexo amassado de algum jovem forte que estivesse por perto. sentia uma vontade danada de ser cantado, de me aproximar, de ser levado para algum quarto obscuro. e no meu sonho eu deitaria a cabeça sobre o sexo macio e perfumado daquele que seria como um eterno amigo. certo é que, se houvesse o convite, eu não iria, cão treinado a resistir à felicidade. que arma bestial essa, a do pecado!

          assim era eu, até os vinte e dois anos. e descobri que poderia sair do rio de janeiro. surgiu a oportunidade de curitiba.

          hoje penso também que talvez eu procurasse algum tipo de anonimato. ou a libertação das irmãs, do clã. da sede maior dos conflitos, que seria a família.

          cheguei, pois, em curitiba. ia fazer logo logo vinte e três anos.

 

122.

          X…, ele viveu anos lembrando-se de você todas as horas do dia e da noite. o seu sono era um tremer tranquilo e iluminado. por você, ele escreveu sete grossos cadernos, sete cadernos contando todos os detalhes de uma paixão alucinantemente bela. você não quis lê-los, quando ele os ofereceu.

          mas mais tarde, leu-os e disse:

          essas coisas são suas. esse X… que existe aí não sou eu. isto tudo é você.

          e isso era a pura verdade. criei um mito para representar o objeto do meu amor.

 

123.

          você, no primeiro dia do ginásio. o professor faz a chamada, você responde: presente. todos se entreolham. a sala inteira estremece. terminada a aula, no intervalo, uma intensíssima algazarra. eles imitam mulheres, rebolam, gritam, esticando cada sílaba: presente!

          a princípio, você não percebe que é com você. eles, todavia, passam à sua frente, insolentes e impudicos.

          um grande medo, uma grande dor, uma grande miséria me sufocam; me molham os olhos; me enchem o coração de espanto.

          que mundo é este? que criaturas são estas? onde vim a cair?

          meninos de onze, doze, treze anos. quem são vocês hoje? que tipo de adultos são vocês? não vim a conhecer nenhum do que vocês vieram a ser.

          um dia, talvez, vocês venham a ler isto. saibam que não me troco por vocês.

          eu sou tudo o que sou.

          vocês são apenas o que nunca virão a ser.

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