Alma desdobrada, cap. 108, 109, 110, 111 e 112.

Alma desdobrada, capítulos 108, 109, 110, 111 e 112.

 

108.

          devo ir a petrópolis, receber uma duplicata para a madeirit. levo o primeiro volume de crime e castigo. comprei-o, porque lera recordações da casa dos mortos, um livro que achara estranhamente belo. eu tinha comprado as recordações por acaso, numa liquidação de livros; havia um nero, de alexandre dumas, e as recordações. nada sabia a respeito do autor. ninguém jamais falara a mim sobre ele. deu-se, pois, que li as recordações e comprei o crime e castigo.

          naquela época eu não sabia o que me atraía em dostoievski. eu o amei loucamente desde o princípio. nenhum homem, nenhuma criatura, me falou tanto ou tão fundo do que penso ser meu: meu coração, meu destino, minha vida, minha história, meu universo.

 

109.

          Z…, Z…, que coisas adormecem no teu coração?

          Z…, Z…, que coisas já se despertaram em você?

          Z…, Z…, me fale de mim, jorge! quero saber mais de você.

 

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Alma desdobrada, cap. 103, 104, 105, 106 e 107.

Alma desdobrada, capítulos 103, 104, 105, 106 e 107.

 

103.

         numa feira de livros no largo da carioca, comprei um livrinho com reproduções do juízo final da capela sistina. fui para casa olhando aquelas enormes criaturas cheias de uma carne rija e rósea. eu tremia, eu quase chorava. eu tinha dezessete anos.

         durante toda a noite eu tremi e me debati. uma só vertigem e uma só febre, com aqueles santos todos a provocar um temor desconhecido. eu sentia algo estranho, como a forte comoção que algumas músicas criavam em mim. a impressão deixada pelas figuras do juízo final, foi de que eu me tocara de maneira violentamente profunda com aquelas belíssimas figuras. eu entendera a mensagem artística do pintor. sua obra me comovera.

 

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Alma desdobrada, cap. 97, 98, 99, 100, 101 e 102.

Alma desdobrada, capítulos 97, 98, 99, 100, 101 e 102.

 

097.

          dois dias numa maratona de arte: expressão corporal, danças mil, bonecos, emoções em alta velocidade. quanto dormindo eu estava naqueles anos anteriores? minha vidinha parecia um computador: respostas corretas de acordíssimo com o programa. Y… paira à minha frente às vezes, com seu sorriso de anjo indefeso e seus olhos de fera benigna. enquanto danço e pulo e brinco, não percebo que estou correndo em direção à minha maior liberdade. não sei o perigo que corro: o perigo de ser feliz. é perigoso ser feliz. não percebo que meu coração cresce, se meu coração cresce pode vir a arrebentar as couraças. estou me preparando para sofrer. para me parir. para parir o eu mais meu. corro, danço, brinco, pulo em direção ao que desconheço.

 

 098.

          o trem corre em direção a amsterdam. estou entrando em terras alemãs. cansado, cheio de coisinhas juntadas aos bocados. a polícia entra e pede o passaporte. há alguém mais na cabine. a polícia usa de uma agressividade irônica e patente. não escondem o desprezo e humilham. eles não sabiam que estudei cinco anos de alemão. os dois que tinham entrado ficam olhando meu passaporte. um deles sai. já volta com alguém que devia ser chefe, porque o uniforme tinha uns enfeites a mais. zwei brasilianer zusammen? nur eins! enfim, saem. durante todo o percurso dentro de terras alemãs, um deles entrava, acendia a luz, ficava olhando minha bagagem até que eu acordasse, eu acordava e levantava a cabeça. e ele apagava a luz e saía. daí a pouco repetiam a cena silenciosa… eu comecei a sentir medo… Isto durou até a fronteira. ele apenas queria que eu acordasse e o visse.

         nada mais quero falar daquele incidente.

         direi apenas que cada povo tem a polícia eleita pelo consenso geral. no brasil a polícia tortura e mata porque o povo apoia a tortura e o assassinato. na alemanha, a polícia é alemã: sugestivamente agressiva e delicadamente violenta.

         direi mais assim: se vocês não querem que a gente ponha os pés no seu país tão perfeito, tudo bem: legislem isto! mas levem daqui os telefunken, volkswagen e todo o resto. o que pensam? somos porventura criados baratos, impedidos de transitar pelos salões do patrão?

  

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