Alma desdobrada, cap. 103, 104, 105, 106 e 107.

Alma desdobrada, capítulos 103, 104, 105, 106 e 107.

 

103.

         numa feira de livros no largo da carioca, comprei um livrinho com reproduções do juízo final da capela sistina. fui para casa olhando aquelas enormes criaturas cheias de uma carne rija e rósea. eu tremia, eu quase chorava. eu tinha dezessete anos.

         durante toda a noite eu tremi e me debati. uma só vertigem e uma só febre, com aqueles santos todos a provocar um temor desconhecido. eu sentia algo estranho, como a forte comoção que algumas músicas criavam em mim. a impressão deixada pelas figuras do juízo final, foi de que eu me tocara de maneira violentamente profunda com aquelas belíssimas figuras. eu entendera a mensagem artística do pintor. sua obra me comovera.

 

104.

         eu, com vinte e dois anos. todos me acham simpático e me admiram. sinto que as pessoas gostam de mim. eu, porém, da consciência que tenho de minhas dificuldades, sei que não sou seguro e que tenho medo. não gosto do rio de janeiro. penso que sair do rio é a solução. tentar começar ou recomeçar de um ponto do passado. como se fosse possível enganar meu passado. isto penso agora, agora penso que pensava enganar meu passado. na época eu apenas sonhava com ser feliz. e pensava que só havia um modo de ser feliz: sendo normal. e só havia uma maneira de ser normal: comendo uma mulher. sair do rio me resolveria isto.

         eu pensava.

         que pensarei hoje?

 

105.

         no momento em que o casamento se apresentava ameaçado, já destinado à dissolução, eu resolvi que não seguraria meu coração. nem reprimiria mais meu corpo. casei-me em 69. em 72 conheci o X… minha emoção foi totalmente platônica. nunca nos tocamos, até bem, bem, bem mais tarde, quando ele era já o que a sociedade considera um adulto. um tanto a seguir, não me lembro bem quando, o casamento entrou em crise. mas eu mantinha uma calma não forçada e apenas esperava que as coisas acontecessem. não me joguei no mundo, em busca de prazeres.

         não sei a partir de quando, A… disse que não queria mais dormir comigo, por uma série de razões dela, ela sempre tinha muitas razões para cada ato. eu assumi a idéia com certo agrado e realmente nunca mais dormimos juntos. ou, nunca mais fizemos sexo, apesar de continuarmos na mesma cama.

         alguns meses após esta estranha separação, eu resolvi que transaria com homens, porque me sentia de certa forma liberado. não é que antes me incomodasse a fidelidade. por amor a ela, nunca fui infiel. sucedeu apenas que não mais fazíamos amor e eu desejava outras experiências que, na minha imaginação, soariam mais sinfônicas. escrevi apolo e jacinto em 1976, sem ter tido antes experiência com outros homens. tudo acontecia, então, apenas dentro dos meus desejos.

 

106.

         leonardo e bruno constroem lentamente o seu destino. para mim, é algo que escapole ao meu controle. não os domino, não me dominam. somos, os três, vítimas de uma mesmíssima liberdade. sei que deixo neles marcas que deixarão marcas em seus atos. mas os fatos se sobrepõem a nossos atos. sei que os amo e que me amam. o que é estranho ser pai! o que é estranho ser filho! posições que não admitem jamais a troca, apenas o sonho da possibilidade da troca.

 

107.

         às vezes começo a escrever, vislumbro um aprofundamento que mergulharia a mim numa confusão metafísica. paro, de medo. não quero ter medo.

         não terei medo.

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