Alma desdobrada, cap. 59, 60, 61, 62 e 63.

Alma desdobrada, capítulos 59, 60, 61, 62 e 63.

 

059.

          eu, num seminário de manhumirim. conversara toda a tarde com alguns seminaristas. eu estava no auge da minha crise religiosa. ora abominava a igreja, culpando-a por todo o meu sofrer, ora pensava de corpo e alma entrar num seminário e me fazer padre. conversara, pois, durante a tarde com alguns seminaristas. filosofia e religião. como eu acreditava em mim! como acreditava nas minhas certezas! tinha fé naquilo em que pensava!

         deu-se que fui me deitar num enorme quarto. fazia frio e eu dormi.

         que terror foi aquele que me acordou?

  

060.

          no dia em que fiz cinco anos, minha mãe me deu um galinho de madeira, com rodinhas. talvez, no dia em que fiz seis anos. cinco ou seis, nem mais nem menos. ele tinha uma cordinha para que fosse puxado. eu, pequenino, ia e vinha dentro daquele enorme casarão, com o meu galinho atrás. se há marcas de passado que marcam, algumas marcam com o fogo da alegria. me dói muito lembrar daquele pequeno que eu era, puxando seu galinho de pau, com tamanha felicidade! faz tanto tempo, já! tanto tempo! era uma felicidade tão grande, tão insuportavelmente ameaçadora, que daria para fazer arrebentar por inteiro um coração desprevenido. teria, naquele dia, arrebentado meu coraçãozinho? quem sabe, sim, já que nunca esqueci esta passagem.

         lembro que a presença de minha mãe me cercava todo o tempo, mesmo quando ela se afastava.

 

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Alma desdobrada, cap. 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

Alma desdobrada, capítulos 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

 

053.

          quando eu tinha medo, rezava: ave-maria e pai-nosso.

         depois, por influência do protestantismo a que me fizeram aderir (eu, ligeiramente teimoso, recusei a profissão de fé até o dia em que não mais ousaram sugeri-la), eu, depois, me contentava com o pai-nosso. qualquer situação de ameaça de pânico, o pai-nosso brotava livre e solto dentro de mim.

         eu tinha pesadelos, demônios e monstros que me perseguiam a maciez do sono: acordava e desabava dentro do silêncio da alma aflita aquela fileira de pais-nossos até que o sono…

         deu-se que mudei de opinião e deus deixou de me machucar. parei de rezar, na intenção de passar a contar comigo mesmo. mas, curioso!, percebi que, quando tinha pesadelos, acordava já no meio da reza, eu principiava a rezar dentro ainda do sonho.

         se não acredito de verdade, porque rezo? me perguntei.

         nunca mais acordei rezando, após este questionamento. acordava do pesadelo, abria os olhos e olhava o escuro. não orava. às vezes, não tinha coragem para abrir os olhos.

         quantas crianças habitam cada homem? quantas?

         eu não orava.

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Alma desdobrada, cap. 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52.

Alma desdobrada, capítulos 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52.

 

046.

          de onde saíram estes adolescentes belos e sedutores a quem amo perdidamente. são eles eu? são eles meu pai? são eles meu filho? adianta saber? ou me bastaria, sempre, entregar-me perdidamente, desesperadamente, alucinadamente, desvairadamente à minha paixão? isto o que sinto, é que é o amor? o que é o amor?

 

 047.

          percorro com tanta dor e tanta ousadia as terras deste livro, para me sentir forte e adulto, mais tarde, no estrangeiro do sem-ele.

 

 048.

          ocorre também, às vezes, que não sei se o que escrevo é pérola ou cocô.

  

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