alma desdobrada, cap. 35, 36, 37, 38, 39 e 40

alma desdobrada, capítulos 35, 36, 37, 38, 39 e 40

  

035.

          fui com joão carlos assistir o mosseiev, balé russo, no maracanãzinho. acabado o milagre da dança, saímos, perdidos naquele formigueiro de pessoas não achadas. eu tinha um casaco de lã jogado sobre os ombros, mas à frente, cobrindo o peito, como não se costumava usar. ouvíamos rumores e vaias numa esquina. um grupo de rapazes fazia algazarra às custas de alguém. então eles me viram e começaram a vaiar e a gritar bicha. avançaram e me rodearam. corri. queriam me bater. eu me defendi cheio de medo, ataquei um que se aproximava, corri mais, um deles ameaçou me tirar o casaco, puxei-o, atravessei a rua e entrei num ônibus lotado. um senhor me perguntou o que aconteceu, quiseram me bater, não sei por quê.

         à noite eu delirei muito. aquela dança espantosa perseguia meus sonhos, eu acordava trêmulo e assustado, os olhos arregalados para o vazio.

         criaturas saídas do nada! minha frustração incontida imaginava futuras ocasiões em que eu me vingaria de vocês. quanta raiva inútil alimentei!

         hoje sei bem que vocês são aquilo que sempre foram: objetos que não se troca: nada existe no mundo que queira ocupar o espaço que vocês usurpam.

         quantos animais habitam um homem?

         apenas um! sempre! ele mesmo!

  

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Alma desdobrada, cap. 29, 30, 31, 32, 33 e 34.

Alma desdobrada, capítulos 29, 30, 31, 32, 33 e 34.

 

029.

          petrópolis, férias. há um abandono de mim mesmo a meus próprios sonhos. aqui, ninguém me vigia. o irmão mais velho passa o tempo inteiro fora e a cunhada se faz criança, para participar de nossas brincadeiras. ninguém aqui me pede para me comportar como homem. eu, entregue a mim mesmo, penso em coisas bonitas. só as coisas bonitas me interessam. figuras, poemas, roupas coloridas, música. há um piano semi-abandonado. as sobrinhas nunca vão até o fim de suas lições. então, eu me dou um pouco a ele. os sons são doces e belos, que mundo seria aquele construído tão somente com sons musicais e palavras comoventes? seria este mundo suficiente a si mesmo?, para defender-se contra a invasão da ilogia, da fúria, da ignorância, do terror e da vontade de destruir? e do medo e da sem-razão? não, não, não! responde agora meu apavorado coração! nenhum mundo feito apenas de poesia teria condições de resistir à força da destruição. há que ser um mundo que tenha também suas garras e seus dentes e sua fúria.

         aprendi isto com charles darwin! não seja minha escrita uma carne tenra e apetitosa, sem defesas contra predadores inescrupulosos. por isso, assim teço hoje minha escrita: cheia de demônios, com dentes e unhas.

 

030.

          minha mãe está morta. é noite. pessoas chegam silenciosas e olham. de onde, tantas primas velhas? quanta piedade pelos menores! quantos olhos lacrimejantes! as irmãs recontam a cena da morte e choram novamente. os choros raramente se isolam como poças d’água temerosas; não! é sempre uma avalanche de chuva que contamina e avança, arrebatando todos os olhos e todas as falas soluçantes; uivos e olhares perdidos nos vermelhos das lágrimas amargas.

         e então, nova seca feita de silêncios que retumbam.

         eis que as narinas farejam. o corpo de minha mãe exala um desagradável cheiro que as pessoas se recusam a reconhecer. uma qualquer tia mais corajosa dá o alarma e alivia os medos e as vergonhas. acendem incensos. tantos e tantos, cada vez mais incenso! aquele cheiro de mistura, igreja e morte, cresce lento e pesado. cada vez mais pesado.

         durante alguns anos eu sonhei, com alguma frequência, até o nunca mais, sonhei que reencontrava minha mãe. tinham errado o corpo, a que fora enterrada não era a minha mãe. ela estaria viva em algum lugar.

         eu acordava para me sentir isto que sou.

 

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Alma desdobrada, cap. 23, 24, 25, 26, 27 e 28.

Alma desdobrada, capítulos 23, 24, 25, 26, 27 e 28. 

 

 023.

          depois da minha descomunal crise por causa da rejeição inesperada de Y…, ele veio a mim e temos nos encontrado de vez em quando. às vezes ele me evita os convites e às vezes ele mesmo me convida e me seduz. ele sabe que eu, sempre, estou disposto a transar com ele. não me parece que para ele seja uma transa desagradável. me parece porém que ele não se sente bem inteiramente, quando dorme comigo. ficou claro isto, no nosso papo de antes de ontem. ele se desnuda de corpo e alma e se me entrega cheio de carinho e amor. sinto muito um bebê dentro dele, necessitando de um grande abraço protetor. ele ressoa com cada toque, estremece com cada mordida, freme ante cada demorado beijo e no momento do gozo levanta gemidos que comovem. mas, passado o grande momento, não imediatamente a seguir, mas passado todo o vestígio do prazer, seu corpo se aquieta dentro de uma melancolia enrolada em silêncio. e no nosso papo, ele falou que não se sente atraído de alma para o sexo, apenas de corpo. sei, de mim, que sempre que o tenho próximo, me sobe um desejo de repeti-lo nos braços, no corpo, por dentro e por fora. fica claro, porém, também, que é um desejo sem paixão. a paixão, alucinada e embriagadora, acabou. gosto do corpo dele, amo-o com o amor do prazer, não o amor do tudo: prazer e dor, vida e morte, passado e futuro colados a cada agora.

 

024.

          assim desse jeito é que amo a Z….

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