Alma desdobrada, capítulos 275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 282 e 283.
275.
não expliquei ainda o que é, para mim, a penúltima loucura.
a penúltima loucura é a loucura que permite ainda um retorno. se não mais se conseguir sair da loucura, eis a última loucura.
é pensar num livro e escrevê-lo. é sonhar uma casa e fazê-la. é fazer aquilo a que os homens chamam loucura, e, uma vez conseguido, verificar que nada se alterou na minha vida, a não ser a plenitude de uma nova conquista.
é ser zaratustra, sem acabar nietzsche.
é ser hamlet, sem delirar.
é ser ivan karamázof, sem ver o diabo.
é ser quixote, sem confundir moinhos com gigantes.
276.
quieto, jeremias. calma! não é ainda a hora de chorar. você não é louco, apenas um impotente, senhor de sua dor.
277.
perco o sono e começo a delirar.
estas palavras foram escritas no meu texto chamado os dez dias que não me abalaram em nada.
e eu resolvo ressuscitá-las. copio tudo e incluo na sequência disto que se parece com um livro. sobre isto, se livro ou não, não tenho certeza.
perco o sono e começo a delirar. fiz, durante o dia, um convite para sair com um estranho jovem que encontrei no terminal do ônibus. estranho porque pálido, olhar perdido, palavras tropeçantes. ele se disse doente e não quis me acompanhar.
e, no meu delírio, eu imagino o que poderia ter acontecido, se ele não tivesse recusado o convite. ele entraria no carro e eu tentaria uma conversa toda cheia de perguntas. tocá-lo-ia nas coxas, muito discretamente. dependendo da reação, os toques seriam mais invasivos. e eu perguntaria quer ir na minha casa, e diria que depois o levaria de volta, e que nada seria feito, caso ele não se sentisse à vontade. estas pequenas mentiras que organizam encontros e delimitam destinos.
e terminado o momento do prazer eu me organizaria para tranquilizá-lo e devolvê-lo ao mundo. mas o sono é meio hipnótico e eu não domino mais o seu caminho. e, apavorado, vem subitamente a imagem de que ele poderia morrer durante os espasmos do orgasmo.
o que faço? levo o corpo e o despejo num canto de rua… chamo a polícia, toda verdade deve ser revelada… faço um buraco no jardim e o enterro…
um tipo de terror domina meu sono que não é mais sono. percebo que estou tendo um pesadelo, não consigo mover o corpo e sei que estou todo suado. e surge o empregado perguntando que terra é esta que está toda mexida?… e um dos cães me aparece com um grande osso na boca… e o jovem nu, sujo de terra, sai do chão e fica repetindo eu não morri…
acordo apavorado. que bom que ele não veio comigo. não, não foi um pesadelo. apenas deixei que a imaginação seguisse o seu rumo desvairado.
aos poucos meu coração se aquieta e um torpor começa a me carregar para dentro de um sono normal. mas minha mente desenha ainda uma frase, que não é completada…
aprenda eu isto, para o dia de que nunca precisarei: a cova teria que ser bem funda, bem funda teria que ser a cova…
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