Desistória – capítulo 4.

Desistória – capítulo 4.

   

 

E não se achou mentira na sua boca.

 

 

            4. o ano dos cem anos.

 

 

            cinco anos há que nasci e já se me apresenta tão fatigante o convívio humano!

            pobres e infelizes homens, encarcerados dentro de miséria que eles mesmos constroem, clamando a forças inexistentes para que carreguem fardos fantasmas de sobre suas costas. a princípio me enchi de piedade. mas descobri que a piedade não constrói. se eu for o pai do homem, jamais deixará o homem de ser filho. percebi que, às vezes, é preciso tirar deles até a esperança, ou eles naufragarão num atormentado lago de sonhos. a sua dor não lhes ensina, eles demoram a aprender, como se demoram a aprender! esperariam ter à sua frente toda uma eternidade? será então assim tão difícil perceber que basta um erro para que se aprenda? que esperam os homens? que um poder supremo lhes abra as bocas e lhes enfie de fora para dentro a verdade da vida? como lhes dizer que a verdade sai do homem sempre, quase nunca entra?

            estão sempre dispostos a não aprender, para que lhes pese com maior tortura a sua dor. eles querem alimentar, com tanta dor, a sua culpa insaciável. não percebem que a culpa é como a bocarra de um grande ídolo montado sobre um vulcão. todo o sofrimento será insuficiente porque, caída a dor no fundo do vulcão, ela será incinerada e vai se transformar em nada. e não percebem que, para se livrar da dor, basta se livrar da culpa.

            esta foi a descoberta que eu fiz aos seis meses de idade. que minha dor era filha da minha culpa e minha culpa era conseqüência do código de ética. e que eu precisava me livrar da moral que colaram à minha face, quando nasci. e criar minha própria moral, de acordo com os profundos anseios de tudo aquilo que pertence ao meu ser. foi uma importante descoberta, talvez a mais importante da minha vida, porque me abriu as portas de tanto conhecimento e tantas emoções. foi uma descoberta que tive após um sonho inesquecível, no meu aniversário de seis meses. eu caminhava por um caminho estreito e comprido, não dava para perceber até onde ele ia, nem de onde vinha. eu ia com dificuldade, meu corpo cansado e sem muita liberdade. então percebi que eu estava amarrado: minha cabeça, meu coração, minhas pernas, meus rins, meus olhos, minha língua de todo o meu corpo saíam fios que se perdiam lá atrás. parei, voltei o rosto e vi que meus fios estavam ligados a um enorme carroção que se perdia no meio da neblina. e eu estava carregando o carroção e tudo aquilo que nele estava; como não havia de ser tão difícil caminhar e aprender? e vi então, sobre o carroção, o vulto de minha mãe sem rosto e, ainda que sem rosto, eu sentia nela um grande temor; e vi também meu pai que nunca vi, um vulto de pé, não conseguia saber se ele tinha ou não tinha cabeça. e por que estava eu condenado a carregar aqueles fantasmas tão aflitos e tão pesados? tentei me livrar das cordas, elas estavam fortemente presas, era impossível. quase fiquei impaciente, mas já tinha descoberto antes que a impaciência consome. era preciso parar e pensar. resolvi voltar. por que, se eu voltasse, não voltaria o carroção, parado que estava. e me aproximei deles e a neblina como que se dissipava lentamente e os vultos se faziam nítidos. minha mãe com sua roupa negra e um pano branco a cobrir toda a sua cabeça; meu pai, de pé, segurando com as duas mãos a sua cabeça decepada. nenhum sorriso. muito parados, mas vivos. o sonho louco do homem, que não tem limites. não tem limites o sonho louco do homem. então eu falei:

            não vou mais carregar vocês. sigam-me, se quiserem, se precisarem me seguir. mas eu me recuso a carregá-los. não quero estar condenado ao passado. sou livre!

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Desistória – capítulo 3.

Desistória – capítulo 3.

 

 

Toma o livro e devora-o.

 

            3. dias de insônia.

 

            quanto ódio cabe no coração humano?

            qual o tamanho do máximo medo suportável?

            de que poço sem fundo nasce a decisão do desafio?

            quero começar do começo.

            queria começar do começo. não sei onde é o princípio de minha história. não sei se tem princípio e menos ainda sei se é história. que seja história, já que qualquer história é história, mesmo a do projeto de homem não fecundado. nesse caso ficaria o projeto do sonho ou o projeto do desejo ou o projeto da esperança. e quantas vezes não é a história do desejo, da esperança ou do sonho, uma vazia história mais digna e perene que as histórias de tantos homens, com suas apenas urinas, fezes, babas e ejaculações? seja minha história história. história sem princípio e com final.

            como só tenho perguntas e não-sei no coração, decido por uma história já começada, sem ordem cronológica nem rigor lógico. esta que acabei de introduzir, falando de um grande ódio, um grande medo e a decisão do desafio.

            pensei a princípio evitar descrições e narrativas de um cotidiano que terminou por me trazer, através de uma insônia desoladora e controlada, a este ponto onde estou agora, o limiar do meu próprio fim. mas percebo que sem descrições e narrativas não me farei entendido. não sei se me pretendo entendido. não sei se consigo.

            sei, porém, que não quero ficar tecendo labirinto em cima de labirinto, como uma angustiada criatura de um livro antigo.

            então, resolvo pela mínima narrativa, apenas a indispensável para que se entenda aquilo que pretendo contar. e para isso, divido meu narrar em duas partes: que mundo é esse meu? e o que tenho a fazer dentro dele?

            já se passaram muitos e muitos anos desde que o grande cataclismo sobreveio. estudamos nos livros de história do homem que houve um desastre inesperado e que infelizmente naquele acidente muita gente tinha morrido e quase todo o patrimônio cultural da nossa espécie estava perdido ou prestes a desaparecer. mas os livros todos repetem que o principal objetivo da grande reconstrução tinha sido alcançado: em poucas dezenas de anos, todo o planeta voltava a viver sua vida antiga, cheia de conforto e sedução, um admirável mundo sob todos os sentidos. um grande governo, escolhido por representantes idôneos de cada continente, regia a ordem universal e dirigia as populações obedientes ao passo final. e dizem os livros que, com a participação individual, a nossa grande civilização se ultrapassará brevemente, mais breve do que sonha o ingênuo sonho do homem. e nós, leitores desses livros cheios de superlativos, escritos numa gramática impecável pelo grupo dos chamados sete sábios da terra, nós éramos compelidos a estudar todas as ciências para tentar, a cada nova vez, dar o passo heróico que separaria ainda mais fortemente nós homens daqueles que nos são inferiores na escala da vida.

            e eu fui escolhido, depois dos testes superiores na segunda escola, eu fui indicado para me dedicar de corpo e alma a um ousado projeto.

            contavam os mestres que tinham sido descobertos, voando em torno do planeta, em rotas determinadas e precisas, uns pequenos corpos feitos, possivelmente, pelo próprio homem, que emitiam sinais mínimos a algumas grandes máquinas. sabia-se que estas máquinas estavam ligadas aos telefones mas estes funcionavam independentemente delas, desde que um grupo, logo após a noite negra, tinha se dedicado inteiramente à sua ressurreição, o que foi conseguido após exaustíssimos estudos. e mais: lendo uma página não carbonizada de uma revista dos dias anteriores à noite da queda das estrelas, uma estranha página de revista com fotografias a cores, diferentes das nossas em branco e cinza e preto, lendo esta página, um grupo de pesquisadores descobriu que as grandes máquinas deveriam se prestar a comunicações a grandes distâncias, assim como se fosse possível nós do sul nos comunicarmos à mesma hora com os do norte.

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Desistória – capítulo 2.

Desistória – capítulo 2.

 

 

 

            Estes são aqueles que vieram da grande tribulação e lavaram seus vestidos.

 

            2. o grande meio-dia.

 

            é impressionante perceber a grandeza e a perseverança e a capacidade de luta do homem. é reconfortante sentir o poder de reconstrução e a grande concentração de forças que foi levada a efeito, a partir do grande desastre.

            não quero me lembrar daqueles dias de dor e de sangue. todos os que estão vivos, a não ser os mais pequeninos, têm também suas histórias cheias de espanto. eu, menina, salva por um desses monstruosos acasos inexplicáveis, quando tudo ao redor era horror e susto. e como eu, ali e acolá, criaturas avulsas saídas dos buracos, milagrezinhos mirrados de uma fortuna não programada, que se juntavam aos bocados, conjugando um milagre mais digno, de um pequeno grupo peregrino, até se perceber que o grande milagre acontecera, as pessoas se chegando em prantos, como ratos à busca de comida, de sono tranqüilo, e se juntando e se perguntando o que fazer e por onde começar.                      

            não quero me lembrar daqueles primeiros dias. há coisa que não se conta. há vergonha que não se passa adiante. há tortura que não se deve ressuscitar. há sordidez que se amarra à pedra do silêncio e se atira à água do esquecimento.

            e estes novos dias pedem esperanças. então, não quero me lembrar de escuridões, mas tão somente cantar e louvar este grande sol que se levantou hoje, este momento grandioso desse meio do dia.

            sobrevivente por um grande milagre, já que a morte coletiva me tinha rejeitado, me vi no meio de um grupo de pessoas que se amparavam, hoje compreendo que muito mais para compensar sofrimentos do que para partilhar o pão difícil. e nos víamos levantando tábuas e quebrando pedras e desfazendo ruínas e formando pequenos lares. são dias difíceis, diziam as pessoas grandes, e é preciso muita ordem. pessoas chegavam de longe, falando de reconquistas, contando que tinham conseguido fazer funcionar uma fábrica de tecidos ou que um hospital fora reconstruído. e muitas vezes éramos levados a abandonar um lar arruinado e mudávamos para uma cidade distante, com ruas melhores, com casinhas novas e cheias de uma austera alegria.

            homens chegaram do sul, explicavam os adultos, com seus planos de disciplina e trabalho e suas promessas de inesquecíveis vitórias. e eu crescia e sentia a conquista lenta do homem sobre a destruição. veio então o tempo em que não se conseguia diferençar o dia de hoje daqueles dias de antigamente, quando o mundo era tão evoluído e as pessoas tinham de tudo que queriam. mas os mais velhos, então, advertiam:

            o mundo nunca mais será o mesmo. houve perdas irreparáveis. estamos conquistando lentamente a antiga situação, mas houve perdas irreparáveis. não temos e talvez não tenhamos mais computadores. alguns funcionavam em locais não atingidos, mas não houve quem os decifrasse. contam que um velho os conhecia e começou a ensinar do seu funcionamento a um grupo de pessoas, mas eram tantos os pequenos conhecimentos que eles ignoravam, que ele desistiu de ensinar-lhes e começou a escrever suas lições, para que muitos pudessem aprender pelos livros. este homem morreu subitamente e não se encontrou até hoje alguém que o substituísse para decifrar o mistério daquelas máquinas silenciosas.

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