garças e abutres… 20

festas

20. Festas

    No final do ano, outubro ou novembro, chegou ao colégio um minúsculo grupo arisco e sorridente de menininhos de cinco anos. Sempiternas divindades! Cinco anos! De que orfanato teriam sobrado? Que freira teve que separá-los, escolhendo por este ou aquele critério, aqueles que deveriam alojar-se no meio daquela coleção da zoologia humana, ratos, cães, chacais? Que mãos de dedos magros e delicados não puderam mais embalar aquelas criaturinhas, acariciar seus rostinhos redondos, alisar a espuma do sabonete nas costas e nas coxas macias daqueles pedacinhos de gente? Cinco anos!
Alguns falavam errado, ainda. Não eram muitos, tenho idéia de uns cinco ou seis, mas deviam ser mais, porque, daqui a pouco, nas festas, eles apresentarão um teatrinho com as vogais e os sinais de pontuação.
Todos adotaram aqueles pequeninos sofredores. Era como se tivessem entrado num bando de grandes irmãos. Seus brinquedos eram respeitados, seus objetos resguardados de mãos raptoras. Acabamos por acostumarmo-nos com os pequeninos.
A partir daquele momento, eu deixei de ser um dos caçulas do colégio. Apesar disso, minha posição de protegido geral nunca foi abalada. Nunca senti ciúmes dos pequenos, como sentia de Marquinhos, por exemplo, tudo continuou como antes. Seria por causa das aulas? A geografia e as tabuadas…
É estranho que estas figurinhas de porcelana se tenham marcado dentro de mim apenas por um episódio curto, mas muito significativo. No natal, eles apresentaram um teatrinho para todos. A imagem deles permaneceu assim dentro de mim, fantasiados de letras e sinais de pontuação.
Fomos colocados em forma, cobrir, marcar passos, descansar… As professoras chegaram nervosas, alguém deu o sinal, começou o teatrinho.
O pequeno bando passarinho foi entrando. Eu estava extasiado. Eles tinham pendurado sobre o peito uma folha de cartolina muito branca. O primeiro era a letra “a”, avançou e falou um versinho. Seguiram-se o “e”, o “i”, todas as vogais falaram. Depois, foi a vez dos sinais de pontuação, a vírgula, o ponto… O ponto de interrogação me marcou muito, não lembro se pelo versinho, se pelo desenho certo, a curva bem feita, ou se pela criança que o representou.
Não sei como reagiram os outros. Eu ficara simplesmente maravilhado.
Era dia de Natal. Eu já sabia que papai-noel não existia. Se alguma coisa de mais brilhante ou luminoso estava no ar, eu não percebia. Não se ouvia canções diferentes, nenhum som além dos gritos cotidianos, além da rotina da gíria e dos palavrões. A única diferença que havia, era dizerem que o dia era dia de natal. Natal era o dia em que ele nasceu, aquele que morava na igreja, estendido dentro dum caixão de vidro, com um vestido roxo, cabelos de verdade e olhos – ainda bem – fechados.
Também sabia, mais ou menos, o que era morrer. Em Manhuaçu, aconteceu a mais remota passagem de minha vida, de que tenho lembrança: participei do enterro de um gatinho, organizado pela Zélia. E o mesmo tinha acontecido com aquele homem nascido no natal. E, todos os anos ele voltava para ser crucificado com pregos que arrebentariam a mão da gente.
À tarde, o sino tocou. Agora, sim, devia ser natal. Porque o ar estava cheio de um bonito som de bronze que demorava a sumir, ia baixando devagarinho, outro martelava forte e a música monotônica continuava. Aquele sino à tarde era muito triste. Deixou de machucar o coração, quando alguém gritou que iam distribuir doce de leite.
Doce de leite!
O doce de leite era um sorriso, era um sino sem tristeza, era um olhar de mãe-viúva do outro lado da vidraça do trem, sem lágrimas. Sei lá. Era doce, era gostoso, desmanchava-se lento, era inversamente proporcional àquela gosma grossa e fétida que tomávamos para as lombrigas. Enquanto que a gosma descia para ficar instalada dentro de cada um durante dias seguidos, o doce de leite, ainda inversamente, se diluía depressa e tudo não tinha passado de um sonho enfeitiçado.
Aquele doce era uma grande mentira.
Meu coração tropeça ao escrever.
O coração do Prometeu raquítico não resiste a todas as bicadas.
Só direi que, no resto da tarde e nos confusos sonhos da noite, as luzes e os sons pareciam de um mundo fantástico, onde habitariam as irmãs, as sereias, os carros coloridos, a mãe, a vó, os sabonetes, os cobertores…
Aquela mentira durou muito pouco.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 19

patchwork

19. Retalhos

    Há um bando aflito de pequenas lembranças me incomodando, exigindo registro. São pequeninas garças inquietas, inofensivas, apagadas. Batem-se dentro da gaiola da minha memória e, se eu as solto, elas partem numa vertigem.
Ou partem, simplesmente.
Será como uma colcha de retalhos; pedacinhos de um momento qualquer, por um motivo ou outro, inesquecível.
Lembro de um sonho apenas. Estou no meio de toda a família, caminhando no alto dum morro, cuidando para não escorregar. Sei que minha mãe está ali, não a vejo, porém. Sinto grande alegria por que estou em Manhuaçu, isto significa, então, que saí do colégio. De todos os presentes, só consigo ver a Zélia, que sorri e me dá a mão. Ela tem franja e veste um vestido curto, como numa das pouquíssimas fotos da família, o pai, a mãe e dez dos onze filhos; o mais velho já tinha casado. De repente, encontramos, no declive, um pé de tomate. Rodeamos a planta, de mãos dadas, como se brincássemos de roda ao seu redor.  Mas tudo começa a se apagar. Lembro do desespero enorme que senti, ao acordar. Aquele dia foi de uma lenta agonia. Fiquei esquecido de tudo, perdido por ali, sentindo alfinetadas confusas no coração, um aperto na alma, tanta coisa…
Um dia um marimbondo me mordeu na nuca. Foi um desespero. Senti que havia algo grudado, passei a mão e o bicho saiu voando, amarelo e preto, tinha tantos!, me deixando com o pescoço em brasa. Passava água para esfriar, o ardor durou todo um dia.
Uma vez, eu estava brincando e chegaram Geraldo e um amigo negro. Esse negro é alto e magro, ah, já sei, ele ficava no beliche de baixo e foi sobre ele que eu urinei, enquanto dormia. Eles me disseram para eu rezar pra gente sair de lá. Eles já tinham pecado, não adiantava muito, mas eu era inocente,
    e se alguém quiser molestar um inocente…
e se rezasse com fé, conseguiríamos sair. Eu tinha, sim, um tipo de inocência, pois perguntei se era para rezar como nos santinhos, de mãos postas e olhar perdido para o alto. Disseram que eu rezasse como quisesse, o importante era ter fé. Eles se foram cheios de esperança e eu me perguntei, perplexo, o que seria necessário fazer, para ser pecador. Comecei a rezar todas as noites, para constatar um horror: eu não tinha fé. Tinha medo. Se eu tivesse fé, rezaria a oração até o fim. E eu sempre me distraía, olhando para os lados e ouvindo as conversas.
E o que dizer das marchas? Atenção! Em forma! Cobrir! Marcar passo! Mar… char! Alguém tocava um bumbo e todo mundo começava a marchar. Não havia um aluno de apelido Passarinho? Não era um pouco retardado? Não era ele que marchava fora do padrão?, ambos os braços para a frente, para trás, para a frente…
De uma feita, descendo do dormitório, aquele bando, senti algo caindo na minha cabeça. Passei a mão e cuspi enojado. Alguém escarrara para o alto e caíra em cima de mim. Faziam muito isto, mas eu nunca fora premiado. Passei muito tempo debaixo da torneira, demorou para descolar-se a brancura gosmenta e esverdeada.
Não falei das tentativas de fuga. Às vezes, desapareciam para sempre. No mais freqüente, eles eram capturados, apanhavam “pra burro”. Uns, foram encontrados com enxada na mão, chapéu de palha, mas não tinham trocado o uniforme. Alguém comentou:
São uns patetas! O principal, eles não trocaram.
Mas, quando sumiam para sempre, viravam heróis.
Não é verdade que um deles foi encontrado muito e muito longe? Tinha pegado um trem, tinha conseguido roupas, tanta coisa difícil! E lá estava ele, de volta, rodeado de ouvintes, todo machucado e de mãos inchadas, explicando os sucessivos detalhes de sua aventura frustrada. Um velho índio, contando aos curumins inexperientes e medrosos, como ele quase conseguira chegar aos domínios da mãe-lua.
Certa vez, eu, Valdemar, Bojão, Zé da Silva e Hermes, falávamos de assombração. O dia terminava e já começava a escurecer. Tinham dito de garfos e facas que dançavam no refeitório, alguém tinha visto. Ou um saci, enrolando fumo. Um de nós observou que, no muro, à nossa frente, havia o desenho grande de um diabo, uma carranca feia com chifres e cavanhaque. Quem falou, primeiro, que o desenho parecia olhar pra gente? Quem continuou, dizendo que ele ria? De quem partiu a idéia de que ele se mexia na parede? E eu juro, que ele começou a se mexer. Nossos pobres corações entraram a pular, ficamos brancos e, após um ruído qualquer, o desespero nos fez correr covardemente até um grupo de grandes. Um de nós falou que a máscara do diabo estava se mexendo. Sinuca liderou, seguimos atrás, cheios de espanto, e mostramos o desenho imóvel e idiota. A zombaria foi feia. Eu morria de vergonha e já não sabia se o diabo tinha ou não rido para mim, mexendo a carranca.
Falei das redes que faziam? Com fios de carretel, uma espécie de filé, era preciso uma varinha. Teciam aquela renda aberta, com a qual faziam uma rede para prender o cabelo para trás. Eram obras de arte. Aprendi a tecê-las, mas esqueci.
Estas lembranças são estranhas. São esfarrapadas demais. Arrebentadas. Cacos de vidro…
E não quero me esquecer de falar de música. Cantávamos muito pouco, algumas canções infantis, pouquíssimas. Mas, sempre havia os hinos pátrios. Mais tarde, eu os aprendi de verdade, participando de corais escolares. Daquela época, fica na minha lembrança apenas a idéia de que todas as músicas do mundo eram muito tristes. Machucavam por dentro. E me tatuaram com uma dúvida que carregarei para sempre no coração: será que toda a música, pra ser bonita, precisa mesmo ser triste?

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 18

...fora mondo

18. Impressões de um mundo distante

    Sempre me tenho perguntado sobre meu aprendizado e minhas reações, na época, com relação aos problemas sexuais. Sei bem que a situação que presenciei era caótica, anormal e densa. Mas isto eu sei por outros caminhos, leitura, filmes, documentos, deduções. Me pergunto, pois, sobre o que eu já sabia, o que vi, o que aprendi ali dentro.
Tinha seis anos e nove meses, quando entrei. Saí com oito anos e seis meses. Nada sabia, a não ser que existiam homens e mulheres. Sabia que os homens e as mulheres faziam alguma coisa lá entre eles, mas, o que faziam, não tinha sido objeto de ruminações, até então.
Já de cara, no trem, ouvi aquela frase cortante e fria, que me obrigou a refazer minhas noções:
O Aluísio é mulher do Antonio.
Era um elemento novo, muito complexo.
Devo frisar, antes de tudo, que o assunto sexo nunca me preocupou, não devendo também incomodar os outros pequenos, porque nunca conversamos sobre isto. Assistíamos, ouvíamos, era como se falassem de aviões complicados que nada tinham a ver com nossos preciosos carrinhos de barro.
Eles cantavam uma música bem barra-pesada, que me introduziu novo conceito:
    Eu vi sua mãe no Mangue,
com a b. escorrendo sangue,
com a mão cheia de dinheiro,
às custas de um marinheiro.

Deve ter sido lá que aprendi o que vinha a ser prostituta; evidentemente nunca usaram este eufemismo inexpressivo. Soltavam o outro nome, sonoro. Contavam também aventuras fictícias, numa delas o herói brincava com uma lanterna debaixo da mesa e iluminou entre as pernas da tia, dizendo abertamente, com a boca pura e sem preconceito, o que tinha visto.
Uma outra canção não me dizia muito, porque não entendia o significado da palavra-chave, só no Pedro II é que fui aprender. A melodia é um conhecido hino católico:
    Os anjos tocam punheta,
Os anjos tocam punheta.
Galinha preta é o cu da mãe.
Galinha preta é o cu da mãe.

Aos poucos, o novo mundo ia saindo da neblina. Com movimentos obscenos, eles contavam o que se fazia com as mulheres, diante de todos, eu não entendia. Mas arquivava. Os mesmos movimentos serviam para atacar um companheiro distraído que estivesse de costas. Era fácil demais, era só entender a lição, repetida quantas vezes fosse preciso.
Tinham uma brincadeira chocante e muito usada. Estivesse algum colega sentado no chão, jogando ou conversando, vinha um outro por trás e desenhava no chão, partindo das nádegas do que estava sentado, um falo imenso, sem que a vítima se apercebesse. Na outra ponta, fazia os testículos para os lados, sentava-se ali e lá vinham os mesmos gestos, com gemidos de gato machucado. Todos começavam a rir e quando o distraído dava conta de si, se levantava rápido e saía apagando o desenho na areia, para acabar com os vestígios do vexame tão público.
Lembro que todos tomavam banho no mesmo banheiro, eles, lá, nós, aqui. Nunca prestei atenção a eles, a não ser na oportunidade em que percebi que eles tinham cabelos sobre os genitais e nós não. Também esta descoberta foi arquivada, agora, porém, absolutamente desligada de qualquer emoção.
É fato que não dávamos atenção a esses detalhes. Raramente ouvíamos as conversas até o fim, porque não entendíamos muita coisa.

Há, porém, dentro de mim, a lembrança de um episódio muito complexo. É uma cena confusa, apagada, mas, ao mesmo tempo, com detalhes de uma nitidez penetrante. Já falei antes que, com igual intensidade, só a noite na casa da professora e meu mergulho no rio, abraçado às costas do inspetor. A este episódio chamei O Acontecimento.
É confuso querer saber por que guardei o fato com alguns detalhes tão bem delineados, sem saber, porém, encadear suas partes. Aparentemente não apresenta nada de grave ou muito desagradável, a não ser a faca meio escondida e a ameaça de uma hipotética violência. Isto me faz concluir que o acontecido deve ter tido alguma relação com sexo, por causa de um dos detalhes e por ter marcado minha memória num halo de tremor e espanto.
Há uma escada encostada na parede. Um dos maiores estava sentado lá no alto, de calção. Antonio chegou-se e começaram a conversar. Eu brincava com barro exatamente debaixo da escada. Antonio tem uma faca na mão, mostrando-a e escondendo-a. A primeira frase, não, não, a única frase que ouvi, daquilo tudo, foi:
Se você contar pra alguém, eu te mato.
Eles discutem longo tempo. O rapaz, um louro forte e bonito, vai se deixando convencer, de má vontade. Suas vozes são abafadas. Ele tenta algum novo argumento, Antonio corta ríspido, falando firme, mas muito tranqüilo.
Olhei para o alto e vi que a glande do aluno estava para fora, acho que ninguém ali era circuncidado. O curioso é o fato de ser a única vez, que me lembro, de ter prestado atenção no órgão genital de algum deles, coisa que ninguém jamais escondeu.
O resto é confusão, escuridão, dúvida.
Me pergunto: por que a impressão de ter sido um problema sexual? Pela frase dita? Pela visão que me incomodou? Minha censura deve ter apagado as frases do antes e do depois, não conseguindo destruir a emoção arquivada.
É claro que agora, enquanto escrevo, as coisas se tornam evidentes, pelo conhecimento intelectual que tenho de situações como aquela, jovens de diversas idades, inspetores, confinamento… Fica dito que foi algo de muito perturbador. A faca… Se você contar pra alguém, eu te mato… O sexo do jovem lá no alto, arregaçado…

continua no próximo domingo.

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