garças e abutres… 14

sereias, caminhões...

14. Sereias, caminhões, a felicidade da criança abrange mais de um capítulo

    É reconfortante perceber que minhas perdidas alegrias ultrapassam um capítulo. Pois, o que vier após as lembranças dessas manhãs de brincadeiras, mais parece uma noite de pesadelos.
Há lembranças daquele tempo que são tão iluminadas, tão quentes, tão mágicas, que penso, sem exagero, serem suficientes para toda uma vida. Talvez não representassem nada para qualquer outra criança. Para nós, ali, despidos de tudo que fosse considerado supérfluo, para nós, pequeninos Diógenes na marra, sem cuia para beber água e com um colchão esfarelado como tonel, para nós, bastava um pedaço de barro. Um pedacinho de pau. Um chão. Medalhas seriam surrupiadas e colocadas em fila em algum alfinete. Bolas de gude acabariam nas sacolinhas inchadas dos mirolhas. Papel para pipa e bola eram mistérios a que não tínhamos acesso, pertenciam, por uma desconhecida ordem natural das coisas, aos mais velhos. Não me lembro de ter jamais cogitado se eu teria ou não direito àquelas maravilhas. Havia de ser daquele jeito e isso era tudo.
Nós, menores, nos perdíamos esquecidos dentro de nós mesmos, desenhando no chão. Aos poucos iam sendo montados painéis primitivos, como é fácil, então, compreender a arte pré-histórica. Nada de sagrado, nada de tabu, nada de magia. Desenhávamos, porque, nalgum acaso, descobrimos que era possível desenhar. A única palavra que admito poder ser aplicada àquela situação é Identificação. De um modo ou de outro, cada uma daquelas manifestações indicava um objeto com o qual nos relacionávamos, emocional ou intelectualmente, consciente ou inconscientemente. Alguém conseguiria descobrir para que serviria aquilo?
Fala-se muito em função pragmática da arte, função naturalista, função social… Penso nos habitantes de Altamira, esfregando pozinhos coloridos nas paredes da gruta. E, agora, observando, do lado de cá do muro, aquele bando silencioso e distraído de crianças a desenhar no chão, me parece estar diante do nascimento de algo gratuito e lúdico, com intenções indefinidas e desconhecidas delas mesmas, escapando à finalidade consciente.
Desenhávamos sereias e carros. Mais sereias que carros. Primeiro, a areia era alisada, tiradas as pedrinhas, afastados os lixos. Depois, o dedo corria rápido e já se montava uma multidão de sereias. Sem cenário, sem proporção entre as figuras. Cada um daqueles desenhos era suficiente a si mesmo, não se ligava a outro e, se nalgum momento, a cauda de uma sereia esbarrasse no rosto de uma outra já terminada, passava-se por cima, havendo superposição das imagens. O que interessava era o desenho enquanto ia sendo desenhado. Terminada a figura, a ânsia de uma nova criação abandonava o filhote recém-nascido e principiava outra criatura.
O forte, porém, era a nossa cerâmica. Fazíamos figurinhas de barro. Bois, cavalos, lembro de um cachorro, lembro que algum dos amigos fez um cachorro sentado sobre as patas traseiras. Os cangurus tinham na bolsa as minúsculas carinhas dos canguruzinhos. Os elefantes tinham as trombas, ora caídas, ora levantadas sobre as cabeças. Muitos patos, sempre com as asas abertas. Patos, marrecos, gansos, cisnes, era uma ave que representava a todos.
As estatuetas eram moldadas e o barro rachava rápido. Molhava-se o dedo com cuspe, para alisar, e logo os dedos e os lábios se apresentavam marrons, pela sujeira do barro. Depois, as figuras iam para o sol, endurecer. Não me lembro de brincar com aquilo. Lembro de fazer as figuras, depois, esquecê-las.
Os nossos carrinhos, porém, transformavam todo o resto numa coisa distante e inútil. Ficávamos horas e horas moldando com capricho os nossos automóveis, ônibus e caminhões.
Com o tempo, fomos ficando mais sofisticados. Não me lembro de alguma idéia original que tenha partido de mim. Sempre imitei os outros, minha timidez tolhia completamente o impulso pessoal. A primeira marca de originalidade, foram as rodas com eixo de madeira. Fazíamos o carrinho, as rodas, e ligávamos as mesmas ao carro, através de um palito que se fixava ao chassis por meio de um pedacinho de barro. Depois de seco, era possível movimentar o veículo. Acho que Valdemar fez um ônibus oco, colocando vidros nas janelas. Seguiu-se uma série de ônibus ocos, com vidros multicores. O genial foi quando Hermes fez a frente do carro oca, colocando palitinhos enfileirados, imitando as grades de um radiador. Era um trabalho demorado e carente de precisão. Mas o resultado era capaz de encher de encantamento toda a semana.
Não restam se não dois detalhes dessas horas alegres. As pedras de fogo e o córrego.
De vez em quando toda a meninada guardava pedrinhas de fogo pra esfregar uma na outra, durante a noite. A faísca, rápida e fraca, tinha o valor de uma moeda de ouro. O barulho é que era chato. E como a mania pegava, antes de dormir era aquele martelar sem fim, aqui e ali, pirilampos sonoros, estalidos luminosos, pequenas luzes efêmeras e barulhentas. Cada um se comprazia na própria obra, aguardando com ansiedade o acaso feliz em que o esfregar produzisse uma faísca mais forte. Um berro, não sei de quem, silenciava aqueles sapos de pedra. No dia seguinte, eles tornariam ao concerto de luzes, até que o berro novamente silenciasse as pedrinhas. Dormia-se no meio de um cheiro que eu cismei em classificar como sendo o cheiro de enxofre do diabo.
E o córrego? Fosse domingo, houvesse sol, estivesse o Antonio de boa vontade, íamos ao córrego. Como ter raiva daquele homem?, que nos colocava em fila, sentido!, marcar passos!, descansar!, levando a seguir o cortejo em direção ao riacho. Assim que saíamos, eu me sentia totalmente perdido. Era um mundo imenso, casinhas avulsas, capões, montanhas lá longe. O chão seco ganhava vida, chutávamos a terra, levantávamos poeira e os mais velhos, lá atrás, ralhavam.
Numa curva do caminho havia um painel gigantesco, o maravilhoso desenho de um homem tomando uma xícara de café. Vote em Brigadeiro, todos liam alto. Que homem?, que portento?, que rei seria aquele?, que conseguira fazer um retrato tão grande e colocá-lo na beira do caminho.
O córrego era pequeno, raso e estreito. Terminava numa espécie de bacia, funda e larga. Na parte rasa brincávamos os pequenos. Na funda, o inspetor e os maiores. Nós, pelados. Eles, de calção.
A alegria era contagiante. Gritos e risos, mergulhos, pulos. Certa vez, levamos uma bola de pano e ela, para espanto nosso, não afundou. Jogamos durante muito tempo até que ela subitamente desapareceu. Em vão, procuramos aflitos. Anos e anos depois do episódio foi que me ocorreu que, com certeza, a água foi penetrando aos poucos, até que ela ficasse mais pesada e foi ao fundo, sendo levada a seguir.
Há uma lembrança ligada ao córrego que muito me marcou. De igual intensidade, só consigo lembrar de outros dois fatos: a noite na casa de Dona Leca e aquele estranhíssimo episódio a que chamarei O Acontecimento. O detalhe do córrego parece mais forte que todos, uma misteriosa garça, muito nítida, mas confusa. É possível que tenha acontecido mais de uma vez. Mas no meio de tanta neblina, minha memória só retém uma cena.
Antonio me chamou e me perguntou se eu queria mergulhar com ele. Nunca tive medo de água. Ele se agachou e pediu para eu montar nas suas costas. Tinha que segurar no seu peito, se fosse no pescoço ele não ia conseguir respirar. Me segurei firme, envolvendo-o como se fosse um filhotinho de coala. Ele era enorme, parecia uma estátua. Mandou que eu respirasse fundo. Pronto? Um estalo e eu me senti envolvido por todo um universo frio. Ruídos estranhos, seria este o canto da Iara? Eu ia soltando o ar aos poucos, era confuso e extraordinário ali. Apertei os braços, ele me dava a segurança máxima e eu sabia que não podia me soltar. Finalmente os sons desapareceram, aqueles zumbidos e melodias do outro mundo. Ele nadou comigo até a outra margem. Eu era um carrapatinho maravilhado e, mais que a sensação de atravessar a parte funda do córrego, me enchia de prazer estar ali, abraçado a ele, com meu corpo todo colado às suas costas, o sexo apertadinho, sentindo por inteiro suas carnes rijas e molhadas.
Nem é preciso que o Sr. Freud explique.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 13

ladybugs...

13. Joaninhas, brincadeiras, diversões, raios de luz nunca apagados

    Dalton Trevisan, no conto O Espião, escreve que aquelas meninas nunca sorriam. Mentira! Acho que é mentira! A alma da criança não é uma corda eternamente esticada. Há de haver, aqui e ali, longe da palmatória e logo depois da comida, momentos fugazes em que a canção suba, o sorriso brote, o brinquedo distraia.
Porque, se me lembro daqueles dias perdidos, vejo que são as garças pálidas das lembranças suaves que flutuam no azul vazio. Não as garras, não os bicos envenenados de padres e palmatórias e mijões. São os brinquedos que mais demoradamente algemam minha alma a minhas recordações. E nós sorríamos. Naquelas planícies, entre o abismo de um terror e outro, nós sorríamos. Tínhamos muitos e longos momentos de paz. E estes momentos, nessa hora de agora, se agitam dentro de mim, como areias vivas de um bosque encantado. As areias levantam-se, adquirem vida. Entre um agora e um depois, nós éramos felizes. Não há por que mentir. Eu era feliz.
Eis que eles se chegam de mansinho, meus fantasminhas brancos e definhados, pedindo para que recomeçamos os nossos folguedos. Eu mesmo, eu não tenho condições de brincar. Eles, fantasminhas, vivem dentro de mim. Mas o fantasminha que devia ser eu, aquele menino dissolvido na neblina de um tempo quase de todo esquecido, com o olhar sempre triste e o rosto sempre voltado para o chão, sinto que aquele menininho morreu para sempre. Seu pecado foi estar inteiramente acorrentado a mim, ele foi dando lugar a um homem que o destruiu. Hoje, o muito que ele consegue fazer, é me ditar, de tão longe, as coisas que ele viveu lá, como as viveu.
Os outros pararam de crescer dentro de mim. São eternamente pequenos, eternamente meninos. Se hoje eu os encontrasse, não seriam mais os meus amigos. Seriam, também, adultos que mataram meus amiguinhos. Estaríamos, os de hoje e os de ontem, separados por um muro: de um lado, aquilo que eles são agora; e do outro, os pequeninos habitantes que conheci no internato.
Este muro tem frestas. Sim, o muro tem frestas e nós, os de hoje, podemos observá-los, enquanto brincam do lado de lá. Eles não se dão conta de que nós, adultos de hoje, os estamos vigiando. Não viviam para o nosso hoje, viviam o momento deles.

Uma brincadeira que era sempre repetida a intervalos curtos era a das grutas para as joaninhas. Nalguma parte do pátio, o chão era barrento. Não sei que milagre fazia aparecer no pátio pedaços de vidro colorido. Nós os guardávamos com um cuidado tremendo. Eram valiosíssimos haveres. Quando conseguíamos um caquinho, lavávamos até a total transparência e corríamos à cata de joaninhas. Elas eram de um vermelho marronzado, redondas e pintadas de preto. Havia também algumas compridinhas, verdes e vermelhas, mas estas eram muito ariscas, fugiam fácil. Apanhada a presa, fechávamos a coitadinha numa caixa de fósforo, outro milagre. Então, se começava a confecção da gruta, um buraquinho no barro. Depois de bem alisada, colocávamos lá dentro a joaninha e cobríamos com o vidro. No fechar, o vidro se turvava mas, com cuspe, nós o deixávamos novamente brilhante.
O inseto andava de cá para lá e nós o vigiávamos naquela quase escuridão.
O curioso é que nunca encontrei a joaninha no dia seguinte. Ora a gruta aparecia sem o vidro, ora desaparecia por completo, ora estava igualzinha, mas vazia.
Também pegávamos grilos. Pretinhos, miúdos. Alguém falou certa vez que, se enterrássemos a cabeça de um grilo, daí a alguns dias ela viraria uma caveirinha. Decapitávamos o coitado, arrancando rudemente sua cabeça, com os dedos. O corpo era jogado fora e a cabecinha enterrada. Nunca, também, consegui chegar ao fim da experiência. Perdíamos a cova, esquecíamos de procurá-la, sei lá.
Às vezes, jogávamos bola. As bolas eram resultado de uma paciente manifestação de artesanato primitivo. Primeiro, arranjavam trapos de pano. Os fios vinham dos macacões. As agulhas, das tardes vazias. Depois de feito um bolinho de trapos imprestáveis, começava-se a costurar pedaços pequenos de pano mais resistente ao redor. Era uma sucessiva costura de pedacinhos de pano e a bola ia engordando. Aqui e ali, um reforço para respeitar a esfera afundada. Com pouco, ela estava inteirinha, redonda e pesada. É claro que esta tarefa sempre cabia a algum dos grandes.
Alguns deles tinham bola de tênis e uma garça, mais pálida que todas, me fala de bolas maiores, de borracha. Com efeito, eu consigo vê-los lá longe, jogando com uma bola que parece bem maior do que a nossa.
Certa feita, numa pelada, instalou-se uma tal confusão diante do gol, juntou-se tanta gente em torno da bola, que esta permaneceu quase que parada, no pequeno espaço entre dezenas de pés que se chutavam. A bola ameaçava ir para um lado, já um pé a devolvia, outro mudava a sua direção, começamos todos a rir alto, chutando a esmo, a coitada da bola numa total indecisão, pisada, chutada, até que os corpos começaram a se desequilibrar e formou-se uma pirâmide de suor e corpos aflitos a gargalhar e ninguém mais conseguia respirar…
Os deuses de Homero eram peritos em gargalhadas homéricas. Mas nunca riram aquele nosso riso.
Também, que vantagem? Bastava um qualquer pedir para entrar no meio da partida e o regulamento perdia a sua sacralidade e vinha mais um e mais outro e quantos quisessem. Havia muitas confusões daquelas, aquela foi a mais espantosa.
Também íamos ao campo de futebol da cidade. Havia torneios entre os habitantes da região. Será que alguns dos nossos participavam? O que sei eu! Eles jogavam, os alunos maiores assistiam e nós, os fantasminhas, estamos correndo atrás dos gafanhotos e dos grilos. As caixinhas voltariam abarrotadas e ao abrirmos, na volta, deparávamos com um punhado de bichinhos mortos. Mas não queríamos que eles morressem!
Num desses passeios, houve um fato que muito me marcou. Sinuca narrava o jogo, proeza que exigia alta eficiência. Ele não parava de gritar, entusiasmado, exibindo-se feliz. Todos paramos, para ouvi-lo. Então, pediu a um dos grandes para continuar. O jovem começou, as palavras não apareciam, ele gaguejava, tropeçava, Sinuca repreendeu-o, era preciso vibrar, esquentar-se, estava sem vida. E deu, a seguir, uma demonstração de narração, alta, rápida, contagiante.
Nunca me esqueci de como fiquei triste naquele momento. Tive a nítida impressão de que, para se fazer alguma coisa, era absolutamente necessário ser livre.
Os grandes tinham outro tipo de brinquedos. Jogavam com um estoque, com bolas de gude e soltavam pipas.
Para jogar com estoque, era necessário ter um, o que era uma raridade, talvez por se constituir numa arma perigosa. Alisava-se bem o chão de barro (este brinquedo acontecia sempre depois de chuva), fazia-se um desenho para cada jogador. Eram as “casas” de cada um. O primeiro atirava o estoque, que devia enfiar-se no chão e ficar de pé. Da casa até o ponto feito pela queda do estoque, traçava-se uma reta. E ele continuava. O objetivo era envolver e fechar a casa do inimigo. Errando a queda, o outro começava. Duas espirais iam sendo feitas, em torno das duas casas. Ganhava o que, tendo envolvido o inimigo, acertava na própria linha, fechando o seu território.
As bolas de gude acabavam por pertencer todas a um restrito número de craques. Estes, só queriam jogar para valer. Sempre me maravilhou a pontaria daqueles semi-deuses. Eram os “mirolhas”. Eu, além de não saber pegar na bola, nunca acertava. Eu era “dedeiro”. Não me lembro de todas as regras. Um dos jogos tinha um arco com as bolas a serem acertadas. Um outro, tinha três buracos, era preciso entrar em cada um, depois de acertar alguém. Búlica. Um último tinha apenas um pequeno buraco no chão, não lembro absolutamente de regras. O nome desse último era “cuzinho”.
As pipas eram um privilégio de poucos. Santos eternos! De onde vinham aquelas linhas, aqueles papéis, aquelas varetas, aquelas giletes, aquela cola? O privilegiado ficava horas trabalhando com as varetas de bambu. Depois, fazia a armação. Uns, mais sofisticados, se davam ao luxo de usar duas cores. Montada a pipa, que eu teimava em chamar de papagaio, esticavam fios de linha ao longo do pátio e começavam a moer vidro. O vidro moído era misturado à cola e passavam tudo ao longo do fio. O objetivo era, num cruzamento entre pipas, cortar a linha do inimigo, para que a pipa desaparecesse do céu. A cauda era feita com tiras de trapos. Uma gilete era amarrada na cauda da pipa e isto a tornava, ao mesmo tempo, muito perigosa e muito vulnerável. Ela, mais facilmente cortaria a linha do inimigo. Por outro lado, exigia uma perícia maior, porque poderia cortar a própria linha.
O levantamento da pipa era um ritual. Se houvesse pipa no alto e, principalmente, se ela fosse de algum menino “de fora”, era uma verdadeira festa. O nosso herói soltava a linha aos poucos, tinha incrível destreza para enrolar o fio num pedaço de pau, dava braçadas, dava de bico, dava mais linha…
Pairava, contra o azul muito azul, um pedacinho de papel colorido. Flutuava majestoso como um anjo atento sobre a população de Sodoma. Vigiava. Era bonito demais.
Nenhum padre seria suficiente para diminuir aquela alegria.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 12

du inspektoroj kaj unu pastro

12. Dois inspetores e um padre

    É preciso dar entrada em cena a algumas figuras importantes nesta tapeçaria quase uma renda. Parece que os fios ficam soltos, sem eles. Ou é como se, a partir de agora, eu enfiasse agulhas em pontos abertos, alinhavando brechas, remendando buracos. Porque, ao mesmo tempo em que são agulhas, ativas e importantes, eles também são linhas, fios, pontos, nós, laços que apertam para dar forma, aumentar a trama do tecido.
Ou laços que são apertados.
Se penso agora nos inspetores e no padre, como marionetistas donos de nossas vontades desarmadas, procuro, para aliviá-los, imaginá-los como bonecos movidos por mãos superiores. No caso, mãos balofas de uma velha prostituta imensa e feia como algumas putas de Fellini, essa puta gorda e imunda a que chamam sociedade humana.
Nunca consegui dissolver o mistério que se armou dentro de mim a respeito dos inspetores. Eram dois. Certo. Antonio e Sinuca. Tenho recordações nítidas em que ambos participam. Mas, sempre isolados, à exceção da hora dos purgantes. Mas o mistério que se plantou dentro de mim é: qual dos dois veio antes, qual veio depois? Penso que no início era o Antonio, depois veio o Sinuca. Mas me confundo ao lembrar de coisas do final, pouco antes de partir, ao perceber que é Antonio que está lá, novamente. Como na Noite das Palmatórias, por exemplo. É muito provável que ambos trabalhassem juntos, revezando-se.
Não sei se isto vem ao caso. Não sei o quê vem ao caso. É tudo muito difuso, muito apagado, muito branco. Valeria a pena tentar decifrar tudo?
Bem, bem, bem…
Foi Antonio que nos acompanhou na nossa ida. Ele estava no trem, acompanhado do Aluísio. Antonio era mulato, enorme, muito forte. Cabelo curto, sarará. Era odiado por todos, mas se tento me lembrar de um momento em que tenha nutrido por ele qualquer sentimento negativo, não consigo. É evidente que eu partilhava do medo geral, aquele medo de gamo entregue a leões. Mas não o silencioso ódio dos outros, a surda revolta de todos os alunos.
Na verdade, meu sentimento era dúbio, como o de um filho em relação ao pai. Ele gostava muito de mim, me protegia abertamente, como faziam todos os grandes. Por isso, eu gostava dele. Mas também o temia. O conflito devia ser pior para os demais. Apanhavam, no duro, e, no entanto, ele tinha, muitas vezes, uma atitude qualquer, extremamente simpática. Havia, por exemplo, muita camaradagem no dormitório dos mais velhos. Ele dormia no leito debaixo de um beliche e conversavam até tarde. Me pergunto, porém: ele dormia de fato ali? ou apenas ficavam conversando até que o sono chegasse? Lembro de suas conversas, contavam casos de assombração. Outro problema: ele tinha lençóis? cobertor? Por que, no final, quando os colchões finos e esburacados eram usados para cobrir, nem os grandes tinham coberta. Eu e Geraldo precisávamos dormir no mesmo lado da cama, encolhidos e apertados, para poder puxar a parte inferior do colchão sobre nossos corpos. Quem sabe se Antonio dormia nalgum outro alojamento? Ou seria, ele mesmo, outra vítima da miséria geral?
Não sei, não sei, não sei, não.
Não me lembro

O destino foi cruel com Sinuca. Era o outro inspetor. Nunca me encostou a mão, creio. Mas não sinto por essa criatura nada de agradável, nada de edificante, senão um sentimento misto de ódio engaiolado e uma piedade incapaz. Era nordestino. Lábios finos, olhos maliciosos, cabelos encaracolados e grudados no crânio. Pequenino e magro como um rato faminto. Talvez, por isso, fosse tão agressivo. Antonio era enorme. Chegava e pronto. Sinuca vinha bamboleante, equilibrando-se, de calção, em cima de suas duas pernas finas e cabeludas, era preciso gritar mais alto e dar pontapés. Ele sabia ser antipático, não consigo me lembrar de nada menos desagradável em torno de sua pessoa. Seria tão só por que ele nunca me deu a mínima atenção? Ou por que ele, simplesmente, era visto por todos como um animal feroz e o medo e o ódio de todos me tivessem contaminado? Talvez, tudo isto junto. Ele era odiado mortalmente. Algum tempo antes de minha saída, ele fora espancado com violência por alguns dos alunos maiores. O ódio subira como pressão, a revolta aumentou, o desespero desesperou aqueles corações confusos e eles o apanharam desprevenido, encurralaram-no num canto escuro e se lançaram sobre ele, descarregando no carrasco a fúria de mil vítimas, transformando-se, cada um dos agressores, em procurador da cólera coletiva.
Acho que é por esta passagem que me contive, assustado, e repeti cheio de aflição a leitura do trecho em que Jerônimo e alguns negros assassinam, com pauladas, o Firmo, do Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Uma palavra não me saía da cabeça: o embrulho ensangüentado.
Sinuca sumiu de circulação e voltou macio como pena, brando, delicado. Mancava. Estava remendado como o Jaboti da fábula, que tentou viajar para a festa do céu. O Jaboti entrou no violão do Urubu e divertiu-se na festa. Na volta, o Urubu percebeu, virou o violão e o Jaboti caiu. Por isso, ele tem fissuras no casco. Assim estava Sinuca, o remendado.
Viagens ao céu podem se transformar em subida para a queda. Observação tola, desajeitada e desnecessária.
Navegando entre os alunos e os deuses do Olimpo, que eram os inspetores, flutuavam alunos especiais, com alguma descarada regalia. Seriam mensageiros entre os vermes e a autoridade?, como Mercúrio. Ou copeiros de cama?, como Ganímedes. Não sei se eram muitos, estes purgatórios vivos, que nem eram só o ranger de dentes do frio das noites sem fim, nem conseguiam ser a beatitude efêmera do poder absoluto. No alto, eram usados às escondidas, para evitar a desonra mais que conhecida. No baixo, eram desdenhados como a gralha que se enfeitou com as penas do pavão. É verdade que só me lembro de uma dessas lastimáveis criaturas, não mais gralha e ainda não pavão: Aluísio. Digo lastimáveis, pelo que ele tinha de mal visto entre os alunos; por nada mais. Eu era muito pequeno, para entender destas complexidades.

Chega de fábulas e mitologia. Não quero literatura em torno DELE. Vou tentar me restringir ao bisturi de minha memória. Talvez minha mão estremeça, enquanto escrevo. Não pretendo ser cruel, não posso ser brando.
Próximo ao colégio, morava o padre que nos dirigia.
De onde me vem a impressão tão nauseante que a memória daquele padre faz vir à tona das perdidas águas de minha alma? Ele era o dono, o senhor absoluto. Todos nós sabíamos disto. Se a palmatória feria, era ele quem dava a ordem. Se a comida piorava, algum sapo ou lagartixa havia de ter sido vomitado invisível de sua boca, junto com as instruções covardes. Todos nós sabíamos que ele era o marionetista-mor que segurava os fios que dirigiam os movimentos de Antonio e Sinuca. Todos nós sabíamos. Tanto que, na terrível Tarde da Rebelião, foi para a direção de sua casa que os brados voaram, corajosos e decididos.
Bojão não tinha nome. Amigos não precisam de nome. Aquele homem também não tinha nome. Era apenas O Padre. Para mim, uma espécie de Urubu-Rei, uma mancha negra que aparecia quando queria. Na minha memória, ele nunca anda com os pés no chão, apenas vai e vem, flutuando como um fantasma.
Parece que, durante a minha estadia no seu círculo infernal, aquele pobre mefisto fora mencionado numa das revistas cariocas ou algum jornal. Não sei das proporções do escândalo. Minha avó falava que ele recebia os presentes dos familiares, mas não os repassava aos alunos. Minha mãe mencionou pares de sapatos e roupas que nunca vimos. Foi esta reportagem que provocou o desespero de meus familiares e os levou a se empenharem em conseguir o dinheiro para a nossa volta.
A não ser um apagado vulto deslizando de negro (oh! aquele monge teutônico do filme Aleksander Niévskii), esta criatura não marcou minha alma, felizmente. Não me lembro de seu rosto, não sei de seus olhos. É apenas um abutre de asas cortadas que passeia eternamente dentro de mim. Um mosquito inoportuno que volta se eu o enxoto.
Para mosquitos da memória, não existe inseticida.
Felizmente, também, ele nos visitava pouco. Ele poderia ter aparecido mancando, arremendado, ou com uma ruga de preocupação, ou com alguma tristeza no olhar, e qualquer uma dessas pequeninas misérias humanas, poderia ter sido suficiente para me marcar para o resto da vida. Eu haveria de ter pena dele, sofrer com ele, querer achar uma desculpa, pretender perdoar seu único grande crime, que é, segundo Espinoza, o da ignorância. Quem concorda com Espinoza, é levado a perdoar facilmente.
Anos depois, eu pensarei: a culpa do pecado humano, Senhor Espinoza, não advém da ignorância, mas da imaturidade neurótica da alma humana. Só um viver social decente tornará possível o amadurecimento das relações humanas.
Mas eu não conhecia Espinoza, eu tinha sete-oito anos, pouco mais, pouco menos. Minha cabeça de hoje não tem o direito de filosofar em nome de meu destino anterior. Tinha sete-oito anos, mas não era Incapaz Existencialmente. Se eu podia sofrer, eu podia odiar. O sofrimento passou, sim, mas não se transformou num zero dentro de mim.
Não dou a ninguém o direito de perdoar em meu nome. Não dou a isto que sou hoje, o direito de agir em nome do que eu fui.
Hoje, sei que não posso condená-lo. Mas o menino que fui, já o entregou à danação.
Não apago o que pensei na época.
Nada reitero.
Estou apenas lembrando de coisas desagradáveis que já se acabaram.

Não gostaria de voltar a ver aquele homem.

continua no próximo domingo.

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