garças e abutres… 11

dona leca e dona clotilde

11. Dona Leca e Dona Clotilde

    Tive, no decorrer de minha estada naquele Colégio, duas professoras. Qual veio antes e qual veio depois? Mistério. Neblina dentro de mim. Às vezes me parece que primeiro foi dona Clotilde, depois, Dona Leca.
Dona Clotilde era, para mim, uma encarnação de Nossa Senhora. Tinha os dentes enormes, era corpulenta, talvez uns trinta e cinco, quarenta anos. Os olhos muito grandes, castanhos claros, e cabelos também castanhos claros. Ela me adorava.
Aliás, todos os adultos e os alunos maiores me mimavam. Não sei se por minha timidez, minha idade, minha aparência frágil de menino magro e indefeso. Ou se pela inteligência que eles diziam que eu tinha. Eu freqüentara uma escola em Manhuaçu, mas a idade não me permitira seguir no segundo ano. Já lia e escrevia. Contava até não sei quanto, de dois em dois, de cinco em cinco, de dez em dez… E havia a tabuada! Era injusto me comparar com os outros, meninos enormes e ignorantes, favelados coletados nos porões e nas lixeiras do Rio de Janeiro. Era injusto, mas eu não tinha culpa.
Eu decorara uma frase de ouro dessas aulas. O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, município de Guia-Lopes. Nunca me serviu para nada, a não ser para ser mais amado e admirado, quando eu vomitava a resposta correta, para espanto de todos.
Sobre dona Clotilde, tenho uma dúvida nebulosa. Quando as salas foram pintadas, escreveram sobre o portal de cada uma, o nome de um santo. A nossa sala era Santa Clotilde. A sala teria sido assim chamada numa homenagem rústica à professora que ensinava ali? Eu vejo nítido o nome sobre a porta que se desenha dentro de mim, vejo nítida a professora que me sorri e passa a mão nos meus cabelos. Mas não tenho certeza de que ela se chamasse realmente Clotilde.
Além da lembrança de que ela era uma espécie de Nossa Senhora ali, lembro de uma lição de religião. Ela mostrava um livro enorme, com figuras em preto e branco e um texto. Eram desenhos tão belos que pareciam figuras vivas. Ela lia uma frase sagrada e apontava com o dedo a prodigiosa imagem que ilustrava a situação. Então, ela leu:

   Melhor seria que amarrasse enorme pedra no pescoço e se atirasse no fundo do mar, do que maltratar um inocente.

Alguém perguntou o que é inocente.
Inocente é uma criança pura como um anjo. Inocente é uma criança como ele.
Todos me olharam e eu senti a terra estremecer debaixo de mim, morto de vergonha, desejando que fosse de verdade o tremor e que eu fosse tragado pelo buraco.
Não contente, ela foi de carteira em carteira, mostrando o desenho, até que chegou a minha vez. A presença dela era como um sorriso enorme, aquele perfume doce de sabonete e a pele limpa como a das imagens da igreja. Me mostrou o desenho, bico de pena no estilo de Gustave Doré. E eu vi, duas criancinhas, menino ou menina?, cabelos louros e crescidos, encaracolados, dois santinhos de túnica grega. À frente do desenho, à beira de um precipício, dois ou três homens horríveis, grotescos até, com enormes pedras de moinho amarradas ao pescoço e uma multidão furiosa em torno deles, disposta a arremessá-los para dentro das águas.
Como não sentir um arrepio por toda a espinha?, quando, anos e anos depois, folheando um livro sobre a Galeria Uffizi, encontro um Altdorfer cheio de belas cores, onde um santo chamado Floriano tem ao pescoço a mesma pedra de moinho e está prestes a ser arremessado às águas. Aqui, a vítima é o suposto inocente.
Voltando à dona Clotilde… Ela repetiu a explicação para mim, mas eu nada ouvia. Me apavorava a possibilidade de ser uma daquelas crianças, ao mesmo tempo que me orgulhava por ser inocente, devia ser coisa muito especial. A idéia de que aqueles homens morreriam afogados como ratos, por minha causa, me enchia de horror. Alguma coisa devia estar errada.
Certa vez ela explicou que, quando arranjássemos namorada, devíamos levá-la à igreja. Ela podia ser o diabo e estouraria na porta. Contou um caso em que o jovem foi salvo, exatamente na porta do templo, tendo escapulido do estouro um cheiro forte de enxofre.
Dona Leca era magrinha e feia. Estava sempre à espera de que ela entrasse na sala de aula com um leque na mão. O leque nunca apareceu. De suas aulas, tenho muito a recordar.
Estou sentado diante do livro, estudando as palavras da lição que seria lida dentro em pouco. De repente meus olhos esbarram em algo confuso. Eu não conhecia aquela estranha palavra. Tento decifrá-la, mas é inútil. Vou até o fim do texto e tudo vai se esclarecendo, com exceção daquela palavra perturbadora. Soletro a primeira sílaba, CRI, cri, depois vinha um “a”, então é cria, e a seguir aparecia um “n”, sem vogal, mas seguido de um maldito “c” cedilha. Cri… cri… não, não, era um mostrengo que se recusava a dar-se por conhecido. Comecei a ficar aflito, sem coragem para perguntar nada, o suor me esfriava e eu me sentia dominado pelo medo. Tinha a responsabilidade de não errar. Era difícil carregar aquela carga, por que, numa situação como aquela, minha timidez abalaria toda a minha segurança. A muito custo me levantei, fui até dona Leca e perguntei que palavra era aquela. Criança. Sentei-me, o mundo parou de girar em torno de mim, conferi, sim, com certeza, tão simples e tão fácil, e eu fui errar.
E a tabuada? A tabuada era, para mim, a glória, e, para todo o resto, o desespero. O pior é que eu me achava desonesto, por que sentia que, o que eu fazia, não devia ser o correto. Ela perguntava, tanto vezes tanto, ninguém acertava. Para mal de seus pecados eles não descobriram que a professora sempre começava do UM. E eu descobri que, se seis vezes um é igual a seis e seis vezes dois é igual a doze, bastava continuar contando de seis em seis, sem errar. E ela perguntava: seis vezes três? Eu, rápido, em pensamento: treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete… DEZOITO! Seis vezes quatro? Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três, VINTE E QUATRO! E assim íamos subindo, de seis em seis, e quando chegava o SESSENTA! eu respirava cheio de alívio e a professora me elogiava. Todos me olhavam como se eu fosse um bicho diferente, portador de algum dom mágico.
Acho que era por causa da tabuada que todos me protegiam. Na certa, as professoras contavam minhas façanhas e eu surgia como um pequeno prodígio.
Repito que era uma concorrência muito injusta, mas eu não era desleal. Eu muito me preocupava em pensar que não devia contar de tanto em tanto e sim decorar as respostas, como todos tentavam fazer.
Lembro de mais. Certa vez, todos fizeram bagunça e ela parou a aula. Estava um deus-nos-acuda. Ela saiu da sala e já voltou, sentando-se tranqüila. Nós continuamos conversando e rindo e ela me chamou. Cochichou rápido para que eu ficasse quieto, por que o inspetor chegaria daí a pouco. Eu me sentei envergonhado, feliz, tudo junto. Do mesmo modo como me reconfortava a proteção, sentia que era desagradável a situação de exceção criada em torno de mim.
De outra feita, ela gritou com um menino dos maiores, ele reagiu, ela esbofeteou-o e começou a sair sangue do nariz dele. Ela se apavorou e começou a chorar. Um silêncio doído nos dominou.
Pobres professoras! Residentes na roça, com um possivelmente péssimo curso, sem a mínima noção de psicologia infantil, de didática, de nada, serem colocadas diante daquelas feras. Feras à revelia de suas próprias vontades, feras por um acaso torturante, feras feitas feras e não nascidas feras. Agiam como feras. Nada se podia esperar daqueles negrinhos surrados pela vida, que, da vida, só receberam a própria vida, o sopro, o respirar, o existir. Nada mais, nada mais.
Nada mais.
Uma vez Dona Leca pediu ao inspetor que me deixasse dormir na casa dela. Foi um acontecimento tão importante que nunca consegui esquecer detalhes dourados dessa minha odisséia invertida, carregada de triunfos. Ela me deu a mão e saímos. Era tarde, daí a pouco viria o crepúsculo. Passeamos num caminho empoeirado. Eu, trêmulo com um pardal comovido, agarrado com medo à mão da fada madrinha. O mundo se cobria de um significado desconhecido, eu nada entendia.
Entramos. A mãe de Dona Leca era uma senhora gorda, bonachã, de olhos muito miúdos e tenho a impressão de que usava um xale. Elas me lavaram numa bacia, água morna, era como se as mãos de minha mãe tivessem voado até onde eu estava. Em Manhuaçu, os banhos também eram de água morna, numa bacia equilibrada sobre um banco comprido.
Jantei. Eu não tinha coragem para falar nada. Existe, nas minhas perdidas recordações, um mingau de couve quentinho, bem temperado, que flutua perdido num mar de névoas esquecidas. Deve ter sido o mingau de couve da casa da Dona Leca. Aquilo descia e me dava forças existenciais, me dava a impressão de que havia alguma coisa, deveria haver alguma coisa, que valia a pena. Não, eu não pensava isto, evidente, mas a impressão hoje traduziria algo mais ou menos semelhante. Elas ficaram conversando e me olhavam todo o tempo e me sorriam. Aquela velha mulher nunca me saiu da cabeça. Não era pelos cuidados, não era pela comida ou pela cama macia onde me tinham colocado, cheio de cobertores. Era o seu modo de me olhar. Pareciam dois olhos de água, duas eternidades, duas espadas que me enchiam de segurança, mas me davam, ao mesmo tempo, uma imensa vontade de chorar.
Ela ficava sentada, talvez numa cadeira de balanço, talvez fazendo crochê, não sei. Se Dona Clotilde era uma Nossa Senhora na terra, aquela mulher era muito mais, alguma divindade mais antiga e protetora.
A noite pesou nos meus olhos e meu corpo medroso gozou da plenitude de um lençol e cobertores macios como o pelo dos animais mais mansos. De manhã, tomei café com biscoitos. Novamente aquela maravilhosa sensação de que eu vivia.
Sócrates fala de um pão, seco e duro, que ele comeu, durante a guerra do Peloponeso, e que achou o mais delicioso do mundo, tamanha era a sua fome. Onde? diabos! eu li isto. O pão dele não valia metade do meu mingau de couve ou daquele café com biscoitos. Não valia, não.
Ele não tinha apenas sete-oito anos, pouco mais, pouco menos.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 10

as cartas

10. As cartas

    Campo do Meio, tanto de tanto.

Mamãe, ou
Titia, ou
Queridos pais:

Saudações.

Em primeiro lugar, desejo-lhes saúde e felicidade.
Em segundo lugar, gostaria que me remetessem como presente:
um pente;
uma escova de dentes;
pasta de dentes;
sabonete, se possível Eucalol;
uma bola de tênis;
um par de sapatos;
um suéter;
um calção de banho;
latas de leite condensado;
latas de doce;
e isso e aquilo
e isso e aquilo.

Toda a nossa correspondência era irremediavelmente igual. A mesma introdução, Saudações, em primeiro lugar, et coetera, e a conseqüente lista de pedidos. Aqui, havia pequenas variações no tamanho. Os pródigos esticavam a cobra e pediam sem parar, realizando-se antes da festa, gozando dos prazeres que a evocação das palavras escritas trazia a seu paladar e a seu corpo. Outros, mais tímidos, se limitavam ao estritamente essencial.
As cartas eram escritas nas salas de aula. Primeiro em papel de rascunho. Tenho a sensação de que se ficava uma semana em torno das cartas. A letra era analisada, o conteúdo era criticado. Voltava-se à carteira e se refazia aqui e ali, recopiando tudo noutro rascunho. Alguém teria dito que era proibido reclamar? Ou o silêncio unânime e covarde era dessas atitudes típicas dos fracos?, isolados pela autoridade. Quem ousaria rebelar-se contra aquele Olimpo tirânico, nós indefesos, nós famintos, nós debilitados pela carência de vitaminas, tolhidos pelo frio e, sobretudo, embebidos e impregnados do medo mais mortal. Não haveria Prometeu suficiente para prestar ajuda àquele bando nostálgico de vítimas peregrinas.
Nos campos de concentração nazistas, russos e ingleses, e em todo o resto, há de ter sido e ser pior do que ali. Mas aqueles filhotes do bode expiatório ainda não tinham, em sua maioria, entrado na pré-puberdade. Pagávamos o pecado de viver.
Não tenho noção, hoje, da grandeza do meu sofrimento. Fico a avaliá-lo, através de pedaços de minha memória, tentando entender lembranças melancólicas, recordações doloridas. Apesar disso, eu não dou, nem a mim nem a ninguém, o direito de perdoar.
Desviei da proposta do capítulo. Falava do assunto das cartas. Saudações, queria que me mandassem, a lista, e algum final bonito e agradável, onde cada Pangloss, bastardo da palmatória, repetia, sem convicção, que estávamos no melhor dos mundos possíveis.
Aprovado o rascunho, recebia-se uma maravilhosa folha de papel branco, branco e branco, como leite, como lírio, não havia nada mais puro no universo. No alto, um desenho do prédio e escrito por alguma fada ou um anjo: Instituto Profissional e Agrícola São José. A letrinha medrosa escorregava, então, transformando o papel num organismo vivo, num recado para longe, num pedido camuflado de socorro, desejando-se, ao entregar a carta para a remessa, que o recado verdadeiro fosse entendido, que se desconfiasse, que se compreendesse o que não estava escrito, que se adivinhasse de algo!

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garças e abutres… 09

la kontraŭvermaĵoj

9. Os purgantes

    Há um aluno, negro e esbelto como estátua africana, chamado Abraim. Abraim ficou na minha memória por dois motivos. Recebia muitos bagulhos. Em qualquer remessa, ouvia-se o nome dele e ele abria o pacote diante da assistência admirada, príncipe do Congo exibindo despojos de guerra após uma vitória. O segundo motivo pelo qual me lembro dele, era trágico o suficiente para anular a quantidade de presentes. Seu nome era o primeiro a ser berrado para tomar o purgante.
Lembro de dois purgantes, é possível que tenha havido outros.
Abraim iniciava a fila que relutava em seguir, como um bando de bois no matadouro, conscientes de seu destino, medrosos e lentos, para que o sacrifício demorasse o mais possível. Ah! uma espetada no bulbo, a não ser pelo fato de terminar com a existência, transformar num zero, não haveria de ser tão horrível. Lembro do filme sobre os Irmãos Naves (Luís Sérgio Person), goela escancarada à força e o mel denso e negativo adentrando e envenenando a vontade de viver. E lembro também de uma frase de Tagore
“O homem, quando animal, é o mais terrível dentre os animais”.
Aquela peçonha não precisava ser tão horrível. Era, na certa, só podia ser, uma medida de reforço de autoridade, para anular-nos, para dizer-nos durante muito tempo, quem é que mandava e quem devia obedecer. Por que, por dias seguidos, ficava-se à mercê de moscas e de náuseas.
Eram algumas garrafas e um copinho. Dois inspetores, nunca me lembro dos dois juntos, outra vez. Um deles entornava no copinho o óleo grosso e fedorento e esticava a mão pra vítima; no caso, o Abraim era o primeiro. Se houvesse indecisão, um passo atrás, atropelando a fila às avessas, ou se houvesse lentidão em pegar o copinho, o outro inspetor soltava a palmatória para bater onde batesse. Por isso, ninguém titubeava. O pior, que viesse depois, era preciso coragem pro ato. O espartano tapava o nariz, ainda o pobre do Abraim, e tragava rápido o medonho néctar. O corpo se torcia, recusava a doação, comprimia-se e se arrepiava, mas o filho da puta do líquido escorregava lento, arruinando todo o interior do pobre Abraim, de olhos esbugalhados e lábios cheios de gordura. O óleo chegava ao estômago e se acomodava, era como um inferno líquido, um pecado derretido.
Coitado do Abraim! Parecia que a carga dele era maior. Mesmo sabendo que ele já tinha suportado o suplício, que ele estava livre, que a fila continuava a andar e que a vez do sacrifício estava chegando, ainda assim, tinha-se pena dele. Ele era o primeiro daquela fila desesperada, devia ser terrível ser o primeiro daquela fila.
Os bois iam andando lentos, o matadouro que não matava mas dava uma idéia do que seria a eterna danação, se danação eterna existisse. As náuseas, parece que se misturavam, e já era uma só náusea, um só desejo de vômito, um só arroto que subia e arruinava com a chama eterna que alguns teimam em colocar acesa dentro do ser humano. Pode ser. Pode ser. Mas naquele momento horrível, a chama se apagava, com certeza. Tudo era apenas um fedor insuportável dentro da gente.
O desespero continuava, muito tempo. A noite era de ruídos terríveis, não se dormia. No dia seguinte o veneno começava o efeito, transformando em água podre o que devia ser intestinos e vísceras. Não havia lugar a que o cheiro não chegasse. Os vasos não descansavam e alguns entupiam, transbordando de merda rala, milhões de cadáveres putrefatos, concentrados num pedaço de louça.
Quem, pelo menos, não cheirou aquilo, não precisa deixá-lo escorregar goela adentro, não, quem não cheirou aquela mistura de desespero e morte…
não sabe do que estou falando.

continua no próximo domingo.

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