garças e abutres… 08

medalhas, agulhas...

8. Medalhas, agulhas e outras preciosidades

    Uma vez, cavoucando o barro, encontrei uma medalha de Nossa Senhora. Alguém falou para mostrar pro fulano, nem me lembro de nome, nem de cara. Num repente, eu estava diante dele, e ele mostrou um alfinete com medalhas enfiadas. Achei-as lindas. Ele simplesmente pendurou a minha e disse que era dele, tinha perdido. Evidente que não acreditei na mentira. Não pude fazer nada.
De onde surgiam aquelas medalhas que apareciam? Quem conseguia alguma, guardava-a com o maior cuidado mas elas acabavam todas, inevitavelmente, no alfinete dele. Ele era grande, criou a fama de ser o dono das medalhas e, às vezes, exibia a coleção.
Nunca mais achei uma medalha, nem que fosse de um santo inferior. Pensava em areá-la e escondê-la, resguardando-a da depreciação que acarretaria aquele fatídico alfinete.
Assim como medalhas, tinha-se pequeninas prendas, guardadas com um vigor inexcedível. Mesmo assim, os objetos passavam de dono a dono.
Sei que alguns tinham dinheiro. Era um mistério o aparecimento de dinheiro, como era um mistério a presença de objetos que não fossem mandados de presente pelos familiares de alguns. Tenho, apagada, a lembrança de algum grande falando que pediu, através de um buraco do muro, a um guri da cidade, para comprar cigarro.
Bem. As prendas valiosas consistiam de pentes, escovas, alfinetes, barbantes, pedaços de pano. Os panos eram desfiados para que se usasse os fios em costuras. Uma vez, um felizardo conseguiu uma toalha de banho, um pedaço pequeno, e nos mostrava que puxando um fio do tecido felpudo, ele saía e saía e saía e ficava uma linha enorme. Parecia mágica. Era, de fato, uma posse valiosa.
Durante um período, alguns deles tiveram estampas do sabonete Eucalol. Dentro do pacote de sabonete, vinha uma gravura num papel encorpado. Que coisa mais maravilhosa! Geraldo me chamava para ver, eu entrava no grupo dos grandes e o dono as exibia em sua própria mão, ninguém tinha o direito de tocá-las. Lembro de veleiros, lembro de soldados de todas as épocas, havia até espadachins! Maravilha, maravilha! Vinham em séries, não me lembro de detalhes, lembro de cores. Cores sublimes, visões inesquecíveis.
Nós, os pequenos, nunca possuíamos nada, pois o objeto acabava por desaparecer. Quando, mais tarde, fosse encontrado na mão de algum grandão, já era tão tarde, fazia tanto tempo, que o direito de reclamar já tinha esmorecido. Se reclamasse, também, acabava levando porrada.
O único que conseguíamos ter, eram as agulhas. Ah, as agulhas! Que paciência, que precisão, que artesanato! Tentei fazer uma, mais tarde, para mostrar para a Ângela como é que as fazíamos, já morando em Vila Isabel; só pude constatar minha imperícia.
O mais importante, para a confecção da agulha, era o tempo. Tínhamos tempo de sobra. Fiz mais de uma agulha. O arame aparecia por um daqueles milagres. Conseguido o arame, de grossura variável, após dobra e redobra, ele era cortado no tamanho desejado. A seguir, amolava-se sua ponta numa pedra lisa. O passo seguinte era arranjar um preguinho e eu brado, Senhor! Senhor! dizei de onde vinham aqueles preguinhos! Uma vez conseguido o preguinho, começava-se a amassar o outro lado da agulha. Era preciso ficar bem chata. A pedra tinha que ser especial, sem pontas, para não destruir o metal. Bom. Depois de amassada, dava-se uma batida de leve com o preguinho, na parte achatada. Virava-se e se fazia o mesmo do outro lado. Assim, o preguinho era batido de um lado e do outro com precisão, com paciência, com calma. Geralmente ele entortava a cabeça da agulha e era necessário bater novamente com a pedra arredondada. Até que, finalmente, o furinho aparecia. Então, era só limar a cabeça da agulha numa pedra, para tirar a aspereza.
Era uma jóia preciosa. A gente a enfiava na alça do macacão ou sobre o peito, exibindo a arminha frágil.
Restam santinhos de papel, cacos coloridos de vidro, caixinhas de fósforo vazias, ah! estas eram indispensáveis para a coleta de gafanhotos.
Davam o nome de bagulho ao pacote com presentes que alguns pais mandavam. Eu disse que recebemos um, certa vez. Minha mãe mandou diversos, recebemos apenas um. Os bagulhos enchiam de poder aquele que fosse premiado com a remessa. Os pedidos eram os mesmos: pente, escova, pasta, sabonete, perfume, leite condensado e bola de tênis. As bolas de tênis me deixavam encantado, porque descobrira que elas tinham dois desenhos iguais que se encaixavam um dentro do outro, era um milagre!
Lembro que alguém, um dia, me deixou dar uma chupada no furo da lata de leite condensado, Ganímedes jamais serviu a verdadeira ambrosia. Lembro, também, que um dos grandes me mandou fazer a mão em concha. Estávamos num círculo de contempladores e todos me olhavam com atenção, era um privilégio digno do favorito do imperador. Geraldo me vigiava sério, o Creso despejou na minha mão um pouco de loção para cabelo. Tudo silenciou ao redor. Eu sabia que era para passar no cabelo. Queria primeiro cheirar. Ao aproximar a mão do nariz, porém, levantou-se uma agitação em uníssono e alguém gritou bem alto:
Não é pra beber, é pra passar no cabelo!
Levei um susto, estremeci por inteiro, cheio de vergonha, e molhei rapidamente os cabelos. Todos riram, invejosos, mas maravilhados. Detestei lembrar do acontecido durante muito tempo.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 07

overalls

7. Macacões e pés no chão
    Não sei se minha recordação me trai, não tive mais que dois macacões naquele período. Não, não, agora lembro, eles eram trocados e iam para serem lavados. Parece, aliás, que não tinham dono. Após o banho, acho que semanalmente, recebia-se um bolo de pano e vestia-se. Ora curto, ora apertado, ora farto como roupa de astronauta. Algumas vezes a gente trocava a roupa com um outro qualquer. Um, mal podia respirar, com a roupa desabotoada, e o outro valsava dentro do enorme saco de pano que o envolvia. Uma troca rápida e estabelecia-se simultaneamente o conforto e a fachada.
Alguns macacões estavam cheios de faixas escuras que eram, na verdade, falhas de fio. Isto acontecia porque a gente puxava fios das roupas, para usar nas nossas costuras cotidianas.
Falei de banhos e esqueci de um detalhe gostoso de lembrar. Estávamos todos nus, o piso era enorme, de cimento liso, os chuveiros rodeavam aquela área inteiramente molhada. A gente mergulhava no chão, escorregando alguns metros. Batia-se em pés, derrubava-se gente, era um trânsito louco. Volta e meia, vinha um corpinho molhado, escorregando no cimento. Descobrimos, apenas os pequenos fazíamos isto, descobrimos que em diagonal o trajeto era maior, o corpo deslizava por mais tempo. Mergulhávamos de frente, imitando os gestos de um nado de braçadas.
Os banhos no inverno, ao contrário, eram dolorosos. Entrava-se na água gelada, escorregava-se para fora, mas o inspetor nos mandava de volta, examinando a tortura de um por um.
Eu tinha, como muitos, sete-oito anos, pouco mais, pouco menos.
Que me lembro eu, ainda, a respeito de macacões? Houve um dia em que, formados, ouvimos o comunicado de que, a partir de então, os macacões seriam marcados, não mudariam de dono. O meu era novo e azulzinho, de um maravilhoso azul todo novo. Bordei as iniciais nalgum lugar. Havia gente que bordava bonito, letras certinhas e caprichadas. Outros alinhavavam algo parecido com letra, bastava um puxão e tudo desaparecia. O meu ficava no meio termo.
A glória durou uma semana. No banho seguinte, ao voltar à fila de macacões, o meu não estava lá. Procurei inutilmente. Apanhei algum que sobrara, esbranquiçado, cheio de falhas nos fios, havia de se ter costurado muita sacola com aquelas linhas. Muito tempo depois, encontrei alguém com minhas iniciais. Um dos amigos percebeu meu nome e me chamou e nós cercamos o ladrãozinho. Ele se desculpou, dizendo que tinha vestido aquilo naquela semana, por terem sumido com sua roupa. Talvez nem tivesse sido ele mesmo. Nem adiantava mais querer fazer a troca. O pano não era mais tão azul, já devia haver marcas de fio, tirado para as costuras e os bordados necessários.
Durante todo aquele tempo, não calcei um par de sapatos. Lembro que, ao me enfiarem um par de sapatos pretos, na volta, já no Rio, sentia dores incríveis.
Na verdade, não tenho certeza se durante todo o período estivemos descalços. Acho que sim. Talvez tamancos, quero me lembrar de tamancos e não consigo. Não, não havia tamancos. Indo pro córrego, lembro, levantávamos poeira com os pés e os maiores ralhavam.
Que interesse teria lembrar se ficávamos descalços ou não durante todo o tempo? É que um episódio me lembra dos pés no chão.
Estamos em fila para ir para o dormitório. Um negro, que eu insisto em chamar de Moisés, confundindo tudo e misturando com um negro Moisés que me protegia, um negro começou a gritar para os companheiros, olhando para mim e para alguns amigos.
Estes branco azedo! É branco, mas é porco! Vão pra cama sem lavar os pé. Depois vem falar dos preto. Sou preto mas lavo os pé todo dia. Essa leitaiada azeda…
Envergonhados, fomos tirar a terra que grudara nos pés, naquelas bicas de beber água.
A lembrança do fato criou em mim a noção de que, antes de subir, lavávamos os pés. Era verdade que, após a lavação, subíamos descalços. A sujeira se agarrava à sola, novamente. Mas a parte de cima ficava limpa.
Pergunto: qual teria sido a temperatura mínima que suportamos nos dois invernos que passei lá?
Cueca, camiseta, chinelo, toalha de banho ou de rosto, lençol, travesseiros e, nalguma ocasião, cobertor, que luxos distantes e inatingíveis! Só Marquinhos, com a tuberculose. Só eu, numa única noite redentora, quando dormirei na casa de Dona Leca.
Às vezes, recebíamos dos parentes, pasta de dente e sabonete. Aliás, lembro que recebi uma vez apenas, mas eles alegaram algumas remessas. Lembro da pasta nova, comida com carinho, do sabonete perfumado e da escova que pendurei no pescoço para não ser roubada. Depois de um tempo ela apodreceu com cheiro de urina, acho que o barbante era comprido demais.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 06

la manĝo

6. A comida

    Geraldo sempre disse, sorrindo, após termos saído do pesadelo, que a comida era arroz com feijão no almoço e feijão com arroz no jantar. Depois, era fácil rir. Mas ele não mentia.
De manhã nos davam um prato de mingau de fubá. Não tenho idéia sobre nada além disto. Quantas vezes o mingau tinha um insuportável gosto de querosene! No começo, nauseante, mais tarde, horrível, depois, forte e, finalmente, apenas um gosto de querosene. Numa feita um aluno falou que o inspetor geral visitara a cozinha e deu com o cozinheiro babando na panela de mingau. Devia ser exagero. Tenho a impressão de que era exagero. Bastava o gosto de querosene. Pergunto agora: aquele gosto de querosene era imperícia ou malícia? Acontecia por acaso, ou era uma provocação para diminuir a capacidade de nossas resistências? Com certeza, houve algum acidente. O cozinheiro era um velhinho, lembro dele por causa dessa baba. Será que foi a lembrança do aluno acusando-o, que me fez imaginar que ele era um velhinho?
De segunda a sábado, no almoço e no jantar, arroz com feijão. No domingo aparecia nos pratos (eram pequenas bacias de alumínio, as dos grandes, limpas e brilhantes), aparecia nos domingos um pedaço de carne de carneiro do tamanho de um pequeno limão. Cada semana matavam um carneiro do padre, falava-se. Todo domingo, acho que inevitavelmente, lá estava o pedaço de carne do tamanho de um limãozinho. Pelo tamanho, daria para calcular o número de alunos? Muito complicado!
No meio do arroz sempre apareciam sementinhas redondas, nojentas e de gosto intragável.
Alguma vez, foi servida sopa de macarrão. Eram macarrões grossos, soltos na água e algum infeliz, um dos grandes, gritou alto que não comia aquilo porque, da última vez, tinha encontrado dentro de um pedaço de macarrão, um ovo de aranha. Como ele sabia que era de aranha?, pergunto, agora. Era preciso, com a colher, cortar o macarrão e procurar o ovo; não achando, mordia-se lentamente, temeroso de ouvir o estalo. Felizmente a sopa era rala e era rara. E veio um dia, em que alguém falou que a história do ovo de aranha era para que a gente não comesse a sopa, que os grandes comeriam.
Bem. Em algum dia de festas nos deram laranjas. Alguém gritava, apareciam bacias cheias de laranja, formava-se a fila. Cada um recebia sua laranja e todos se espalhavam, descascando com os dentes e machucando os lábios com o sumo ácido. As cascas davam muitas brincadeiras, fazíamos óculos, espremíamos nos olhos dos desavisados. Fazíamos com que a laranja durasse o máximo de tempo, ela era contemplada, era lambida, era amassada com a língua e os gomos eram finalmente engolidos, com gosto de dó. O resto do dia era luminoso e cheio de canções. O milagre ocorreu duas vezes, naqueles aproximados vinte meses. Uma laranja! Com certeza era dia santo. Quais teriam sido os dois santos milagreiros? Não foi, disso eu sei, o nascimento do deus. Não! Para esse nos reservaram um doce de leite, pro qual eu reservei um capítulo mais pro final, amargo e doloroso.
Lembro também das mangas. Não sei se muitas, não sei se poucas. Na verdade só lembro de uma. Tenho noção de que este fato se repetira, mas cena nítida mesmo, só me lembro de uma. Alguém ganhou uma manga. Fechou-se em torno dele um círculo de contempladores e o eleito lambia-se de prazer, lentamente, com os lábios e as mãos amarelos. O mais esperto gritou, quando for jogar fora dá pra mim e outro rapidamente e você me dá quando não quiser depois eu depois eu e depois eu e estava feita uma espécie de fila. Cansado de gozar sozinho, o dono da manga passava o fruto com fiapos ainda cheios de suco e o segundo sacerdote continuava o culto, babando-se no centro da missa, enquanto o sacerdote-mor se afastava para lamber longe os seus dedos manchados de ouro. O terceiro já pegava fiapos mais brancos, ainda molhados. Durava pouco para ele, porque os olhos do vizinho, o próximo da fila, se arregalavam diante de tanta traição. Ele passava o caroço esfiapado. Branco e já ressecado. Restaria ainda um caldinho? Certamente que sim, porque o seguinte sorria e sugava fundo a própria saliva.
Teria minha memória apagado alguma folha de alface ou um pedaço de batata? Não. Sei que nunca comi nada diferente enquanto estive lá. Se tivesse ocorrido o prodígio, ele se marcaria como letras de fogo na pedra do barbudo. Porque, assim como há as duas laranjas e as mangas, avulsas, há os pedaços de mandioca. Nunca comemos mandioca cozida; melhor dizendo, não me lembro de termos comido mandioca cozida. Mas me recordo que algum aluno, ajudante do cozinheiro, costumava levar para fora, pedaços estragados de mandioca crua. Era uma polpa branquinha, com pequenos veios roxos, ao longo da porção. Ganhei dessas mandiocas, vez ou outra. Parece que um da turma do Geraldo andou ajudando na cozinha. A gente comia a parte branca, com cuidado, era de um doce desagradável, e se, por acaso, mordia o roxo, sentia logo o amargo e azedo na língua. Quando a carne branca terminava, começava-se a mordiscar os pedaços menos estragados, acostumando-se aos poucos com a mudança de paladar, até que, finalmente, comia-se todo o resto, roxo e de gosto ruim, com cara de nojo.
Afora isto, havia o hábito das sacolas de comida. É muito complicado explicar. Vou tentar.
A gente tinha agulhas. Contarei daqui a pouco como elas eram feitas. Por ora, fica dito que se tinha agulhas. Costurava-se pequenos pedaços de pano (de onde surgiriam? deus meu!), usando-se fios desfiados dos macacões, e se fazia uma pequena sacola. Com requintes. Ela tinha uma bainha e por essa bainha passava-se um barbante que apertava a boca do saquinho e servia de alça. Nunca cheguei a fazer isto, porque o resultado era repugnante. A sacola ficava pendurada na cintura, dentro da roupa. Durante a refeição, era preenchida com sobras de comida. E assim ficava ela, até a hora de ir para o dormitório. Os movimentos do andar, misturavam tudo e transformavam o arroz e o feijão numa pasta marrom, de cheiro muito forte. Era isto que eles comiam quando escurecia. Tenho certeza que esta comida, ou a sacola que a continha, tinha, na gíria do colégio, um nome especial. Não me lembro da palavra.
Havia uma história a respeito disso. Um dos alunos enchera demais a sacola e após a refeição todos foram postos a marchar. O bolo ia e vinha, alguma coisa enorme saía e entrava entre as pernas, onde o aluno não deveria ter mais que as carnes naturais do local. O inspetor mandou-o sair de forma, tirar a calça e, após o vexame diante de todo mundo, teve que apresentar as mãos à palmatória. Aquela palmatória era cheia de furinhos, para doer mais. Ela funcionará muitas  vezes.
Na Roma antiga os alunos apanhavam com palmatória:
    Non laboras, vapulas.
Isto foi, no mínimo, há mil e novecentos e tantos anos da nossa civilização. Civilização…
Não fica, se não, um acontecimento, a registrar ainda. Falei da fila de torneiras onde se bebia água e se lavava os pés.
Houve uma ocasião sem água. Alguma coisa aconteceu e a água deixou de correr. Quem descobriu que as caixas de descarga tinham água? Era dificílimo trepar naquelas paredes dos sanitários. No começo a gente ainda se lembrava de recolocar a tampa. Depois, não mais. Bastava escalar a parede e beber com uma das mãos em concha enquanto com a outra se segurava para não perder o equilíbrio.
Era uma água quente, por causa do sol, amarela e com gosto de ferrugem. Ou, com cheiro de ferrugem.
Na guerra, também se deve beber daquelas águas.

continua no próximo domingo.

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