Rubaiatt, de Omar Khayyam, 16 a 30

RUBAIAT, DE OMAR KHAYYAM, 16 a 30

 traduzido por Matos Pereira. Editora Jangada, Rio de Janeiro, 1944. 

 

XVI

Na primeira manhã do Paraíso

o Homem não sente mágico transporte.

Adão já era um ser desiludido

que chorara, de noite, pela morte.

 

XVII

Tira a papoula a cor do próprio sangue

que das veias jorrou de um ser qualquer.

E os lírios da Madona germinaram

das lágrimas de uns olhos – de mulher!

 

XVIII

Debruça-te de leve sobre a relva

na margem deste rio. Ela é rebento

dos lábios que com beijos nós selamos

e que a Morte selou no esquecimento.

 

XIX

Vede, dentre as que amamos, as mais lindas

a quem os fados bons favoreceram,

seus momentos tiveram de delírio

e, uma por uma, desapareceram.

 

XX

E nós, folgando neste espaço em que eles

vagaram – e cantando no verão,

sob um leito de terra nós iremos

fazer um leito – para quem?, irmão.

 

XXI

Ah!, gozemos o tempo que nos resta

antes que ao pó volvamos, antes, sim.

Pó para o pó, e sob o pó jazemos,

sem fé, sem vinho, sem amor, sem fim.

 

XXII

Tanto aqueles que vivem para hoje,

quanto os que no amanhã têm o olhar fito,

o Muezzin, da sombria torre, exclama:

Loucos! A vossa recompensa é um mito.

 

XXIII

Dos sábios e dos santos que se arguiram

sobre o Ser e o Não Ser, com vozes roucas,

já foram as palavras esquecidas

e eles ao pó, que lhes tapou as bocas.

 

XXIV

Vem com Khayyam e deixa o egrégio sábio

falar; verdade é só que a vida corre…

Isto é verdade. E tudo o mais, mentira.

Desabrochada, a rosa murcha e morre.

 

XXV

Eu, quando jovem, procurei ouvir

argumentos de santo e de letrado

sobre isto e aquilo, mas ao fim,

sempre saí tal como havia entrado.

 

XXVI

Planto a semente do saber com eles

mas foi a minha mão que a cultivou.

E isto foi tudo que colher eu pude:

– Como a água eu vim e como o vento vou.

 

XXVII

E, sem saber porque a este mundo vim

– Folha a boiar, das águas à mercê,

sem mesmo saber de onde nem pra onde,

eu vou saindo, sem saber: Por quê?

 

XXVIII

Pela sétima porta me elevei

ao trono de Saturno soberano;

mil problemas solvi pelos caminhos.

Mas não da Morte nem do Fado Humano.

 

XXIX

Houve uma porta que eu abrir não pude.

Houve um véu através do qual não vi.

Foi breve o instante em que nos falamos.

Depois, silêncio sobre mim e ti.

 

XXX

Eu pergunto a mim mesmo o que é que eu tenho

e após a morte do que será do “Eu”.

A vida é breve, é chama, é cinza, e o vento

ao dispersá-la diz: Alguém viveu.

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Desistória – capítulo 6.

Desistória – capítulo 6.

 

 

 

            E não sabes que és um miserável e infeliz e pobre e cego e nu.

 

 

            6. o alvorecer da loucura.

 

 

            minha vida se compõe de duas histórias: antes de mim e depois de mim.

            antes de mim é aquele trágico período de minha infância e adolescência, quando as coisas que eu vivia eram tidas por não vividas. o pai e a mãe e o corcunda não acreditavam em nada do que eu contava. uma ou outra vez eu notei que eles se entreolhavam com maliciosa cumplicidade, deixando-me num confuso estado de perturbação: eu vivia ou não? estava morto ou não? as cartas de minha mãe, todavia, descobertas após sua morte, me deram a certeza de que eles me tomavam por louco.

            depois de mim é o resto de meus dias, após a noite da grande revelação, quando descobri que eles é que estão loucos. e que eu, como único ser vivo a ter exata noção dos fatos, tenho que me resignar com esta grandiosa missão de suportar pelos homens o seu insustentável fardo; tão pesado e indesejado, que, aos poucos, após provação e provação, tive que me transformar no deus que tenho sido. e digo que só esta metamorfose sublime, apaixonada e dramática, foi que tornou suportável ao meu coração a dor causada pelo magno pecado de existir. e também sentir que paguei parte de minhas culpas acendendo aos homens um caminho de luzes e verdades eternas, dando-lhes um sentido para a vida vã de banidos dos três paraísos.

            começo de um pouco antes do começo. meu pai era senhor de uma vasta região. morava com sua filha num enorme palácio, cheio de criados e parentes. a vida no palácio, era uma festa inacabável, a vida no palácio. músicos e dançarinos e artistas animavam os banquetes e os pratos se sucediam com fartura. eu não existia então. o corcunda me contava estas histórias. e contava que, terminado o banquete, todos se punham a ouvir os peregrinos viageiros com suas fantásticas narrativas inacreditáveis. meu pai passava por excelente anfitrião, vinha gente de todos os lugares visitar suas terras. de tão longe vinha gente, contava o corcunda, que algumas pessoas diziam ter atravessado mais de sete mares, de tão longe vinham; tão longe e tão longe que não se podia acreditar que vivesse gente àquela distância de nossas terras. e todos aqueles estrangeiros dormiam e comiam no palácio de meu pai e depois do banquete falavam de seus estranhos e inusitados costumes. meu pai os despedia com presentes graciosos e lhes desejava tranqüila viagem.

            naqueles tempos os donos das terras tinham um poder de reis. recebiam palácios e fazendas como herança e dominavam suas regiões com severidade e violência. eram os senhores da justiça. suas terras eram habitadas por camponeses muito pobres que não tinham outro serviço se não cultivar os campos e pastorear. como as terras não lhes pertencessem, eram obrigados a pagar aos senhores o aluguel do chão. os pagamentos eram feitos em mercadorias e controladores senhoriais fiscalizavam cruelmente as entregas dos impostos. as vidas dos camponeses não tinham valor algum, qualquer pequeno delito era punido com a máxima pena: a morte, executada num local especial, geralmente dentro dos muros dos palácios: primeiro, castrava-se os culpados; as mulheres tinham os seios perfurados com estiletes; depois eram decepados os pés, as mãos e finalmente a cabeça. quando as vítimas perdiam os sentidos, após a decepamento de seus membros, os carrascos esperavam que tornassem à consciência. e as pessoas passeavam em torno, admirando a construção portentosa do palácio, conversando e comendo suas salsichas e seus chouriços, aguardando a continuidade das torturas.

            não havia lei escrita naquele tempo, a não ser um tipo de constituição que o senhor recebia dos pais, onde vinham relacionados os seus direitos. de cinco a cinco anos, membros mais velhos da família reunida podiam alterar a lista de direitos, ampliando assim o alcance da arbitrariedade dos senhores. vez por outra, constituições vizinhas entravam em conflito sobre fronteiras e os senhores faziam pequenas guerras entre si: os camponeses eram armados e estabeleciam-se novas demarcações. algumas raras vezes uma região era dividida entre herdeiros. no geral, um senhor acabava por dominar o vizinho, destruía-lhe o palácio ou mudava-se para ele, se assim fosse mais conveniente. fazia um recenseamento de todos os habitantes subjugados e criava o seu novo código de direitos.

            e foi assim que se passaram anos e anos. meu pai e sua filha envelheciam e para todos os pretendentes que apareciam para se casar com a jovem, o meu pai, contava o corcunda, meu pai apresentava uma série de exigências impossíveis de cumprir, enumerando a seguir os defeitos que via no pretendente. estes rareavam dia a dia, primeiro por saber das dificuldades que encontrariam, depois porque a virgem avançava em idade. a partir de um certo tempo, não mais se cogitou, então, de casamento. ambos estavam velhos, meu pai com setenta anos e sua filha com cinqüenta e cinco anos. a vida no palácio não perdera a vitalidade, mas tivera diminuído bastante o seu ritmo.

então, chegou um dia um estranho viajante. e o corcunda contou que o vira; ele era alto e magro, de rosto cadavérico, branco, olhar de florestas misteriosas e montanhas escondidas por neblinas. vestia um manto preto e era de se estranhar que suas barras não estivessem empoeiradas como as barras dos mantos dos comuns dos viajantes. ele nada comeu, além de um pedaço de pão e nada bebeu se não uma taça de vinho. e instado a falar de viagens e de sua terra, ele disse que apenas queria dar uma notícia: a de que a peste rondava o reino do meridião e o do setentrião e o do nascente e o do poente. e que a morte se espalhara por todo o mundo, sangrando com a mesma impiedade indiferente os velhos e os novos e os bons e os maus. então ele tomou uma taça, encheu-a de água, fez uma reverência à filha de meu pai, depois a meu pai mesmo, e saiu silencioso, levando a taça. ninguém o viu mais. é claro que não foi bem assim que contou o corcunda; quando eu percebi um pedaço de verdade escondido atrás de suas mentiras e outro pedaço de verdade guardado atrás de seus silêncios, conduzi a história de acordo com a minha verdade, que é a única verdadeira.

            meu pai anunciou que na manhã seguinte fecharia as muralhas que envolviam o palácio; que nos celeiros havia trigo e milho e aveia para muitos anos; que aquele que desejasse permanecer ali poderia fazê-lo; e que se fosse quem assim o entendesse.

            e na manhã seguinte o palácio amanheceu vazio. tinham ficado apenas ele, sua filha e o corcunda. assim contou o corcunda e assim decidi que fora.

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Rubaiat, de Omar Khayyam, 1 a 15

Pequena introdução.     

 

          desde que comecei, há nove anos, a publicar meus trabalhos neste saite, pela primeira vez, passo a publicar uma obra alheia.

          tenho textos alheios, que traduzi ou musiquei, e um trabalho meu traduzido para o Esperanto, por Geraldo Mattos. todos os outros são inteiramente de minha lavra.

          quando eu tinha entre quinze e dezesseis anos, apareceu na minha casa o livro Rubayat, de Omar Khayyam. teria pertencido à Biblioteca da Escola Naval, onde trabalhavam duas de minhas irmãs? não sei. sei que fiquei tão fascinado com o livro, que o copiei inteiro. infelizmente, por conta da inexperiência e do desconhecimento sobre direitos autorais e algumas mazelas acadêmicas, não copiei a introdução, o nome da Editora, a data da edição e nem o nome do tradutor.

          com o advento da Internet, passei a procurar com frequência a exata tradução que eu tinha, já que ao longo dos anos fui conhecendo diversas, em prosa ou verso. nenhuma tinha, para mim, o que eu encontrara no meu texto copiado: o sabor das quadrinhas populares de Portugal e do Brasil, certeiras, singelas, quase descuidadas, mas que sempre passam a essência do pensamento do autor. todas as outras, ou quase, são, a meu ver, pretensiosas, cheias do que eu chamo de literaturice. o autor se aproveita de texto alheio para, na tradução, exibir um virtuosismo burro e artificial. sempre estive mais para Monteiro Lobato do que para José de Alencar. quem tem o que dizer não precisa enfeitar.

          recentemente encontrei um volume num sebo do Rio de Janeiro. a publicação é de 1944. da Editora Jangada, no Rio de Janeiro. e o tradutor, Matos Pereira.

          como meu saite não tem objetivos comerciais, vou passar a publicar as famosas quadrinhas de Khayyam.

     são 181 quadrinhas. vou mostrá-las aos poucos, de quinze em quinze. 

          e, ao final, pretendo apresentar comentários e esclarecimentos sobre o autor e sua obra, em torno do quê, existe uma quantidade enorme de fantasia e desinformação.

 

 

Rubáiat

 

Omar Khayyam

 

(Pérsia, atual Irã, 1048-1131)

 

 

I

Desperta! O dia, na noturna taça

jogou a pedra que afugenta estrelas;

e o Caçador do Oriente, em nós de luz,

prendeu as torres do sultão – sem vê-las.

 

II

E quando o galo canta, os que ante a porta

se acham, põem-se a gritar: Abre, rapaz,

tu sabes que não temos muito tempo,

e uma vez idos – nenhum volta atrás.

 

III

O ano novo traz velhos desejos

e leva o triste à solidão da serra

onde a mão branca de Moisés se estende

e suspira Jesus, dentro da terra.

 

IV

Nesta estação de flores e perfumes,

cheia de amor, de paz, de canto e luz,

será o lírio a dextra de Moisés?

e será a brisa o sopro de Jesus?

 

V

Olha, mil flores despertaram hoje

e mil jazem no pó – aqui e além.

E este mês de verão que traz a rosa,

leva Jamshy e Kaikobá também.

 

De acordo com o grande poeta Ferdowsi Shahnama, Jamshy foi o quarto rei do mundo. Ele dominava sobre todos os anjos e os demônios e o mundo; foi também soberano e sacerdote supremo da Hormozd. Possuiria uma taça prognosticadora, cujos sete círculos simbolizavam os sete planetas e os sete mares. Nela se continha o elixir da vida.

Kaikobá, rei guerreiro da Pérsia, semi-histórico.

 

VI

Mas vem com o velho Omar, e deixa a sorte

de Kaikobá e Kaikhosru, no olvido.

que se zangue Ruystum e que Hatin Tai

grite pelo jantar, não dê ouvido…

 

Kaikhosru, rei lendário pérsico.

 Ruystum, guerreiro lendário, conhecido poor suas grandes façanhas.

 Hatin Tai, poeta maometano, bastante conhecido por sua franca generosidade.

 

VII

Vamos pelo gramado que separa

a “Terra de Ninguém” da que tem dono:

onde cada um é livre, onde a ave canta,

e choremos Mahmude no seu trono.

 

VIII

Aqui, com alvo pão, sob esta fronde,

com vinho e versos – e contigo, amor,

ao mesmo lado, cantando no deserto,

mesmo o deserto é um paraíso em flor.

 

IX

Com água e pão, sob esta verde fronde,

e vendo o amor que em teu olhar existe,

nenhum sultão é mais feliz do que eu.

Mendigo algum, também, não é mais triste.

 

X

“Doce é o poder mortal” – pensam alguns,

outros: “o Paraíso é fascinante.”

Agarra-te ao que tens, e deixa o resto.

Que vale o toque de um tambor distante?

 

XI

Olha a rosa que em torno a nós viceja.

“Rindo”, ela diz, “para este mundo eu vim.

Mas quebrem-me o cordão da minha bolsa

e o meu tesouro fica no jardim.”

 

XII

A esperança em que tanto confiamos

vira cinza ou prospera; porém, ai!

como a neve no tórrido deserto,

explende uma hora, duas… e se esvai.

 

XIII

Aqueles que o grão de ouro cultivaram

e os que o lançaram, sem pensar, aos ventos,

jamais se tornarão em áurea poeira

pois o sepulcro é surdo aos seus lamentos.

 

XIV

Pensa: nesta estalagem toda em ruínas,

cujos portais são o poente e a aurora.

sultão após sultão, com tanta pompa,

se hospedou um momento, e foi-se embora.

 

XV

Ouvi dizer que o leão e a lagartixa

moram nos paços do sultão vencido.

E o asno selvagem escava onde ele jaz.

E ele – profundamente adormecido.

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