Desistória – capítulo 5.
E enquanto aqueles animais davam glória e honra e ação de graças ao que estava sentado sobre o trono…
5. entardecendo.
tantas e tais histórias e crônicas e contos e relatos e narrativas que eu já tenha escrito e eis que penso agora em escrever a minha própria vida. fico me perguntando até onde posso ir, para trás, tentando descobrir antecedentes à minha pessoa. sei que poderia consultar os documentos de meus pais e meus avós e meus bisavós. caminharia assim às avessas, até esbarrar nos ancestrais sem registros, anônimas criaturas do antes, que existiram para seu próprio existir e que deram impulso a fagulhas de vida que se multiplicaram e se juntaram e se reuniram naquilo que sou. eles não vieram para que eu viesse. nisso não creio. como não creio também que eu tenha vindo para que, através de mim, num futuro, uma vida futura venha a me reclamar como seu intermediário de existência. cada um vem por si só. e todos por tudo. é uma interminável cadeia de relações estreitíssimas, essa da vida, mas é a única cadeia em que se possa considerar cada elo como suficiente por si mesmo, apesar e apesar das dependências de cada um com todo o resto. apenas isto separa o homem do animal. talvez seja uma questão de ponto de vista. difícil isto de ponto de vista.
volto a minha história. não vou procurar registros em arquivos cheios de mofo e esquecimento. tentarei começar do passado que conheço, pelo que me lembro de histórias ouvidas de avós e bisavós. não é que a soma dessas histórias vá se concentrar na minha história; vai essa soma passar por mim. passar por mim. passar por mim e continuar à sua maneira.
tomo fôlego e tento me lembrar do que sei sobre os elos que vieram antes.
o pai do meu avô paterno foi um soldado desconhecido que, numa invasão de aldeia, violentou uma menina de treze anos, já formada. ninguém sabia o nome dele nem a sua idade e ela não chegou a perceber a cor de seu olhar. eles entraram na escola silenciosa, embriagados e imundos, um bando enorme, e dividiram as presas entre si e se saciaram cantando o hino de seu país, a terra das altas montanhas. ao ritmo daquele canto selvagem, eles depositaram nos corações das menininhas o desespero do terror e nos úteros noviços as sementes de róseos e vivos bonecos de carne. as meninas foram escondidas e protegidas por mães aflitas e envergonhadas, esquecidas estas mães de que todos, jovens e velhos, tinham sofrido as mesmas humilhações; como se humilhações mascaradas se tornassem menos humilhantes. e os nove meses se passaram e num curto tempo a aldeia foi brindada com um grupo chorão de filhinhos do susto e do primeiro prazer inesperado.
o parto de meu avô, consta que foi demorado e doído. sua mãe, ainda não com quatorze anos, lavou-o com cuidado, embrulhou-o na toalha branca recebida de uma parenta e disse que ia dormir. amanheceu pendendo na forca da praça, a mesma forca onde eram enforcados os ladrões mais perversos e os assassinos. ninguém soube como conseguira preparar a corda ou como chegara à praça, tão abatida estava. meu avô foi criado por sua avó até dois anos e depois entregue a uma instituição para órfãos. e os meninos sempre o chamavam de filho da forca. o filho da forca foi o pai do meu pai.
o casal que foi pai e mãe de minha avó paterna, vivia numa grande cidade, num país do sul. ele, meu bisavô paterno, era um jovem rico que se dizia descendente de antigos reis. era inconstante e orgulhoso e tinha apenas quinze anos quando se casou. sua mulher tinha vinte anos a mais. ela se casara por pressão da família, de uma nobreza decadente e nenhum dinheiro. para o jovem rico, o casamento era uma forma de obter um título de família. eles tiveram apenas uma filha, que foi a mãe de meu pai. aos dezessete anos o meu bisavô tomou um pequeno barco de aventureiros e se lançou ao mundo. e minha bisavó passou o resto de seus dias numa varanda do enorme casarão, a olhar para o mar. perdido o brilho dos olhos e a cor dos lábios, ali ficou ela, deixando-se esquecida num tempo que não acabava nunca. o bisavô nunca mais voltou e nunca mais se soube dele. num crepúsculo de inverno, incendiado e louco, foram chamá-la para jantar e ela dormia. os criados não quiseram incomodá-la. só mais tarde, quando sua velha mãe a procurou para dar boa-noite, foi que descobriram que ela estava morta.
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