Alma desdobrada, cap 284, 285, 286, 287, 288, 289 e 290. (final)

Alma desdobrada, capítulos 284, 285, 286, 287, 288, 289 e 290. (final)

 

284.

          quando comecei a escrever alma desdobrada, veio-me a ideia de escrever o que chamaria de os dez dias que não me abalaram em nada, anotações minuciosas sobre os próximos dez dias de minha vida. e isto foi feito. resolvi incluir aqui alguns trechos, em ordem cronológica. abandonei o resto.

          lembrei-me então de escritos avulsos.

          estes escritos seriam: poemas antigos, cartas a Y…, cartas a Z…, a história do sensato, a novelinha em que sou sequestrado por visitantes de outro planeta, algo que se chamaria eu e tu, quem matou garcia lorca?, e uma parábola.

          resolvi queimar tudo. sobraram três poemas e a história do duende.

 

285.

          dentro do caos, todas as ordens são ordens.

          tenho direito ao caos porque já me organizei. esse prisma não admite ponto de vista. as associações de assunto são libérrimas.

          por minha liberdade, ainda uma vez.

          eu me perdoo todas as repetições deste livro. eu me perdoo tudo neste livro. eu me perdoo este livro.

 

286.

          meu pai, me dê a mão, agora. quero você do meu lado, porque sinto chegar a hora de deixar a terra deste livro.

 

287.

          você, mãe, deste outro lado.

 

288.

          e agora, de mãos dadas com dois fantasmas sagrados, eis-me no limiar de alma desdobrada. não falei tudo. arranquei espinhos e teci guirlandas de rosas.

          abri minha alma diante de mim mesmo, como um deus que se desdobra.

          contemplei escondidas vergonhas e dores acobertadas e pequeninas glórias quase esquecidas.

          convivi com meus fantasmas. não me livrei deles; para isso, seria preciso ser de outra estirpe de deuses, que não aquela a que pertenço. mas, se deles não me livrei, tornei-os, com esse convívio, amigáveis e inofensivos.

          fantasmas saudosos são aqueles que eram assustadores demônios.

 

289.

          eu me dobro novamente, para voltar à convivência com as outras gentes.

          têm eles sempre coisas a aprender e a ensinar.

          e nada mais.

 

290.

          eis, então, o momento em que estas coisas se calam dentro de mim.

 

curitiba, 10.11.1982.

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Alma desdobrada, cap. 275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 282 e 283.

Alma desdobrada, capítulos 275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 282 e 283.

275.

          não expliquei ainda o que é, para mim, a penúltima loucura.

          a penúltima loucura é a loucura que permite ainda um retorno. se não mais se conseguir sair da loucura, eis a última loucura.

          é pensar num livro e escrevê-lo. é sonhar uma casa e fazê-la. é fazer aquilo a que os homens chamam loucura, e, uma vez conseguido, verificar que nada se alterou na minha vida, a não ser a plenitude de uma nova conquista.

          é ser zaratustra, sem acabar nietzsche.

          é ser hamlet, sem delirar.

          é ser ivan karamázof, sem ver o diabo.

          é ser quixote, sem confundir moinhos com gigantes.

 

276.

          quieto, jeremias. calma! não é ainda a hora de chorar. você não é louco, apenas um impotente, senhor de sua dor.

 

277.

          perco o sono e começo a delirar.

          estas palavras foram escritas no meu texto chamado os dez dias que não me abalaram em nada.

          e eu resolvo ressuscitá-las. copio tudo e incluo na sequência disto que se parece com um livro. sobre isto, se livro ou não, não tenho certeza.

          perco o sono e começo a delirar. fiz, durante o dia, um convite para sair com um estranho jovem que encontrei no terminal do ônibus. estranho porque pálido, olhar perdido, palavras tropeçantes. ele se disse doente e não quis me acompanhar.

          e, no meu delírio, eu imagino o que poderia ter acontecido, se ele não tivesse recusado o convite. ele entraria no carro e eu tentaria uma conversa toda cheia de perguntas. tocá-lo-ia nas coxas, muito discretamente. dependendo da reação, os toques seriam mais invasivos. e eu perguntaria quer ir na minha casa, e diria que depois o levaria de volta, e que nada seria feito, caso ele não se sentisse à vontade. estas pequenas mentiras que organizam encontros e delimitam destinos.

          e terminado o momento do prazer eu me organizaria para tranquilizá-lo e devolvê-lo ao mundo. mas o sono é meio hipnótico e eu não domino mais o seu caminho. e, apavorado, vem subitamente a imagem de que ele poderia morrer durante os espasmos do orgasmo.

          o que faço? levo o corpo e o despejo num canto de rua… chamo a polícia, toda verdade deve ser revelada… faço um buraco no jardim e o enterro…

          um tipo de terror domina meu sono que não é mais sono. percebo que estou tendo um pesadelo, não consigo mover o corpo e sei que estou todo suado. e surge o empregado perguntando que terra é esta que está toda mexida?… e um dos cães me aparece com um grande osso na boca… e o jovem nu, sujo de terra, sai do chão e fica repetindo eu não morri…

          acordo apavorado. que bom que ele não veio comigo. não, não foi um pesadelo. apenas deixei que a imaginação seguisse o seu rumo desvairado.

          aos poucos meu coração se aquieta e um torpor começa a me carregar para dentro de um sono normal. mas minha mente desenha ainda uma frase, que não é completada…

          aprenda eu isto, para o dia de que nunca precisarei: a cova teria que ser bem funda, bem funda teria que ser a cova…

 

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Alma desdobrada, cap. 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273 e 274.

Alma desdobrada, capítulos 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273 e 274.

266.

          sim, o duende não falava.

          e o príncipe falou:

          você sabe que eu sei a resposta! eu tive medo porque atribuí a você coisas que não te pertenciam. pra que você fosse forte, eu tinha que te desenhar terrível. nunca imaginei que alguém pudesse ter tanta força, com este teu corpo de bebê, recém nascido de um ovo. eu não tinha percebido que você tem força porque tem esses dois olhos. eu imaginava garras e pernas fortes e dentes afiados, mas a tua força está dentro da sua cabeça ou dentro do seu coração. a tua força esta na tua ternura; se você segurar minha mão, eu me desmancho. se você me abraçar, me sentirei bebê.

          e eis que descubro…

          e era uma vez um príncipe que descobre agora… que eu não devia ter te aprisionado, que eu devia ter te visitado antes.

          e o teu olhar me diz que as coisas são assim mesmo. que eu deveria esperar. e eu não sei mais quem foi que desenhou aquele demônio na minha cabeça, se fui eu, se foi o mundo, se fomos nós dois juntos, o mundo com o meu consentimento, ou eu, por opressão do mundo.

          e eu gosto de te ter conhecido.

          e eu me pergunto se poderia te levar lá pra cima e os teus olhos me dizem que não. que o teu lugar é aqui.

          e que eu preciso vir aqui de vez em quando, me alimentar de tua sabedoria. olhar a tua fonte de luz, que vai me ensinar coisas. eu preciso que você esteja aqui, longe de mim. eu aprendo isto agora, olhando teus olhos. porque, na tua solidão, do fundo desta gruta, você zela por mim.

          foi você quem machucou o meu estômago outro dia e provocou a reação mais violenta que já vivi. foi você, duende, que me fez apaixonar por meninos. os teus olhos me dizem que é assim.

          não é culpa tua. não é culpa minha. não existe culpa.

          e, porque eu não queria me acostumar com a idéia de me apaixonar por meninos, eu te transformei num demônio. e agora eu vejo que você é o meu anjo protetor, como o anjo da guarda dos católicos. só que o anjo deles está por fora. e você está por dentro de mim.

          porque você é eu. eu acho que é mais do que isto, é mais do que isto: eu é que sou você.

          não era uma vez um príncipe; era uma vez um duende.

          era uma vez um duende que me olha agora, mas o mundo não pode vê-lo.

          o mundo pode ver a minha cara, a minha fachada, o meu sorriso.

          mas não essa gruta que está no fundo de mim.

          por isso, que o mundo me chama de eu.

          mas eu te chamo de eu.

          era uma vez um duende.

 

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