canção 02. senzala e casa grande

A ditadura da imoralidade 01. Senzala e Casa Grande

SENZALA

Mãe, tem um buraco
perto da esteira,
não posso dormir
dessa maneira.
Meu filho, meu filho,
acorde não,
já foi abolida
a escravidão.

Mãe, não vou à escola,
já estou cansado.
Eu nunca sei nada,
Sempre atrasado.
Meu filho, meu filho,
desista não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, aquele guarda
tomou meu dinheiro
depois de chamar-me
arruaceiro.
Meu filho, meu filho,
não ligue não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, frio e fome
e esse cansaço,
Só querem que a gente
vire palhaço.
Meu filho, meu filho,
fale isso não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, penso que alguém
vai me dedar,
e eu acho que o tira
quer me apagar.
Meu filho, meu filho,
não tema, não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, se me procuram
eu não estou,
e nem sei dizer,
pra onde vou.
Meu filho, meu filho,
não fuja, não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mão, falta coragem
pra te escrever,
aqui é horrível,
precisa ver.
Meu filho, meu filho,
não sofra não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, quando eu sair
eu não sei, não,
Pois tenho aprendido
cá na prisão.
Meu filho, meu filho,
não chore não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, você não vai
mais me rever,
Já foi resolvido,
vão me abater.
Meu filho, meu filho,
não morra não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, sangue, jornal,
e o chão lavado,
O dever cumprido,
tudo acabado.
Meu filho, meu filho,
me deixe não,
Já foi abolida
a escravidão.

CASA GRANDE

A casa está suja e feia,
Quebrado foi o portão.
Vazia a mesa da ceia,
O pão e o vinho no chão.

Os quartos não têm mais portas,
Em cada aposento, um cão.
Nos jarros, as flores mortas.
E os livros lá no porão.

Vassouras aposentadas
Quebrado está o escovão.
Em seu lugar, levantadas,
As armas da corrupção.

Mas nossa casa é esta.
Não adianta fingir
Que não existe a afronta.
Se a gente não protesta,
Ou não quer reagir
Eles vão tomar conta.

Nos cantos, ratos e aranhas,
E ninhos de escorpião.
E cobras de muitas manhas
Gozando da usurpação.

Areia, poeira, chuva,
Dor, fome, contravenção.
De negro, qual uma viúva,
A casa é um refúgio vão.

A vergonha foi calada.
E no Poder, o Aleijão.
Ferida e desrespeitada,
A virgem Constituição.

Mas nossa casa é esta.
Não adianta fingir
Que não existe a afronta.
Se a gente não protesta,
Ou não quer reagir
Eles vão tomar conta.

(canta jorge teles)

Curitiba, 30.09.1977

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Os músicos de Bremen

OS MÚSICOS DE BREMEN

Nota: Esta pecinha se baseia no famoso conto recolhido pelos irmãos Grimm (1785/1863 e 1786/1859). Foi apresentada com fantoches em outubro de 1976. No mesmo ano Bardotti e Enriquez tinham feito uma versão italiana para teatro profissional, I Musicanti. Em 1977 Chico Buarque traduziu I Musicanti para o português, com adaptações: Os Saltimbancos. Coincidências! Para os curiosos, fiz há dias uma tradução fiel do original, que apresento ao final do meu texto.

BURRO:
Ai, que vida triste.
Tô ficando velho
cansado e doente.
Meu pelo caiu,
não tenho mais dente.
Estou tão fraquinho
que as cargas que levo
caem no caminho.
Estou chateado.
Agora que estou
fraco, acabado,
meu patrão me trata
como um enjeitado.
Não me dá comida,
não me dá abrigo.
Danada de vida!
Pensei cá comigo:
Morrendo de fome
não quero ficar!
De manhã bem cedo,
pra outro lugar
eu vou me mandar.
Vou fugir daqui!
Quero viajar.
Quando eu era novo
bem forte e matreiro
aprendi a tocar
tambor e pandeiro.
Pois vou para Bremen.
Lá, numa orquestra,
eu quero tocar.
É nisto que dá
a gente ficar
sem se aposentar.
Muito trabalhei
mas INPS
eu nunca paguei.
Eu fui reclamar
no Fundo Rural
mas lá me pediram
tanto documento!
Nem mesmo animal,
nem mesmo um jumento
pra aguentar aquilo.
Pois vou para Bremen.
Lá numa orquestra
eu quero tocar.
Está resolvido.
Amanhã bem cedo
eu vou me arrancar!
(sai)

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canção 01. canção do mosquito

canções do protesto inútil

Introdução:

Começo a postar, a partir de hoje, as letras de canções que fiz de 1976 a 1983.

Reuni-as há uns anos num trabalho com o título acima, dividindo-as em três blocos:

1. Houve ontem uma ditadura, a ditadura da burrice. Neste bloco, incluo as canções que falam de censura, tortura, medo; os anos de chumbo da ditadura militar.

2. Veio, a seguir, outro tipo de ditadura, a ditadura da imoralidade, que, todavia, mantém a burrice anterior. Neste bloco incluo canções que falam da cidadania brasileira, da perplexidade do eleitor e contribuinte diante do poder aparentemente democrático. Ao longo dos anos vou substituindo os nomes dos bandidos de plantão.

3. Mudemos, porém, de assunto, que o estômago é fraco. Aqui, entram as canções de temas variados.

 Para facilitar, vou simplificar os títulos, porque quero apresentá-las aleatoriamente: A ditadura da burrice, A ditadura da imoralidade, Canções diversas.

A ditadura da burrice 01.Canção do Mosquito do Cabra Cabrez

Você vem me dizer

que eu sou uma coisinha à toa;

mas sei mostrar

com quantos paus se faz uma canoa.

 

Você é Polifemo,

o grande poltrão das fanfarrices.

Mas eu serei o manhoso e astuto Ulisses.

 

Você se diz rei,

e não admite nenhum ultraje.

Mas eu serei o debochado Bocage.

                                                                           

Você é um Golias,

querendo tomar tudo pra si.

Mas eu serei o pequenino Davi.

 

Você é muito forte,

e contra você ninguém se atreve.

Mas eu serei como uma bolinha de neve.

 

Você é o Gigante,

e com você ninguém se mete.

Mas eu serei o alfaiate Mata-Sete.

 

Você é um grandalhão

dos que fazem da gente picolé.

Mas eu serei um espinho no seu pé.

 

Você, que é o Cabra Cabrez

e pensa que o seu poder é infinito.

Olhe, eu estou aqui. Eu sou o Mosquito.

(canta jorge teles)

Curitiba, 11.10.1977

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