MEDÉIA, de Eurípides
(Tradução do texto integral)
Nota: Esta tradução foi feita do francês, por puro exercício, em 1968. Parti da tradução de Louis Méridier. Em 1970 Silnei Siqueira dirigiu Cleyde Yáconis numa Medéia fantástica, que veio a Curitiba. Eu cursava o primeiro ano de Letras da UFPR. A pedido do professor Oswaldo Arns, de Teoria Literária, a quem tinha falado da tradução, emprestei meu texto datilografado aos colegas, antes de assistirmos a peça. O entusiasmo foi tal, que o professor ofereceu um curso de Grego num dos horários vagos. Quem se lembra?
AMA: Quisesse o céu que o navio Argos, no seu vôo para a terra da Cólchida, não tivesse ultrapassado as ilhas Simplégadas de sombra azul; que nos vales do Pélion jamais o pinheiro fosse abatido pelo machado e não armasse com remos as mãos dos valentes que fizeram para Pélias a conquista do velocino de ouro. Medéia, minha ama, não teria singrado até as muralhas do país de Iolcos, para viver com Jasão, tendo o coração perdido de amor. Agora ela foi atingida em suas afeições mais caras. Traidor de seus dois filhinhos e de minha ama, Jasão casou-se com a filha de Creonte, o soberano do país. E Medéia, infortunada, sob os golpes do ultraje, invoca o sacramento do casamento e faz dos deuses testemunhas da recompensa vil de Jasão. Ela está sem alimento, abandonando seu corpo ao desgosto, consumindo todos os seus dias em choro, desde que ouviu a injúria do seu esposo, sem levantar mais o olhar, sem despregá-lo do chão; semelhante ao rochedo ou à vaga dos mares, ela é surda às palavras de seus amigos. Às vezes, entretanto, voltando o rosto deslumbrantemente pálido, chora consigo seu pai querido, seu país e sua casa, que ela traiu para seguir o homem que hoje a despreza. Ela conhece, pelos golpes do infortúnio, o que se ganha por deixar a terra de seus pais. Coitada! Seus filhos lhe causam horror, não vê mais alegria neles. E temo dela alguma resolução estranha. Violenta é sua alma: não suportará ser maltratada; eu a conheço e tremo, pois ela é terrível e quem se expõe a seu ódio dificilmente levará a palma da vitória.
Mas eis seus filhos, que acabam de treinar na corrida; não se inquietam com as dores de sua mãe; alma jovem não costuma sofrer. (entra o Pedagogo com os meninos)
PEDAGOGO: Velha criada de minha ama! Por que você fala tão solitária, junto das portas? Como Medéia consente em ficar só, sem você?
AMA: Velho que segue os passos dos filhos de Jasão; para os bons escravos o delírio dos senhores é uma calamidade e seu coração sente os contragolpes. Por mim, cheguei a tais excessos de desgosto que me tomou o desejo de vir aqui, confiar à terra e ao céu os infortúnios de minha ama.
PEDAGOGO: A infeliz não para de se lastimar?
AMA: Ilusão feliz. É o início de suas dores, não chegou ainda à metade.
PEDAGOGO: Pobre louca! Se é que a gente pode falar assim dos nossos amos. Ela não sabe nada de seus novos desastres.
AMA: Que aconteceu? Pelos deuses, explique-se.
PEDAGOGO: Nada, nada! Me arrependo de ter falado assim…
AMA: Pelas tuas barbas, não esconda nada a essa tua companheira de cativeiro. Nada falarei lá dentro, se preciso.
PEDAGOGO: Escutei um murmúrio sem entender bem, ao me aproximar de jogadores de dados, lá onde os velhos se sentam em torno da fonte santa de Pirene. Diziam que estes meninos com sua mãe seriam expulsos do solo de Corinto, pelo chefe do país, Creonte. Seria verdade? Ignoro.
AMA: E Jasão deixará que tratem assim a seus filhos?, apesar da desavença com a mãe?
PEDAGOGO: A antiga aliança deu lugar à nova e ele não é mais amigo de nossa casa.
AMA: Ganhamos nova dor, sem ter-se esgotado o infortúnio da dor antiga.
PEDAGOGO: Você, porém, fique em paz e conserve-se muda, pois não é tempo de nossa ama saber isto.
AMA: Crianças, estão entendendo como seu pai trata vocês? Se ele morresse! Oh, não, não, é meu senhor. Mas está tão cheio de maldade para com os seus!…
PEDAGOGO: Mas que mortal não faria o mesmo? Aprenda hoje que cada um se prefere ao seu vizinho.
AMA: Entrem, crianças. Tudo irá bem lá dentro. E você, não deixe que eles se aproximem de uma mãe desesperada, conserva-os o mais longe possível. Já a vi fixar sobre eles um olhar feroz, como pronta para qualquer explosão. E ela não suspenderá a cólera, tenho certeza, se não depois que se vingar. Que os efeitos caiam então sobre os inimigos, não sobre os amigos.
MEDÉIA: (grito)
AMA: É bem assim, meus filhos. Sua mãe entrega o coração à emoção e à cólera. Apressem-se para dentro, depressa. Evitem se aproximar do olhar dela, guardem-se de seu humor selvagem e do natural funesto de sua alma intratável. Agora vão. Depressa! (os meninos entram)
MEDÉIA: (grito) Ai de mim, desgraçada. Hei de soluçar bem alto. Filhos malditos de mãe odiosa, pudessem morrer com seu pai e toda a casa cair em ruínas.
AMA: Infeliz! Infeliz, que parte têm eles na loucura de seu pai? Por que você os odeia? Meus filhos, temo vê-los padecer. Ai, meus meninos, na minha pena extrema, tenho medo de que vocês sofram. Terrível é a vontade dos príncipes, mudam sempre de humor. Pesadas calamidades, eis o que acontece quando um deus se aborrece com uma casa. (entra lentamente o Coro, formado por mulheres de Corinto)
CORO: Ouvi a voz, ouvi os gritos da infortunada princesa; a calma não lhe veio ainda. Oh, velha, fala. Ouvi suspiros na morada de portas duplas e compadeço-me da casa que se me tornou querida.
AMA: A casa não mais existe. Tudo isto se desfaz daqui para diante. Um leito real levou o esposo e na câmara de núpcias minha senhora consome seus dias, sem que nenhuma palavra amiga possa reanimar seu coração.
MEDÉIA: (grito) Pela minha cabeça passa o dardo da chama celeste. Por que viver ainda? Venha, morte!
CORO: Zeus, Terra e Lua! Ouvem que clamor modula a infeliz esposa? Logo chegará o limite, com a morte. Não peça isto, Medéia. Se teu esposo levou seus votos a outro leito, não desperte sua cólera contra ele. Zeus tomará a tua causa; não se consuma a chorar sem medida pelo esposo.
MEDÉIA: Grande Zeus, e você, Têmis, deusa da vingança, estão vendo o que padeço, depois das promessas solenes que me uniram a tão execrável marido? Pudesse eu um dia ver aos dois, ele e sua nova mulher, em pedaços, num palácio arruinado, por causa da injúria que ousaram me fazer, a primeira! Oh!, pai, oh!, minha cidade, longe de quem eu fiz minha morada, depois de ter matado meu próprio irmão, vergonhosamente.
AMA: Ouviram essas palavras? Os gritos, com que invoca Têmis, guardiã dos votos, e Zeus, reconhecido como responsável pelos perjúrios dos mortais?
Não é pouco, o que precisa minha senhora para serenar sua cólera.
CORO: Como conseguir que ela apareça ante nossos olhos e que acolha o som de nossas palavras? Talvez esquecesse a cólera que lhe pesa no coração e na vontade de sua alma. Que, pelo menos, meu zelo não falte a meus amigos. Vai, pois, e traz Medéia para fora da casa, assegure-a da nossa amizade. Mas depressa, antes que ela faça algum mal aos da casa. A dor dela é precipitada.
AMA: Obedeço. Mas tenho medo e duvido persuadi-la. Mas farei o possível para atender a vocês. Pois quando alguma serva se aproxima dela, ela lança um feroz olhar de leoa. Se dissermos que os homens que nos precederam são desprovidos de sabedoria, não nos enganaríamos. Hinos para as festas, alegria ruidosa para os banquetes, eis o que inventaram, para encantar a vida. Mas ninguém inventou a maneira de acabar com os desgostos odiosos dos mortais, fosse através da música ou pelas vozes do canto. E é bem o desgosto que causa mortes e infortúnios terríveis às casas. É a isto que os cantos deveriam se dedicar, a acabar com estas dores. Para que cantar inutilmente, quando há já alegria? Já não há nos festins a saciedade para encantar os mortais? (entra na casa)
CORO: Eu ouvi o clamor queixoso de longos suspiros, gritos de dor e de miséria que ela atira sobre o esposo infiel e seu novo leito. Invoca Têmis, alegando perjúrio, a deusa da vingança, que a transportou pela onda noturna até a margem oposta da Grécia. (surge Medéia, transfigurada, pálida)
MEDÉIA: Mulheres de Corinto, saí de casa para me defender contra as censuras de vocês. Não quero ser como alguns mortais arrogantes que conheço, cuja negligência de seu comportamento lhes valeu um renome de desagradável indiferença. A justiça não reside nos olhos dos humanos, quando, antes de ter penetrado claramente no fundo do coração, com um simples olhar tomam aversão por quem não lhes fez nenhum mal.
Para o estrangeiro é um dever misturar-se aos da cidade e eu não aprovo aqueles que, mesmo sendo nobres no país de origem, magoa os concidadãos, por falta de conhecê-los. Não desejo magoar vocês. Mas o acontecimento inesperado que me acaba de suceder, me estraçalhou a alma; perdi a alegria de viver e morrer é meu desejo, amigas. Aquele que para mim era tudo, mais que tudo, meu esposo, tornou-se o pior dos homens.
De tudo o que vive e pensa, nós mulheres somos as mais miseráveis. Quando o homem se cansa da vida do lar sai de casa para esquecer os desgostos de seu coração. Mas nós, nós só podemos pregar os olhos numa criatura. Dizem que levamos uma vida sem perigo em casa, enquanto eles combatem na guerra. Raciocínio insensato. Eu preferia estar na linha três vezes, escudo ao flanco, do que parir uma só.
Mas para mim e para vocês a língua não é a mesma. Aqui vocês têm a sua cidade, a morada paterna, amigas. Eu, eu estou só, sem cidade e alvo de ultrajes de um marido que me raptou como presa de uma terra bárbara, sem mãe, sem irmão, sem parente, junto a quem atirar a âncora, longe de meu infortúnio. Pois bem, tudo que quero é isto: se eu descubro um caminho, um modo para fazer pagar a meu esposo o resgate de meus males, fiquem caladas, caladas. Uma mulher é toda medrosa, fraca para a luta e diante das armas. Mas, se for lesada nos direitos de seus leitos, não haverá alma mais sanguinária.
CORO: Eu te conheço bem. Em boa hora castigarás o teu esposo, Medéia. Que você chore sua mágoa, não estou surpresa. Mas ali vem Creonte, o rei do país. Ele vem anunciar novas decisões.
CREONTE: Medéia! É a você, rosto sombrio, a você, esposa em furor, a você que falo.
Saia desta terra em exílio com teus dois filhos, e sem demora. Vim para cuidar desta ordem, não voltarei ao palácio antes de ter enviado você para fora das nossas fronteiras.
MEDÉIA: Ah, infeliz, minha perda está consumada. Meus inimigos soltam as velas e, para escapar à ruína, não há nenhum desembarque. Uma pergunta, entretanto, a despeito de minha dor: por que motivo sou exilada, Creonte?
CREONTE: Por medo. É inútil alegar pretextos; tenho medo de que você faça algum mal irremediável à minha filha. Muitas razões contribuem para o meu temor: você é hábil e versada em muitos crimes e sofre por ser despojada do leito conjugal. Ouvi dizer, anunciaram-me que você ameaça de um só golpe destruir o pai que deu sua filha, bem como ao esposo e à esposa. Acautelo-me antes de ser vítima. Melhor atrair o teu ódio agora que chorar depois lágrimas amargas sobre minha fraqueza.
MEDÉIA: Não só hoje, Creonte, mas sempre meu renome me foi danoso. Nunca um homem a quem a natureza dá inteligência deveria ensinar a seus filhos mais que o ordinário. Além de um renome de imprestável, ganha-se a inveja dos concidadãos. E eu participo desta sorte. Minhas habilidades me tornam odiosa a uns e a outros eu pareço hostil. E no entanto meu saber não vai tão longe assim. Qualquer que ele seja, você me teme e espera de mim alguma falta.
Não estou com vontade de pecar contra soberanos! Não trema diante de nós, Creonte. Pois o que fez você de mal? Deu sua filha a quem você quis. É a meu esposo que odeio. Mas, para você, tua conduta me parece sábia. Não tenho ciúmes da prosperidade deles; casem-se, sejam felizes. Mas este chão, deixa-me habitá-lo. A injustiça que nos fizeram, nós a calaremos: os mais fortes nos venceram.
CREONTE: Teu falar respira doçura ao ouvido; mas estremeço, pensando que no fundo da alma você medita uma desgraça e minha confiança diminui mais ainda. Pois é mais fácil cuidar-se de um hábil que se cala do que de uma mulher encolerizada. Parta, pois, o mais cedo. Nada de palavras. Minha decisão não vacila e nenhum artifício te faria morar junto de nós, você é minha inimiga.
MEDÉIA: Pelos deuses, Creonte.
CREONTE: Palavras perdidas. Não conseguirá me dobrar.
MEDÉIA: Me expulsa sem atender a minhas preces?
CREONTE: Meu coração não te prefere à minha casa.
MEDÉIA: Oh, pátria minha, como te lembro hoje.
CREONTE: Além de meus filhos, nada me é tão querido.
MEDÉIA: Para os mortais, quanto mal é o amor.
CREONTE: Depende das circunstâncias.
MEDÉIA: Que ele não escape de Zeus, o autor de meus males.
CREONTE: Vá, pois, insensata…
MEDÉIA: A miséria é nossa quota…
CREONTE: Dissipa minhas misérias…
MEDÉIA: Nunca falha…
CREONTE: Os braços de meus guardas vão te expulsar à força.
MEDÉIA: Não, isto não. Creonte, ouça meu pedido.
CREONTE: Você está me forçando a isto!
MEDÉIA: Nós fugiremos. Não é o que pedirei.
CREONTE: Então por que resiste, em vez de desaparecer?
MEDÉIA: Um dia só! Deixa-me ficar hoje. Que eu me prepare para o exílio e assegure recursos a meus filhos, pois o pai não se digna preocupar-se com a sorte das crianças. Piedade para eles. Você também é pai, é natural que seja benevolente. Não é de mim nem de meu exílio que cuido; é deles, sobre seu infortúnio é que choro.
CREONTE: Meu querer nada tem de tirano e minha piedade sempre me foi funesta. Hoje ainda vejo minha falta e entretanto você será atendida. Mas se a chama divina do sol do próximo dia te vê, a você e a teus filhos, dentro de nossas fronteiras, você morrerá. Digo e é a minha última palavra. (sai)
CORO: Pobre mulher infeliz! Que dores são as tuas! Para onde ir? A qual hospitalidade recorrer? Uma casa, uma terra que te salve da infelicidade, será que a encontrarás? Em que mar de males sem saída um deus fixou o teu caminho?
MEDÉIA: Completa é a minha dor, sim, quem o contestará. Mas as coisas não se passarão assim, não acreditem ainda. O futuro guarda terríveis horas aos casados de ontem e a seus pais, duras provas. Acreditam que teria bajulado este homem, não fosse por desejo de vingança? Não o teria dirigido a palavra, não o teria tocado com a mão. Mas ele levou a imprudência tão longe que, podendo exilar-me e impedir meus planos, ele me deixa ficar hoje. E hoje, de três de meus inimigos farei os cadáveres: do pai, da filha e de meu esposo.
Muitos caminhos assassinos se abrem à minha frente, não sei qual tentar primeiro, amigas. Ponho fogo no palácio? Ou atravesso-lhes o fígado com a espada, entrando a passos mudos na câmara onde está o leito? Um obstáculo me detém; se sou presa ao ultrapassar os portões ou a executar o golpe, minha morte fará rir a meus inimigos. O melhor é seguir o caminho direto, aquele em que somos hábeis, vencê-los pelo veneno. Seja! Ei-los mortos. Mas… e depois? Para onde ir? Que cidade me acolherá? Que hospedeiro me defenderá, oferecendo sua terra para asilo e sua morada por garantia. Não há por enquanto nenhum. Esperemos ainda. Que uma segura proteção surja, e será pela astúcia e sem ruído que recorrerei ao crime; mas se me vejo rejeitada por uma adversidade sem remédio, eu mesma, espada na mão, mato-os.
Não e não; pela deusa que venero mais que todas e que escolhi para me auxiliar, Hécate, sentada no escondido de meu lar, nenhum deles rirá de mim, atormentando meu coração. Amargos e lúgubres tornarei suas bodas, amarga a aliança deles e amargo o meu exílio. Vá pois, Medéia, nada poupe de teu saber em teus planos e em teus artifícios. Em marcha para a obra terrível. Eis a hora da bravura. Vê como te traem. Você não deve pagar tributo à zombaria pela união de sangue de Sisipo com um Jasão qualquer, você, filha de nobre pai e da linhagem do Sol. Você tem a ciência. A natureza nos fez diferentes, a nós, mulheres, e quando somos incapazes de fazer o bem, para o mal somos as mais hábeis.
CORO: Para suas fontes voltam os rios sagrados! A Justiça, assim como todas as coisas, está ao inverso. Os homens maquinam a astúcia e a fé jurada aos deuses está vacilante. Mas a nossa condição de mulher conquistará glorioso renome junto às vozes do povo. Eis a hora de prestígio para nós; não pesará mais sobre nós rumor injurioso.
As musas abandonarão os velhos temas e não mais cantarão nossa falta de fé. O mestre das melodias, Febo, não inspirou nosso espírito no canto com a lira; tivesse sido assim, nós teríamos feito hinos contra a raça dos machos. A longa passagem do tempo tem muito a dizer, se não a nosso favor, pelo menos a respeito dos homens.
Você, longe da casa paterna, com o coração em delírio, vagou e ultrapassou as rochas duplas que fecham o Euxino. Habitando um solo estrangeiro, infeliz, foi despojada de seu leito, e sem marido acaba por ser exilada ignonimiosamente.
Foi-se o respeito às promessas. Você não mais tem a casa paterna, infortunada, para atirar uma âncora que a fixasse longe de tuas dores. E, mais forte que teu leito, outra rainha domina a casa. (entra Jasão)
JASÃO: Não pela primeira vez eu constato, mas sempre, como o humor amargo é um flagelo irremediável. Você podia habitar esta terra e esta casa, suportando com um coração leve as vontades dos mais fortes. Mas tuas palavras insensatas te expulsam do país. Quanto a mim, não me incomodo com isso. Você é livre para dizer que Jasão é o pior dos homens. Mas por causa dos murmúrios contra os reis, é bem feito se você é exilada. Sem cessar, tentei evitar a cólera do rei irritado, desejava que você ficasse aqui. Mas você, longe de suspender a loucura, continuou a injuriar os reis. Será pois exilada do país. No entanto eu, apesar dos ultrajes, não reneguei aqueles que me são queridos e quero que você saiba que me preocupei com os teus interesses. Não quero que seja exilada com os meninos, sem recurso algum. O exílio traz muito sofrimento. Sei que você me odeia, mas eu não saberia querer-te mal.
MEDÉIA: Infame celerado – pois essa é a pior palavra com que minha língua consegue ferir tua covardia – eis você diante de nós, aqui, nosso mortal inimigo. Não, não existe maior coragem do que olhar na face dos amigos depois de maltratá-los; de todos os vícios do mundo, eis o maior: a falta de vergonha. Mas foi bom que você tenha vindo. Mitigarei meu coração injuriando você e você sofrerá ao me ouvir.
Vou começar pelo começo. Salvei você, como sabem aqueles gregos que embarcaram com você no navio Argos, quando te mandaram domar os touros de hálito de fogo e semear o campo da morte; e salvei você do dragão que guardava o velocino de ouro, envolvendo-o com seus anéis de dobras múltiplas, o dragão que nunca dormia; pois eu o matei e fiz surgir para você a luz da salvação. Eu mesma traí meu pai e minha cidade para te seguir até Iolcos, com mais ardor do que sabedoria; fiz com que Pélias morresse sob os golpes das próprias filhas, livrando você de todo temor. E assim tratado por nós, homem o mais vil dos homens, você nos traiu, quando já tinha filhos. Pois se você fosse sem descendentes seria perdoável cobiçar um outro leito. As tuas antigas promessas se perderam e não sei se você pensa que os deuses deixaram de reinar ou que há novas leis entre os homens, pois com certeza você tem consciência da própria deslealdade.
Ah, as minhas mãos que você sempre segurava e os meus joelhos. Como foi inútil sujeitar-se ao abraço desse miserável e como fomos desiludidas em nossas esperanças.
Vamos, quero consultar você como amiga; a bem dizer, que posso esperar de você? Espera!, não se vá. Minhas perguntas ressaltarão melhor tua infâmia. Hoje, para onde levar meus passos? Para a casa paterna?, que traí para te seguir? Ou para as infelizes filhas de Pélias? Bela acolhida me dariam elas!, cujo pai eu assassinei. Pois é isso mesmo: tornei-me inimiga das minhas afeições familiares e para agradar você, entrei em guerra com aqueles a quem não devia ter maltratado. E que recebo em troca? As mulheres gregas hão de invejar minha felicidade… Que admirável e fiel o esposo que tive em você, eu, expulsa do país, sem amigos, só com meus dois filhinhos desamparados, que belo opróbrio em verdade para este esposo, ver errar em misérias os filhos e a mim, que te salvei. Zeus, por que você permite que se reconheça o ouro de baixo quilate mas não colocou alguma marca para se distinguir o homem perverso?
CORO: A cólera que domina amigos em luta é bem difícil de ser acalmada.
JASÃO: Ao que tudo indica, não posso falar sem habilidade e como bom timoneiro devo conduzir meu caminho para me livrar da intemperança tagarela da tua língua atenta. Para mim, já que você leva a tão alto os teus serviços, é a Afrodite que atribuo a salvação de minha expedição; a ela somente, entre deuses e homens. Você é mesmo de espírito sutil, pois não quer confessar que foi o amor, com seus cuidados inevitáveis, quem te obrigou a me salvar. Não quero ser muito preciso sobre este ponto, não lamento que você tenha me servido. Pois como preço por minha salvação você recebeu mais do que deu. Explico-me melhor. Primeiro, a terra grega ficou sendo tua morada, em vez de um país bárbaro. Você aprendeu a justiça e a viver de acordo com as leis, em vez de pela força. Todos os gregos ficaram sabendo das tuas ciências e teu renome se elevou; se estivesse morando no fim do mundo, como antes, ninguém falaria de você. Eu mesmo não desejaria nem ouro em minha casa nem a bela voz de Orfeu, se meu destino fosse tão notório.
Isto é o que tinha a dizer sobre o que fiz; você mesma provocou este debate. Quanto às repreensões que você atira sobre minhas bodas recentes, provarei agora que agi, primeiro pela sabedoria, depois pela virtude e finalmente pela grande amizade que sinto por você e por meus filhos. Tenha calma! Tendo deixado Iolcos para vir para cá, arrastando atrás de mim infortúnios difíceis de serem desfeitos, que aurora mais feliz teria encontrado?, se não desposar a filha de um rei, eu, um banido. Não pelos motivos que te irritam, ódio por teu leito ou ferido de desejo de uma nova esposa. Também não pela ambição ciumenta de uma linhagem numerosa; já bastam os filhos que tenho, nada censuro aqui.
Eu queria, isto é ponto capital, assegurar-nos uma vida próspera, ao abrigo da necessidade, sabendo que o pobre sempre vê os amigos se afastarem; além disto, proporcionar a meus filhos uma educação e dar a eles irmãos para firmar a minha felicidade. Pois você, pra que precisa de mais filhos? No meu caso, tenho a intenção de servir meus filhos vivos pelos filhos a vir. Não pensei corretamente? Você mesma concordaria, se a preocupação pelo teu leito não te amargasse o coração. Mas vocês mulheres acreditam que as coisas só estão bem quando tudo está de acordo com o amor. Se uma desgraça atinge seu leito, o mais útil e o mais brilhante proveito se torna o mais hostil. Os mortais bem que podiam ter filhos de outra maneira, sem precisar das mulheres; assim os humanos não conheceriam tantos males.
CORO: Jasão, você ordenou habilmente tuas palavras; mas, para mim, traindo tua esposa você não agiu com justiça.
MEDÉIA: (para o coro) É verdade que em muitos pontos estou em desacordo com alguns dos mortais. Para mim, que uno a injustiça à habilidade da palavra, é com o último rigor que o condeno. Elogiando-se com palavras, tentando disfarçar habilmente as iniquidades, astuciosamente cometeu todos os crimes. Mas a habilidade dele não irá longe. (para Jasão) Não venha à minha frente exibir belas aparências e eloquência. Uma palavra deverá te derrubar: você deveria, se não fosse tão miserável, fazer tal casamento com meu consentimento e não sem que os teus o soubessem.
JASÃO: Belo consentimento você daria a meus projetos, você que ainda hoje não consente ao próprio coração acalmar sua cólera.
MEDÉIA: Eu sei bem o que você pretendia. Tuas bodas com uma bárbara te encaminhavam a uma velhice sem glória.
JASÃO: Pois escute bem: não foi por causa de uma mulher que me apossei de um leito real: já disse. Queria salvar você, dar a meus filhos irmãos nobres que seriam o sustentáculo de nossa casa.
MEDÉIA: E quero eu uma felicidade que faz meu luto e uma prosperidade que me dilacera o coração?
JASÃO: Quer saber como mudar tua vontade e mostrar-se mais sábia? Que a felicidade jamais te pareça funesta e que na boa sorte não se acredite na má.
MEDÉIA: Já chega! Você tem lá o seu refúgio. Mas e eu? É afastada de todos que partirei para o exílio.
JASÃO: Você mesma escolheu! Não acuse, se não a si mesma!
MEDÉIA: Eu? Arranjando outro marido e te traindo?
JASÃO: Não. Lançando sobre o rei maldições ímpias.
MEDÉIA: À tua casa também eu trarei a miséria.
JASÃO: Saiba bem: não vou ficar discutindo contigo. Se quer receber de mim qualquer coisa pro exílio de teus filhos, fala. Estou pronto a te dar a mão e a enviar cartas a meus antigos hóspedes para que cuidem de vocês. Se recusa tais ofertas, mulher, dá apenas prova de louca. Acaba com esta raiva e sairá ganhando.
MEDÉIA: Não quero nada de você. Nem de teus hóspedes. Guarda os teus presentes. Presentes de um sem vergonha não têm utilidade.
JASÃO: Pelo menos invoco os deuses a verem que meu desejo é tudo fazer por você e as crianças. Mas favores te desagradam e tua obstinação recusa os amigos; piores serão tuas penas.
MEDÉIA: Vá embora. A saudade de tua nova mulher te chama quando você perde de vista sua casa. Continua tuas núpcias. Quem sabe!… e os deuses escutam minha voz… quem sabe teu casamento não será reconhecido. (Jasão sai)
CORO: Quando os amores são muito fortes, não trazem aos homens nem bom renome nem virtude; a influência de Afrodite continua sem medidas, nenhum deus tem tanto poder. Possa você, deusa, com teu arco de ouro, nunca dirigir contra mim o inevitável dardo com o veneno do desejo.
Consinta que eu me mantenha na castidade, o mais belo presente dos deuses. Que nunca, em seu furor, Afrodite inflame meu coração por um leito estrangeiro, infligindo disputas irritadas e brigas insaciáveis. Que ele respeite a paz dos lares, protegendo com seus decretos a vida das esposas.
Oh minha pátria, oh morada de meus pais, que eu nunca me veja sem cidade, atravessando duramente uma existência de miséria e desgostos lamentáveis. Seria preferível a morte. Que ela ponha fim a meus dias. Entre as penas, nenhuma é maior que a privação da pátria.
Nossos olhos viram demasiado; você não teve cidade nem amigo para ter piedade em tua mais cruel prova. Morra o ingrato que não honra o amigo, entregando-lhe as chaves de um puro coração. Minha amizade nunca será com este tipo de gente. (entra Egeu, rei de Atenas)
EGEU: Saudações, Medéia. Não existe melhor cumprimento para uma pessoa amiga.
MEDÉIA: Saudações, também, Egeu, filho do sábio Pandion. De onde vem, em visita a
esta terra?
EGEU: Acabo de deixar o santuário de Apolo.
MEDÉIA: E o que foi fazer no umbigo do mundo?
EGEU: Procurava um modo de ter filhos.
MEDÉIA: Como? Viveu sem filhos até estes dias?
EGEU: Sem filhos, sim. Algum deus nos infligiu tal sorte.
MEDÉIA: Mas você é casado?
EGEU: Sim. Sujeitei-me às leis de Himeneu.
MEDÉIA: E o que falou Apolo sobre a tua posteridade?
EGEU: São palavras enigmáticas para a razão humana.
MEDÉIA: Seria permitido saber o oráculo?
EGEU: Claro. Pois é necessário mesmo inteligência.
MEDÉIA: Qual foi a resposta? Quem sabe eu a compreenda.
EGEU: Não desligar um pé do outro…
MEDÉIA: Antes de quê? Ou antes de atingir que país?
EGEU: Antes que chegue à casa de meus pais.
MEDÉIA: E o que te trouxe a esta terra?
EGEU: É um certo Piteu, que reina em Trezena.
MEDÉIA: Parece que é um filho de Pélops, de piedade famosa.
EGEU: É a ele que vou comunicar o oráculo.
MEDÉIA: Sim, ele é sábio e versado em oráculos.
EGEU: E para mim, o mais caro dos aliados.
MEDÉIA: Boa sorte, então! E que os teus desejos se realizem.
EGEU: E você, Medéia, por que este olhar sombrio e este ar devastado?
MEDÉIA: Egeu, meu esposo é o mais covarde dos homens.
EGEU: Mas por que diz isto? Conte os seus desgostos.
MEDÉIA: Sem nenhuma falta minha, ele me injuriou.
EGEU: O que fez? Fale mais claramente.
MEDÉIA: Submete sua casa ao domínio de outra mulher.
EGEU: Ele não ousaria uma ação tão infame!
MEDÉIA: Pois saiba. A nós que ontem ele amava, hoje despreza.
EGEU: Foi tomado de amor? Ou passou a odiar teu leito?
MEDÉIA: Sim, um grande amor. Ele traiu os seus.
EGEU: Que desgraçado, se é tão covarde como falas.
MEDÉIA: Conseguiu uma aliança com uma filha de reis.
EGEU: Que rei? Fala!
MEDÉIA: Creonte, que reina sobre esta terra de Corinto.
EGEU: Teu desespero é então perdoável, Medéia.
MEDÉIA: Ah, mas isto não é tudo. Fui expulsa daqui.
EGEU: O quê? Por quem? Outra infelicidade.
MEDÉIA: Creonte me baniu da terra de Corinto.
EGEU: E Jasão permitiu? Isto é pior que tudo.
MEDÉIA: Sua vontade se resignou. E eu… eu te conjuro, Egeu. Por teus joelhos idosos – eis-me tua suplicante – piedade, piedade para meu infortúnio. Não me deixe banida ao abandono. Acolhe-me em teu país, em teu lar. Assim possa você obter dos deuses os filhos que deseja e morrer feliz. Você desconhece a aurora que encontrou em mim; sei como por fim à tua esterilidade, farei com que você gere uma descendência, tal a virtude dos filtros que conheço.
EGEU: Mais de um motivo me levam a te conceder esta graça, Medéia. Primeiro, pelos deuses, depois, pelos filhos que você promete fazer nascer, pois este é todo o desejo de meu ser. Eis pois minha vontade; se você chegar ao meu território, vou te acolher, como é meu dever. Lá encontrará abrigo inviolável, nenhum perigo poderá te perder. Não posso consentir em levar você daqui, agora, pois não quero ser censurado pelos meus hospedeiros.
MEDÉIA: Assim será, então. Mas gostaria de ter uma garantia para tuas promessas…
EGEU: Não tem confiança? Que dificuldade te impede?
MEDÉIA: Tenho confiança. Mas as casas de Pélias e de Creonte me são hostis. Ligado por promessas, você não conseguiria me livrar das mãos deles, caso eles quisessem tirar-me do seu país. Pois, se você dá apenas a palavra e não jura pelos deuses, acabaria por ceder às intimações de algum arauto. Eu sou frágil enquanto que eles possuem posteridade e uma casa real.
EGEU: Tua fala é prudente. Se você quer, assim farei, não me recuso. Para mim,
inclusive, ficará mais fácil dizer a teus inimigos que estou preso por um juramento. E você se sentirá mais segura. Que deuses devo invocar?
MEDÉIA: Jura pelo chão desta terra, pelo Sol, pai de meu pai, e por todos os deuses reunidos…
EGEU: De fazer ou deixar de fazer o quê?
MEDÉIA: De jamais me expulsar de teu país. E se algum inimigo quiser me tomar, jura que, por tua própria vontade, não me entregará enquanto estiver vivo.
EGEU: Juro pela terra, pela brilhante luz do Sol e por todos os deuses. Observarei o
que você diz.
MEDÉIA: Isto basta. Mas, se você não observar a promessa, que castigo desejar?
EGEU: Aquele que abate os mortais sacrílegos.
MEDÉIA: Tudo está bem, então. Parte alegre, Egeu. Eu mesma irei para a tua cidade o mais cedo, depois de executar o que proponho e de obter o que desejo.
CORO: Queira o filho de Maia, o deus que conduz os viajantes, queira ele te encaminhar até tua casa, para que você possa realizar o sonho que te apressa o passo. Você me parece um homem de bom coração, Egeu. (Egeu sai)
MEDÉIA: Zeus, justiça dos deuses, luz do Sol! Agora, amigas, será bela a vitória que levaremos a nossos inimigos.
A caminho! Já! Agora tenho esperança de que eles paguem um justo castigo. Pois este homem, do lado onde mais perigava nossa nave, ele apareceu como o porto de nossos desejos, onde jogaremos a amarra de nossa nau.
Vou dizer a vocês toda a minha intenção. Escutem uma linguagem… que não é de alegria.
Farei com que um criado peça a Jasão que volte aqui. Ao chegar, direi palavras doces, que sua vontade é a minha e que aprovo o casamento real que realizou ao nos trair, que estas decisões foram úteis e felizes. Mas pedirei que meus filhos fiquem, não porque quero deixá-los numa terra hostil, mas para matar astuciosamente a filha do rei. Pois vou enviá-los com presentes para suplicarem à princesa o perdão do exílio. Os presentes serão um véu delicado e uma coroa de ouro; se ela põe o véu ou a coroa, morrerá miseravelmente e com ela quem ousar tocá-la; tal é a força dos venenos com que impregnarei os presentes.
Mas agora eu mudo meu falar e choro sobre o que é preciso fazer em seguida. Meus filhos… eu os matarei, nada poderá livrá-los; e depois de assim ter arruinado a casa de Jasão, eu fugirei, perseguida pelo assassinato de meus filhos bem amados e a perversidade abominável que terei ousado. Ser zombada pelos adversários! Não vou suportar isso, amigas.
CORO: Para longe essas ações, Medéia. Já que nos comunicou suas intenções, nós te pedimos, queremos servir a você e às leis humanas.
MEDÉIA: Impossível, amigas. As tuas palavras têm uma desculpa. Vocês não foram tratadas cruelmente como eu.
CORO: Você vai ter coragem para matar o fruto de teu ventre?
MEDÉIA: Esta é a melhor maneira de dilacerar o coração de meu marido.
CORO: Mas você será a mais infeliz das mulheres!
MEDÉIA: Ao ato. De agora em diante, todos os argumentos são supérfluos. (para a
ama) Vá, você, e traga Jasão. É sempre a você que recorro para as missões de confiança. Mas nada fale de minhas resoluções, se você ama a sua senhora e é mulher. (sai a Ama para um lado; Medéia entra em casa)
CORO: Os Erecteus sempre foram prósperos, felizes filhos de deuses. Com um território sagrado que não conhecia a conquista, eles se alimentavam da mais ilustre sabedoria. Num espaço sempre resplendente, eles caminham com graça, lá onde outrora as nove musas foram geradas pela loura Harmonia.
Nas belas ondas do Cefiso, Afrodite, como contam, tomou as leves brisas de doce hálito para soprar no país; com uma coroa de rosas perfumadas sobre a cabeça, ela manda os amores, auxiliares de toda virtude, para habitarem esta terra de sabedoria.
Como a cidade dos rios sagrados, a terra acolhedora de amigos, como te admitirá com os outros, você, infanticida, você, impiedosa. Pensa na maneira como terá que matar os próprios filhos, pensa nesse assassinato. Não, Medéia. Suplicamos com toda a força, não mate teus filhos!
Como encontrará em tua alma, em teu braço, coragem para dirigir o golpe de uma audácia terrível. Como, ao olhar teus filhos tomarás sem lágrimas a quota de assassina? Você não terá coragem, por mais resoluto que esteja o coração, diante dos filhos ajoelhados em súplica. (chega Jasão)
JASÃO: Venho ao teu chamado. A despeito da tua animosidade, vai ter em mim um ouvido atento. O que quer pedir agora?, mulher.
MEDÉIA: Jasão, peço que perdoe minhas palavras passadas. Deve ser indulgente aos meus humores, depois de tanto amor que nos doamos. Raciocinei com calma e me censurei. Por que esta demência e esta hostilidade contra tão sábia decisão?, eu pensei. Por que tratar como inimigos aos soberanos desta terra, ao esposo que age para melhorar nossos interesses, desposando uma princesa, dando irmãos nobres a teus filhos? Não mais renunciarei à minha cólera? Que sentimentos são estes, quando os mesmos deuses repartem tão bem as coisas? Já não tenho filhos? Ignoro que somos exilados e sem amigos?
Estas reflexões me fizeram sentir toda a minha imprudência e a inutilidade de meu ressentimento. Agora eu te aprovo; acho-te sábio, por ter contratado esta nova aliança, e me julgo insensata; eu que devia entrar nos teus desejos e ajudar-te a realizá-los, assistindo o teu leito e tomando os cuidados de tua jovem esposa. Mas não quero falar mal da mulher, somos o que somos. Você não deverá imitar minha injúria nem acrescentar puerilidades às minhas puerilidades. Nós cedemos. Seríamos insensata se não o fizéssemos. Mas agora tomei melhores resoluções. Crianças, crianças! Venham aqui! Venham! (as crianças entram) Venham cumprimentar o pai e conosco dirigir-lhe a palavra. Como sua mãe, esqueçam o antigo ódio pelos amigos. Fizemos as pazes, a cólera desapareceu. Segurem a mão dele. Ah, que pensamento me vem, de dores escondidas. Meus filhos, viverão o bastante para estender a mim também estes bracinhos queridos? Infeliz que sou! Como sou levada pelas lágrimas e pela emoção. Dou fim a esta disputa e meus olhos se enchem de lágrimas.
CORO: Também de meus olhos brotam fios de choro. Pudesse essa infelicidade não ir tão longe…
JASÃO: Aprovo esta mudança, Medéia, sem lamentar o passado. É natural que o teu sexo demonstre censura contra o esposo que contraiu novas núpcias. Mas teu coração mudou para o melhor; você reconheceu, com o tempo, é verdade, a melhor saída. Isto é agir como mulher sensata.
Quanto a vocês, meninos, seu pai não negligenciou sua sorte. Assegurou sua salvação com a ajuda dos deuses e pensem que um dia, aqui em Corinto, terão um nobre lugar com seus irmãos. Cresçam. O resto será com seu pai e os deuses que nos serão propícios. Possa eu vê-los florescentes de juventude, superiores a meus inimigos.
Mas você, Medéia, por que chorar tanto? Por que desviar para o lado este rosto tão pálido? Não está contente com minhas palavras?
MEDÉIA: Não é nada. Pensava nos meninos.
JASÃO: Fique tranquila. Cuidarei do futuro deles.
MEDÉIA: Obedeço. Não quero duvidar da tua palavra. Mas a mulher é coisa fraca e
levada ao choro.
JASÃO: Mas por que lamentar tanto pelas crianças?
MEDÉIA: Eu os trouxe ao mundo. E quando você lhes desejava vida longa, me perguntei se estes votos se realizariam.
Mas voltemos ao assunto pelo qual pedi que viesse. Já falei uma parte, quero falar o resto. O rei quis me afastar. É o melhor para mim, acredito bem, para que minha existência não seja um tormento para você nem para os soberanos, que me acreditam hostil. Deixo pois este país para o exílio. Mas e as crianças? Peça a Creonte para não bani-los, para que sejam educados por você.
JASÃO: Conseguirei dobrá-lo? Não sei, mas é meu dever tentar.
MEDÉIA: Pelo menos convida a tua mulher a pedir que seu pai não os expulse.
JASÃO: Sem dúvida. E me orgulho, eu mesmo, de persuadi-la.
MEDÉIA: Sim, se ela é mulher como as outras. Por meu lado, vou ajudar com isto. Vou mandar presentes para ela, superam tudo o que existe no mundo, estou segura. As
crianças os levarão. Vamos. Que bem depressa tragam a mim os presentes. Além da felicidade que ela encontra por partilhar o leito com você, possuirá agora presentes que outrora o Sol, pai de meu pai, doou a seus descendentes. (a Ama traz os presentes; Medéia entrega aos meninos) Levem este presente de casamento para a princesa, a feliz desposada. Não são presentes desprezíveis, o que ela receberá.
JASÃO: Pobre louca. Por que despojar-se de seus bens? Pensa que a casa real precisa de véus e ouro? Guarde isto. Se minha mulher me ama, ela me preferirá a estes presentes.
MEDÉIA: Não fale assim. Presentes agradam até aos deuses, dizem todos, e o ouro é para os mortais mais forte que qualquer palavra. O destino está do lado dela, sorte dela que hoje um deus a favoreça. É jovem e reina. E eu daria a própria vida para salvar meus filhos do exílio.
Vão, então, crianças. Vão até a rica mansão e supliquem à nova mulher do seu pai. Implorem para não serem exilados e ofereçam os presentes. Antes de tudo, é importante que ela os receba de suas próprias mãos.
Depressa! E tragam à sua mãe a mensagem que ela está esperando. Tomara que vocês consigam. (sai Jasão, levando os meninos)
CORO: Agora não há mais esperança. A vida dos meninos está contada. Já se encaminham para a morte. Ela receberá, coitada, receberá a calamidade no diadema dourado. Ela mesma colocará em torno dos cabelos louros a coroa da morte.
Ela vestirá o véu e porá a coroa de ouro e levará as vestes nupciais para o mundo das sombras. Eis a cilada. O destino mortal onde a pobre princesa cairá. Não há como escapar.
E você, esposo infeliz e culpado que se uniu aos reis, sobre teus filhos, sem saber, sobre a vidinha deles você atrai a morte e um fim cruel para tua esposa. Infeliz; você se perderá dentro do próprio destino.
Choro também a tua dor, mãe miserável, que vai matar os filhinhos por causa do leito nupcial que o marido criminoso traiu para partilhar de outro leito. (entra o Pedagogo, com os meninos)
PEDAGOGO: Senhora! Aqui estão os meninos. Não serão exilados, receberam a graça. A jovem princesa recebeu com alegria os presentes das mãos deles. A paz foi feita com os meninos. Eh, por que este aspecto perturbado, no momento em que a fortuna te sorri?
MEDÉIA: Ah!
PEDAGOGO: Ela não aceita minha notícia.
MEDÉIA: Aaah!
PEDAGOGO: Anunciei uma infelicidade, sem saber? Estaria enganado, achando que trazia uma boa nova?
MEDÉIA: A tua notícia é o que é. Você não tem nada com isto.
PEDAGOGO: Por que este olhar sombrio e no rosto essa torrente de lágrimas?
MEDÉIA: É preciso, velho. Eis o que os deuses e eu, na minha loucura, decidimos.
PEDAGOGO: Coragem. A você, também, a você teus filhos trarão a esta terra, um dia.
MEDÉIA: Antes disso, a outros eu levarei à terra. Ai de mim.
PEDAGOGO: Você não é a primeira que é separada dos filhos. Devemos nós mortais receber os golpes da sorte, com o coração leve.
MEDÉIA: Assim farei. Mas entre em casa e prepare meus filhos para o que é preciso, como todos os dias. (o Pedagogo sai)
Ai, meus filhos, meus filhinhos. Logo logo vocês terão uma nova morada, onde habitarão para sempre, deixando-me entregue à minha dor. E eu, eu partirei para o exílio numa terra estrangeira, sem a presença de vocês a me dar alegria, antes de lhes ter dado uma esposa, antes de ter preparado para vocês o leito nupcial e carregado as tochas de Himeneu.
Ai, que presunção a minha, pobre infeliz. Foi então em vão, meus meninos, em vão que eu os criei, em vão eu me afligi por vocês, em vão fui dilacerada pelas dores nas duras provas do parto? Ah, outrora eu punha todas as minhas esperanças em vocês; que vocês me nutririam na velhice; que ao morrer me sepultariam com as próprias mãos, piedosamente, sorte invejada por todos os humanos! E este doce pensamento nada mais representa. Privada de vocês eu levarei uma vida de penas e misérias. E vocês nunca mais verão sua mãe, uma outra existência os aguarda.
Ai, por que me olhar desse jeito, meninos? Por que este supremo sorriso? Que fazer?, amigas. O coração me falta diante do olhar radioso de meus filhinhos… Eu não saberia… Adeus, meus desejos sinistros. Levarei meus filhos para fora deste país. Será então preciso, para torturar o pai pelo mal que fez a meus filhos, redobrar minha própria infelicidade? Não. Não. Com minhas mãos? Adeus, projeto de vingança.
Mas que sentimentos são estes? Vou eu então me expor à zombaria, deixando meus inimigos sem punição? É preciso coragem. Que vergonha entregar a alma à covardia. Entrem em casa, crianças. (as crianças saem) Aquele que não devia contemplar o sacrifício, que se aquiete, mas minha mão não falhará.
Não, coração, não! Não realize este crime! Deixa-os vivos, infeliz. Piedade para eles. Ainda que vivam longe de mim, serão minha alegria.
Não! Pelos gênios vingadores do Hades. Ninguém dirá de mim que eu os entreguei aos insultos de meus inimigos! É preciso que morram e se têm que morrer, que morram por mim, eu que os dei ao mundo. Está decidido. O ato é inevitável.
A princesa, a esta hora, está morrendo com a coroa na cabeça, tenho certeza. E já que tenho que seguir a via da suprema desventura, e dar a eles desventura mais miserável ainda, vou dizer adeus a meus filhinhos. Meninos!… Meninos!… (entram os meninos) Me dêem suas mãozinhas direitas, meus filhos, pra que sua mão as segure. Oh, mão bem amada, lábios bem amados, figuras e traços nobres de meus filhos. Sejam felizes os dois. Mas lá embaixo. O pai de vocês arrebatou o direito de que sejam felizes. Oh, doce hálito de meus filhinhos. Saiam, saiam! (saem os meninos)
Não tenho mais forças para olhar nos olhos deles. Sucumbo diante de meus males. Sim, sinto o terror da empresa que ousei. Mas a paixão domina minhas resoluções e ela é o pior dos males humanos.
CORO: Algumas vezes já penetrei em murmúrios muito sutis e já abordei controvérsias bem graves, dessas que não cabem ao sexo feminino. É que nós também temos nossa musa e ela mantém conosco laços de sabedoria. Poucas são as mulheres estranhas às musas. Por isso eu declaro: mortais que nunca tiveram a prova da paternidade perdem em felicidade. Sem crianças, eles ignoram o que seja alegria ou desgosto e esta falta poupa muitas penas.
Mas aqueles que têm no lar uma doce floração de filhos, vejo que estão preocupados durante toda a vida. Primeiro, querem criá-los dignamente, deixá-los com recursos com que possam viver, Mas todo esse trabalho resultará em filhos bons ou maus? Eis o mistério. Mas quero dizer qual é a maior infelicidade: o filho foi criado dentro da abundância; atingiu a juventude; é bom; mas, assim é a vontade do destino, vem a morte e o leva para o Hades. Que vantagem tem o mortal em ter uma descendência, quando, frente a tanto mal, ele se vê diante desta grande tragédia, a mais cruel de todas,
MEDÉIA: Amigas!, desde muito tempo estou à espera do acontecimento, espreitando o
que acontece lá embaixo. E vejo que avança ante meus olhos um dos seguidores de Jasão. Tem o sopro ofegante e com certeza vem anunciar alguma notícia urgente.
MENSAGEIRO: Medéia! Medéia! Foge, Medéia. Você pôs em ação um plano terrível, menosprezando as leis. Foge de qualquer jeito, por mar ou por terra.
MEDÉIA: O que aconteceu?, pra que eu fuja.
MENSAGEIRO: A jovem princesa e Creonte acabam de morrer, vítimas dos teus venenos.
MEDÉIA: Palavras maravilhosas! Vou contar com você, agora, como benfeitor e amigo.
MENSAGEIRO: O que diz? Está sabendo o que fala? Não está demente? Depois de ultrajar a casa real, ainda se alegra em vez de estremecer com a notícia?
MEDÉIA: Tenho respostas para você. Mas por enquanto nada de arrebatamento. Fala! Como morreram? Meu prazer será redobrado, se disser que morreram no meio dos piores tormentos.
MENSAGEIRO: Quando teus filhos, tua dupla linhagem, chegaram com o pai e entraram na casa nupcial, nós escravos, que temíamos por você e pelos teus sofrimentos, nós nos alegramos; e já correu a novidade de que você e Jasão tinham se reconciliado. Uns beijavam as mãos de seus filhinhos, outros as suas cabeças louras. Eu mesmo os segui até os aposentos das mulheres. A senhora princesa, a quem agora honramos, olhou Jasão com um olhar cheio de paixão; mas vendo os meninos baixou o rosto muito branco, tolhida pela aversão. O teu esposo tentou dissimular o humor e a cólera de sua jovem mulher. E falou: Você quer exibir ódio a amigos? Acalma teu ressentimento e olhe para nós. Que os amigos do teu marido sejam teus amigos. Aceita estes presentes e pede a teu pai que perdoe estes meninos e não os exile, por amor de mim.
Vendo os presentes que eles levavam, ela resolveu concordar com o marido. Teus filhos e o pai já estavam longe da casa quando ela quis experimentar o véu. Pôs o véu e sobre ele a coroa e ficou arranjando a cabeleira diante de um espelho, sorrindo para sua própria imagem. Depois, levantou-se da cadeira, atravessou o quarto, pisando com graça sobre os pés radiantes de brancura, transportada pelo contentamento dos presentes que tinha recebido. De repente surgiu um medonho espetáculo; ela mudou de cor; recuou com o corpo inclinado, tremendo dos pés à cabeça e apenas teve tempo de cair numa cama. Uma velha escrava, pensando ser aquilo um ataque divino, começou a orar aos gritos, mas logo percebeu uma espuma branca na boca da princesa, convulsão nos olhos e sangue saindo de seu corpo. Começou a gritar. Foi alguém correndo chamar o rei, um outro foi chamar Jasão e todo o palácio tremeu com os passos precipitados.
Nem bem os rápidos mensageiros se afastaram da casa de núpcias a infeliz esposa, recobrando a voz e reabrindo os olhos, acordou com gemidos. Outra calamidade lhe acomete: a coroa de ouro transformou-se em chamas devoradoras e o véu, presente de teus filhos, avermelhava a carne branca da infeliz. Ela se levantou e fugiu toda em chamas, sacudindo a cabeleira para tirar a coroa, mas o ouro se soldara a seus cabelos e mais ela sacudia, mais a chama se elevava. Caiu, enfim, sucumbida, desfigurada. Não se distinguia mais nem a forma de seus olhos nem a beleza de seu rosto; o sangue de sua cabeça se misturava ao fogo. E de seus ossos, como lágrimas, por causa do veneno, as carnes se soltavam, numa visão horrível. E todos temiam tocar o cadáver.
Então o pai, ignorando a catástrofe, entra no quarto e se atira sobre a filha. Começa a chorar e a abraça e beija, gritando: Minha filha, que deuses te infligiram morte tão infame? Que deus deixa um velho próximo do túmulo sem a tua companhia. Ah, que a morte também me leve. Quando terminou, quis levantar-se. Mas como um visgo na árvore, ficou preso ao véu e foi uma luta medonha. Tentava por-se de pé. Na violência dos gestos, suas carnes se dilaceravam, agarradas ao véu. Enfim, entregou a alma, impotente para triunfar sobre aquela morte. Ficaram ali, os dois mortos, catástrofe provocadora de muitas lágrimas.
Você receberá já a punição devida.
A condição humana, não é de hoje que eu a considero como uma sombra. Vou dizer cruamente: nenhum mortal é feliz.
CORO: Hoje a divindade inflige muitas misérias a Jasão. Ah, infeliz, como lamentamos teus infortúnios, filha de Creonte, você que foi precipitada ao mundo dos mortos por causa do casamento com Jasão.
MEDÉIA: Mulheres! Meu ato é resoluto! Matar meus filhos o mais depressa e deixar o país. Não quero demorar e deixar meus filhos nas mãos dos assassinos mais hostis. De alguma maneira eles deverão morrer um dia e lhes dará a morte quem lhes deu a vida. Vamos, coração, prepare-se. Por que esperar mais para cumprir o final terrível e necessário? Vá, pobre mão, pegue a espada, segure-a. Marcha para a ação, ainda que se abra uma vida de dores. Nada de covardia. Esquece que estes meninos são teus filhos bem amados e que você os deu ao mundo. Pelo menos agora, esquece que são teus filhos… chora depois.
Todavia… eu os amava… e eu serei uma mulher infeliz. (entra na casa)
CORO: Terra! E você, Sol de raios resplendentes, vejam, vejam esta mulher funesta no ato de levantar sobre os filhos a mão sangrenta, assassina de sua própria carne. São um ramo da tua descendência de ouro; é terrível que o sangue de um deus caia assassinado. Vá até ela, Luz, filha de Zeus, retém-na, impede-a, expulsa da casa a sanguinária e miserável fúria suscitada pelos gênios do mal.
Inúteis foram tuas dores maternais, inutilmente você pariu uma linha querida, você que abandonou as rochas Simplégadas, as rochas de sombra azul. Infeliz! Por que uma cólera tão pesada desaba sobre tua alma? Por que este ódio assassino toma o lugar do amor? A mancha do sangue familiar pesa sobre os mortais e acorda as dores que a mãe dos deuses faz desabar sobre as casas dos assassinos de sua própria raça!
CRIANÇAS: (gritos)
CORO: Ouviram os gritos dos meninos? Ouviram? Ah, infeliz, infeliz!
UM MENINO: Socorro! Como fugir das mãos da própria mãe?
OUTRO MENINO: Não sei! Estamos perdidos!
CORO: Acho que devemos entrar e salvar as crianças da morte…
UM MENINO: Socorro! Salvem-nos!
OUTRO MENINO: Estamos debaixo de uma espada!
CORO: Ah, desgraçada! Você é de pedra ou de ferro, para matar com as próprias mãos os frutos de tuas entranhas?
Só soube de uma mulher que matou os próprios filhos.
Ino, atacada de loucura, quando a esposa de Zeus expulsou-a de sua casa.
Ela se atirou às ondas amargas, infligindo a seus filhos uma morte ímpia.
Num salto para além da falésia, ela os matou.
Que coisas piores poderiam ainda acontecer?
JASÃO: Mulheres! Mulheres que vejo junto à casa, ela ainda está aí?, a autora do crime terrível! Medéia, para onde fugiu? Que ela afunde nas profundezas da terra ou desapareça no éter, se não pagar a dívida para com a casa real. Pensaria que poderia fugir sem castigo depois de ter matado os soberanos? Ela receberá pelo mal que fez. Mas tenho medo pelos meus filhos. Vim para salvá-los, de medo que a família queira fazer com que os meus sejam punidos pelo assassinato abominável.
CORO: Infeliz! Você ignora o tamanho da própria dor, Jasão. Se não, não diria estas palavras.
JASÃO: Que aconteceu? Ela quer me matar?
CORO: Teus filhos morreram batidos pela mão materna.
JASÃO: Deuses! Que quer dizer isto? Você me mata.
CORO: Saiba que teus filhinhos não mais existem.
JASÃO: Ela os matou em casa? Fora?
CORO: Abram a porta. Você os verá degolados…
JASÃO: Criados! Abram a porta! Tirem a tranca, depressa, abram! Que eu contemple a minha dor dobrada, eles mortos e ela, a quem castigarei. Abram! (Medéia surge no
alto, num carro alado puxado por dragões, com os filhos mortos aos seus pés)
MEDÉIA: Por que abalar-se e arrancar estas portas? São cadáveres o que procura e eu, que tudo fiz? Poupa teu trabalho. Se é a mim que procura, diga o que quer. Mas tuas mãos não me tocarão, tal a virtude do carro que recebi do Sol, pai de meu pai, para proteção contra meus inimigos.
JASÃO: Ah, monstro. De todas as mulheres, a mais odiosa, dos deuses, de mim, de todo o gênero humano. Ousou levantar a espada contra teus filhos, depois de pô-los no mundo! E assim, fui golpeado mortalmente. E após uma ação tão ímpia, ainda contempla este sol e esta terra? Morte para você! Hoje volto à razão. Tinha-na perdida, quando um dia trouxe-te de um país estrangeiro a uma cidade grega, flagelo tremendo, traidora de teus pais e do sol que te nutriu. Foi sobre mim que os deuses atiraram o gênio maléfico, atado à tua alma, pois você já tinha matado teu irmão em tua própria casa, antes de entrar em meu navio. Assim foi o começo. Depois de se tornar minha mulher e de ter meus filhos, você os imolou. Jamais uma mulher grega ousaria tal ato e foi a elas que te preferi. Aliei-me a uma inimiga, uma leoa, não mulher, para minha própria perda. Mas sobre você mil injúrias não bastam, tão grande tua falta de vergonha! Vai-te para tua desgraça, infame, abjeta infanticida. Meus gemidos serão meu destino; não tive filhos do novo matrimônio e aqueles que tive e nutri, não os terei mais vivos para falar-lhes, perdi-os.
MEDÉIA: Teria muito para te responder, se Zeus, pai do mundo, não soubesse como
te tratei e o que fizeste comigo. Você não iria passar o resto da vida rindo e zombando de mim, com tua princesa e aquele que a deu como esposa, Creonte. Não seria impunemente que ele me expulsaria. Pode falar o que quiser. Mas a teu coração eu devolvi mal com mal.
JASÃO: Você também sofre, com certeza, como eu…
MEDÉIA: Sim, mas minha dor me serve, já que você não tem do que se rir.
JASÃO: Meus filhos, que mãe indigna…
MEDÉIA: A loucura de um pai os perdeu.
JASÃO: Não. Não foi meu braço que os fez morrer.
MEDÉIA: Não. Foi teu ultraje, este novo casamento…
JASÃO: Você os sacrificou, mas foi ao teu próprio leito.
MEDÉIA: Não vivem mais. Este será o teu tormento.
JASÃO: Vivem! Duros vingadores agarrados à tua cabeça.
MEDÉIA: Os deuses sabem quem primeiro pecou.
JASÃO: Os deuses também conhecem teus pensamentos abomináveis.
MEDÉIA: Ah, chega desta conversa detestável!
JASÃO: Sim, e é fácil terminar já com esta conversa!
MEDÉIA: O que quer?
JASÃO: Dê-me os meninos, pra que eu os enterre e os chore.
MEDÉIA: Ah!!, isso nunca. Eu, com minha mão os sepultarei. Vou levá-los ao santuário de Hera, deusa da colina, pra que nenhum inimigo os ultraje, mexendo em seus túmulos. E lá também faremos as festas e as cerimônias solenes, todos os dias, em expiação à ímpia mortandade. Irei depois partilhar da casa de Egeu, filho de Pandion. Você, você morrerá morte miserável e terá assim o desfecho amargo de tuas novas bodas…
JASÃO: Ah, se a fúria te pudesse ferir e matar-te a justiça dos mortos!…
MEDÉIA: Que deuses te ouvirão?, perjuro infiel!
JASÃO: Criatura infame! Infanticida!
MEDÉIA: Vai sepultar tua mulher!
JASÃO: Vou, sim. Sem os meus dois filhinhos.
MEDÉIA: Isto ainda não é nada! Espera a tua velhice!
JASÃO: Meus filhos tão amados!
MEDÉIA: De mim, não de você!
JASÃO: E você os matou!
MEDÉIA: Sim. Pra que você sofresse!
JASÃO: Ah, doces lábios dos meus filhos! Queria abraçá-los…
MEDÉIA: Agora você os chama, faz festa! Mas antes expulsou-os de si.
JASÃO: Pelos deuses, Medéia, que pelo menos eu toque a carne doce dos meus filhinhos…
MEDÉIA: Isso nunca! Palavras jogadas ao vento!
JASÃO: Zeus, ouça como nos desdenha, como nos trata esta leoa, esta infanticida abominável! Ah, o que me resta agora? Tudo que me resta é chorar meus filhos. Eis que eu invoco as divindades, tomando-as por testemunhas! Depois de tê-los matado, você impediu que eu os tocasse e sepultasse os seus corpinhos. Quisesse o céu que eu nunca os tivesse gerado, por não vê-los morrer degolados sob teus golpes…
CORO: Zeus, no Olimpo, é quem dispõe os acontecimentos e muitas coisas são inesperadamente alteradas pelos deuses. Aquilo que esperamos, não se realiza… e ao inesperado, os deuses abrem passagem. Eis o que mostram estes acontecimentos.
Traduzido em Curitiba, 1968.