Monteiro Lobato

As Aventuras de Hans Staden

Capítulos 9 e 10

 

09 – Rumo à taba

         A captura de Hans – continuou Dona Benta – deu-se ali pelas quatro horas da tarde, e como a taba fosse longe, resolveram os tupinambás dormir numa ilhota do caminho. Saltaram das canoas e as vararam em terra.

         O pobre artilheiro achava-se em mísero estado; além de nada enxergar, pois tinha o rosto em sangue, não podia mover-se, devido ao ferimento da perna. Assim é que ficou deitado na areia, enquanto os índios preparavam o pouso. Naquela imensa aflição pôs-se a rezar um salmo, com os olhos em pranto. Ao vê-lo nesse estado, os índios escarneceram.

         – Vede como chora! Ouvi como se lamenta!

         Em transes idênticos os prisioneiros indígenas mostravam grande arrogância e profundo desprezo pela vida; arrostavam os seus matadores, ameaçando-os com a vingança dos amigos e parentes. Os brancos, porém, em geral se acovardavam, choravam e pediam misericórdia.

         Os tupinambás acenderam fogueiras e deitaram o prisioneiro numa rede armada entre duas árvores, atando aos galhos as pontas das cordas manietadoras. Depois se acomodaram em redor, exclamando com ironia:

         – Che remimbaba indé. – És meu animal doméstico.

         Ao raiar do dia partiram de novo e remaram até tarde; apesar disso, quando o sol descambou ainda faltavam duas milhas para chegarem ao último pouso.

         Nesse entremeio formou-se no céu, atrás deles, negra nuvem ameaçadora, o que os fez remarem com fúria a fim de atingirem a terra antes da tempestade. Vendo que não podiam escapar à chuva, disseram a Hans:

         – Pede a teu Deus para que a tempestade não venha.

         Hans concentrou-se e pediu a Deus nestes termos:

         – O tu, Deus onipotente, que auxilias os que te imploram, mostra tua força a estes pagãos, por forma que eu saiba que estás comigo e eles vejam que me ouviste.

         Hans ia deitado no fundo da canoa, de modo que não podia ver o céu, nem saber se sua prece fora atendida. Mas ouviu um índio dizer “Oquaramõ amanaçu” – que significa: “A tempestade já passou”. Fez então um esforço, ergueu-se nos cotovelos e pôde olhar para o céu. De fato, as nuvens dispersavam-se, o que lhe trouxe um grande alento de esperança.

         Afinal as canoas alcançaram a terra. Os índios desembarcaram, como na véspera, dizendo que no dia seguinte chegariam à taba.

         Assim foi. Pela manhã partiram de novo, remaram o dia inteiro e às ave-marias alcançaram a taba de Ubatuba.

         Entraram por uma praia perto da qual se viam as mulheres índias lidando numa roça de mandioca.

         Ao passar por elas Hans foi obrigado a gritar-lhes:

         – Eis a vossa comida que vem chegando!

         Pedrinho riu-se dizendo:

         – Assim mesmo, vovó, aqueles índios não deixavam de ter a sua graça…

         – Para nós, hoje, meu filho, naquele momento o mísero Hans não achou graça nenhuma, nem você a acharia se estivesse em seu lugar.

         As mulheres deixaram a roça e vieram rodeá-lo, cheias de curiosidade. Pela primeira vez viam um bípede implume louro, de olhos azuis e cara vermelha como presunto.

         Os homens entregaram-lhes o prisioneiro, antes de irem para as cabanas guardar as armas e repousar. Então as mulheres, entoando os cantos que usavam quando iam devorar um inimigo, conduziram-no até à caiçara ou cercado de paus-a-pique que fechava a taba. Pelo caminho foram-lhe dando bofetões e arrancando-lhe punhados de barba.

         – Che anama pipike aé! – exclamavam como quem diz: “Vingamo-nos em ti do que os teus fizeram aos nossos”.

         Depois o empurraram para dentro de uma cabana e o deitaram na “inni”, ou rede, continuando a insultá-lo e maltratá-lo.

         Entrementes os homens se reuniram em outra cabana para beber cauim diante dos maracás, ídolos em cuja honra começaram a entoar cantos de agradecimento pelo feliz sucesso da expedição.

Essa música, horrível para Hans, durou meia hora, deixando-o bem convencido de que sua morte não estava longe.

         Por fim apareceram na cabana os dois selvagens que o tinham capturado. Esses índios, seus donos por direito de guerra, eram os irmãos Alkindar-miri e Nhaepepô – nomes que significavam “alguidar pequeno” e “panela grande”. Vieram dizer-lhe que o haviam dado de presente a um tio, Ipiru-guaçu (tubarão grande), o qual iria tomar conta dele e matá-lo para ganhar um nome.

         – Que história é essa de ganhar um nome? – quis-saber o menino.

         – Era uso dos índios herdar o nome das vítimas. Ipiru havia, um ano antes, capturado um escravo e presenteado com ele seu sobrinho Alkindar. Este moço, querendo agora retribuir a gentileza, dava-lhe Hans de presente. Ipiru, então, o mataria e lhe herdaria o nome, para acrescentá-lo ao seu, como um penacho.

         Os dois irmãos deram o recado e concluíram:

         – As mulheres, agora, vão levar-te para o terreiro “poracê”.

         O prisioneiro não compreendeu o sentido desta palavra, que queria dizer dançar, e preparou-se para a morte.

         As mulheres pegaram das cordas e puxaram-no para fora. Não sabendo o que queriam dele, Hans procurou consolar-se recordando os sofrimentos de Jesus Cristo maltratado pelos judeus.

Foi levado para defronte da cabana do morubixaba Guaratingaaçu (grande pássaro branco). Lá havia um monte de terra fresca, no qual o assentaram, sempre seguro pelas cordas.

         Hans julgou chegado o terrível momento em que aparece a iverapema.

         – Que era, vovó?

         – Era um tacape próprio para o sacrifício dos prisioneiros. Usavam-no todo enfeitado de penas e manejavam-no de modo que ao primeiro golpe a vítima vinha ao chão, de crânio esmigalhado.

Hans, que conhecia o costume dos índios, correu os olhos em torno, a ver se já traziam a iverapema; como nenhum selvagem aparecesse com ela, sentiu um luar de esperança.

         Nisto, uma índia surgiu com uma lasca de cristal na mão, com a qual se pôs a cortar-lhe as sobrancelhas. Depois quis fazer-lhe o mesmo à barba. Hans achou que era demais e pediu que o matassem com barba e tudo. As mulheres então lhe disseram que não iam matá-lo ainda.

         Hans conseguiu dessa vez salvar a barba. Só mais tarde é que lha cortaram, com uma tesoura que os franceses haviam introduzido na aldeia.

         – Que é que tinham os franceses com esses índios? – perguntou o menino.

         – Os franceses faziam-se aliados de todas as tribos inimigas dos portugueses. Era o meio de poderem negociar em pau-brasil e outros produtos da terra, contra a vontade dos que se julgavam donos e queriam monopolizar o comércio do Brasil.

         – Mas os portugueses tinham direito a isto aqui ou não? O Brasil não pertencia aos índios?

         – O direito dos portugueses era o direito do mais forte. Os índios deixaram-se vencer e desse modo perderam a terra que até então haviam possuído.

         – Sempre a fábula do lobo forte e do lobo fraco – comentou Pedrinho filosoficamente.

 

10 – Os maracás

         Dali as índias conduziram Hans para defronte da cabana onde se guardavam os maracás, isto é, os ídolos ou deuses selvagens. Eram cabaças cheias de pedrinhas, atravessadas por um cabo e com uma grande boca pintada, ou recortada. Cada selvagem possuía o seu maracá e o acomodava numa cabana especial, onde lhe dava de comer e o consultava sobre tudo.

         – Mas o maracá respondia às consultas?

         – Respondia, sim, meu filho, como todos os ídolos em todas as religiões respondem às perguntas de todos os fiéis… Quem cala consente: os maracás se calavam, logo, respondiam “sim” a todas as consultas dos índios.

         Depois as mulheres formaram um círculo em redor de Hans, amarraram-lhe às pernas uns chocalhos e puseram-lhe à cabeça um turbante de penas chamado “araçoiá”. Em seguida começaram a dançar, obrigando-o a bater no chão com o pé, para que o ruído dos chocalhos fosse marcando o compasso.

         O ferimento da perna de Hans não estava cicatrizado, de modo que o mísero muito padeceu nessa ocasião.

         Terminada a festa, as índias entregaram o prisioneiro a Ipiru-guaçu, a quem competia guardá-lo. Ipiru introduziu-o na cabana dos maracás, dizendo-lhe que aqueles ídolos lhes haviam profetizado a captura de um português.

         Hans Staden redargüiu:

         – Esses ídolos não falam nada, ou se falam não dizem a verdade, porque é falso que eu seja português. Sou amigo e parente dos franceses; minha terra se chama Alemanha.

         Os índios replicaram que era falso, pois se fosse francês não estaria entre portugueses, gente inimiga dos franceses. Disseram ainda que os franceses vinham todos os anos trazer-lhes facas, machados, espelhos, pentes e tesouras, levando em troca pau-brasil, algodão, penas e pimenta. Por isso eram amigos dessa gente. Já com os portugueses fora o contrário. Tinham vindo àquela terra muitos anos antes e logo se ligaram com os seus rivais tupiniquins. Apesar disso, eles, índios, tentaram aproximar-se e penetraram em seus navios, como costumavam fazer nos navios franceses. Mas foram miseravelmente traídos. Quando os peros viram a bordo um bom número de tupinambás, agarraram-nos e entregaram-nos aos tupiniquins, para que os comessem. Além disso mataram a tiro muitos que estavam de fora, nas canoas. Essas e outras crueldades fizeram-lhes nascer no coração um ódio de morte contra os peros.

         – Quer isso dizer que se os portugueses houvessem tratado com justiça aos selvagens do Brasil eles seriam amigos – observou Pedrinho.

         – Certamente – respondeu Dona Benta. – Mas os conquistadores do Novo Mundo, tanto portugueses como espanhóis, eram mais ferozes que os próprios selvagens. Um sentimento só os guiava: a cobiça, a ganância, a sede de enriquecer, e para o conseguirem não vacilaram em destruir nações inteiras, como os astecas do México e os incas do Peru, povos cuja civilização já era bem adiantada.

         – Mas como é então, vovó, que esses homens são gloriosos e a história fala deles como grandes figurões?

         – Por uma razão muito simples: porque a história é escrita por eles. Um pirata quando escreve a sua vida está claro que se embeleza de maneira a dar a impressão de que é um magnânimo herói. Há uma fábula a este respeito. À entrada de certa cidade erguia-se um grupo de mármore, que representava um homem vencendo na luta ao leão. Passa um leão, contempla aquilo e diz: muito diferente seria essa estátua, se os leões fossem escultores!

         Mas voltemos à história do nosso Hans. Depois que os índios expuseram as razões gerais da inimizade para com os peros, entraram alguns a alegar motivos particulares. Alkindar e Nhaepepô contaram como os portugueses haviam ferido a seu pai num braço, com um tiro do qual resultou a morte do velho. Esse crime exigia a vingança que sobre Hans ia ser exercida.

         Hans defendeu-se. Não era português, tinha vindo com os espanhóis; e se o encontraram entre os peros fora devido ao naufrágio que o arrojara ali. Não era português e pois não merecia que a vingança dos índios recaísse sobre sua cabeça.

         Esse argumento calou no ânimo dos selvagens, nos quais o sentimento da justiça não era escasso, e foi resolvido que se averiguasse melhor.

         Meses antes da captura de Hans os tupiniquins haviam arrasado uma aldeia tupinambá; os velhos tinham sido devorados e os moços vendidos aos portugueses. Mais tarde um destes conseguiu fugir para a aldeia de Ubatuba, onde ainda se achava naquela ocasião. Chamaram-no, para prestar depoimento a respeito de Hans.

         O moço declarou que o conhecera de São Vicente e que Hans realmente viera em navio de espanhóis, gente, aliás, amiga dos portugueses.

         Esta declaração melhorou um pouco a situação de Hans, mas não foi suficiente. Pediu ele então que o guardassem vivo até que por ali aparecesse algum filho da França.

         Os índios concordaram e ficaram à espera de um francês que andava pela zona, a negociar pimenta.

         Hans respirou. Conhecia a lealdade dos índios. Sabia que se um francês aparecesse e o reconhecesse como irmão, estaria salvo. Ficou, pois, à espera do salvador providencial que, segundo as notícias, não andaria longe daqueles sítios.

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