Monteiro Lobato

As aventuras de Hans Staden

 Capítulos 13 e 14

 

13 – Esperanças

         Logo depois da partida de Nhaepepô chegou de São Vicente um navio português, que deitou âncora perto da taba e disparou um tiro de canhão. Era o sinal do costume para que os índios das redondezas viessem ter com os navios.

         Ao ouvirem o tiro os índios disseram ao prisioneiro:

         – Aí vêm teus amigos portugueses; querem saber se vives e se queremos dar-te em troca de alguma coisa.

         A notícia encheu-o de esperança. Mas ser procurado por navio português era dar provas de ser português e Hans inventou logo uma história destinada a atrapalhar os índios. Disse-lhes que tinha entre os portugueses um irmão francês e com certeza era esse irmão quem vinha procurá-lo.

         Os índios porém não deram crédito à história. Aproximaram-se do navio a ponto de fala e perguntaram o que queriam.

         Os portugueses indagaram de como ia passando Hans. Os selvagens responderam que não sabiam de quem se tratava.

         Não havendo meio de entendimento, o navio afastou-se, deixando o mísero artilheiro mergulhado na maior dor. Pela segunda vez de todo perdia a esperança de salvar-se. Já via a iverapema sobre sua cabeça, prestes a desferir o golpe fatal. O sacrifício fora adiado por causa da partida de Nhaepepô; mas o índio regressaria breve, e então…

         Assim o imaginou Hans, e ficou à espera do cacique, certo de que o seu regresso lhe marcaria o fim do martírio.

         Ouvindo uma tarde gritos na cabana de Nhaepepô, Hans estremeceu. Era costume dos índios receberem com tais gritos os companheiros que tornavam das viagens, e aquele barulho queria dizer que Nhaepepô estava de volta. Resignadamente, pois, ficou à espera do que desse e viesse.

         Sem demora veio ter com ele um índio, que lhe disse:

         – Alkindar, o irmão de Nhaepepô, acaba de chegar e diz que os outros lá ficaram em Mambucaba muito doentes.

         O coração de Hans bateu apressado, com a esperança de novo renascida. Aquela doença de Nhaepepô viria afastar mais uma vez a época do seu sacrifício.

         Não demorou muito e apareceu-lhe Alkindar; sentou-se e principiou com lamúrias, dizendo que Nhaepepô, sua mãe e seus sobrinhos tinham caído doentes em Mambucaba, donde mandavam pedir a Hans que intercedesse perante o seu Deus para que todos sarassem.

         – Meu irmão – concluiu Alkindar – pensa que o teu Deus está zangado com ele.

         Ao ouvir tais palavras o pobre Hans criou alma nova, e sem demora confirmou tal suposição.

         – Está zangado, sim, porque insistis em afirmar que sou português quando não é verdade. Ide ter com Nhaepepô e dizei-lhe que volte, que eu falarei a meu Deus para que todos sarem.

         Com isto retornou para Mambucaba o índio e pela primeira vez dormiu Hans uma noite sossegada.

         Alguns dias depois regressaram os doentes. Hans foi chamado à cabana de Nhaepepô, que lhe disse:

         – Tu sabias de tudo. Tu disseste naquela noite que a lua olhava zangada para a minha cabana.

         Hans lembrou-se do incidente da lua e encheu-se de grande alegria, imaginando que Deus visivelmente o estava protegendo.        Aproveitou-se do caso para convencer o índio de que era assim mesmo. A lua estava zangada com todos eles porque queriam comê-lo, como se fosse um pero, o que não era verdade. Vinha daí aquele rosário de desgraças.

         Nhaepepô pediu-lhe que o curasse. Hans, então, deu-se ares misteriosos e girou em torno dos doentes, fazendo passes com as mãos e pronunciando palavras cabalísticas. Terminou assegurando que iriam todos sarar.

         Infelizmente aquelas micagens não produziram nenhum efeito. No dia seguinte morreu uma criança; em seguida, a mãe de Nhaepepô e mais uma velha que andava fabricando os potes para cauim da festa de Hans.

         – Que festa? – indagou Narizinho. – A festa em que iam comê-lo?

         – Sim – respondeu Dona Benta -, como nós hoje fazemos uma festa em torno do sacrifício de um peru… Mas não ficou aí o desastre; dias após faleceu outra criança e, por fim, um irmão de Nhaepepô.

         O morubixaba caiu em grande tristeza diante do estrago que a morte estava a fazer em sua família; e, com medo de ir-se também, pediu de novo a Hans a proteção do seu Deus. Hans consolou-o, e afirmou que nada lhe aconteceria, caso abandonassem a ideia de o devorar.

         O morubixaba concordou e prometeu poupá-lo, proibindo que na sua cabana o maltratassem ou o ameaçassem de morte.

         Continuou doente esse índio por mais algum tempo, e por fim sarou, juntamente com uma de suas mulheres; havia perdido oito pessoas da família, todas muito más para Hans.

         O morubixaba da cabana vizinha, Guaratinga-açu, sonhou certa noite que Hans lhe aparecera e anunciara sua morte. De manhã cedo foi procurá-lo para contar-lhe o sonho.

         Hans explicou que coisa nenhuma lhe sucederia, se também desistisse de o devorar.

         O índio concordou nisto; declarou que não lhe faria mal algum; e caso o matassem, não lhe comeria da carne.

         – Triste consolo! – exclamou Pedrinho.

         – Do mesmo modo sonhou com Hans um terceiro morubixaba, Carimã-Cuí (farinha de carimã), que também o mandou vir à sua presença. Deu-lhe de comer e contou-lhe que outrora capturara um português, do qual comera tanto que desde então vinha sentindo um mal do estômago.

         Hans disse logo:

         – Pois é isso. A carne humana é um veneno terrível e a tua doença vem de a teres comido. Se de hoje em diante desistires de comê-la, sararás e nunca mais terás sonhos tristes.

         Carimã deu-se por convencido e prometeu nunca mais comer gente.

         Começaram os índios a ter medo de Hans e a respeitá-lo. Até as velhas da taba, que eram voracíssimas e costumavam maltratá-lo com beliscões e ameaças, ganharam medo ao alemão, cujo Deus se patenteava de maneira assim visível.

         Uma delas veio dizer-lhe:

         – Meu filho, não nos deixes morrer. Se te tratamos mal é que te julgávamos português, gente a quem odiamos. Já comemos vários deles, mas o Deus português não fazia caso. O teu Deus zanga-se e por isso vemos que de fato não és português.

         Desde essa ocasião todos da taba o deixaram em paz, embora o mantivessem sob vigilância, como dantes.

         – O tal português que Carimã-Cuí comeu devia ser um pero de vinte e quatro quilates, para encruar assim no estômago de um canibal – comentou Pedrinho.

         – Não caçoe dos seus avós, menino – advertiu Dona Benta a sorrir, e continuou.

 

14 – A volta do francês

         O tal francês, que tão cruelmente aconselhara os índios a que matassem e comessem o pobre Hans, voltou de novo à taba de Ubatuba, sempre a negócio de pimenta e penas. Veio de Iteron, nome primitivo de Niterói, que era onde aportavam os navios franceses.

         Logo que chegou à taba admirou-se de ver ainda vivo o alemão.

         – Que é isso, homem? Pois inda estás vivo?

         – Sim, estou vivo graças a Deus, pois só a ele devo o ter conservado a vida até agora, contra o conselho que destes aos índios.

         O francês, que os índios chamavam Carauatá-uara 1 parecia mudado e não olhou para Hans com o rancor da primeira vez. Em vista disso Hans o chamou de parte e expôs o seu caso, de maneira a convencê-lo de que na realidade não era português, e sim alemão, náufrago de um navio espanhol.

         O francês mostrou-se arrependido do que fizera. Disse que realmente o havia julgado português, gente má a quem tanto os índios como os franceses não poupavam. Mas já que não era assim, ia ajudá-lo a salvar-se.

         Tudo mudou depois dessa conferência. Carauatá-uara explicou aos índios que se enganara da primeira vez; o prisioneiro de fato não era português e sim de um país chamado Alemanha, cujos habitantes sempre foram amigos dos franceses. E acabou pedindo aos índios que o deixassem levar consigo.

         Os índios deram-se por vencidos, mas declararam que só o deixariam ir se o pai de Hans ou seus irmãos o viessem buscar num navio cheio de machados, facas, tesouras, pentes e espelhos.       Tinham-no apanhado em território inimigo e, pois, lhes pertencia.

         Carauatá-uara procurou de novo Hans e contou-lhe os passos que dera. Estava convencido de que os índios não o largariam de forma nenhuma.

         Hans pediu-lhe pelo amor de Deus que o mandasse buscar pelo primeiro navio aportado em Iteron. Carauatá-uara, depois de prometer-lhe isso, pediu aos índios que o guardassem cuidadosamente, até que seus parentes viessem buscá-lo. E partiu.

         Enquanto se davam estes acontecimentos, os índios enfermos sararam e a vida da taba entrou no ramerrão habitual.

         A volta da saúde trouxe a volta da gula, e o propósito dos índios de não comerem o prisioneiro começou a fraquear. As velhas murmuravam que os franceses, afinal de contas, não valiam mais que os peros.

         Hans atemorizou-se com isso, porque não tinha grande confiança no caráter dos selvagens. Mas foi uma injustiça. Os tupinambás souberam cumprir o prometido, dando prova de que é mais de fiar-se um selvagem do que um rei branco como aquele Fernando, o Católico, de Espanha, que só cumpria a palavra dada quando lhe convinha.

1- Comedor da fruta gravatá.

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