Monteiro Lobato

O POÇO DO VISCONDE

 Introdução, capítulos 01 e 02

 

Introdução

         Ao receber o jornal, Pedrinho sentou-se na varanda com os pés em cima da grade. Narizinho, que estava virando a máquina de costura de Dona Benta, disse:

         – Vovó, eu acho uma grande falta de educação essa mania que Pedrinho pegou dos americanos, de sentar-se com os pés na cara da gente. Olhe o jeito dele…

         Dona Benta suspendeu os óculos para a testa e olhou.

         – Certos sábios afirmam, minha filha, que quando uma pessoa se senta com as extremidades niveladas, a circulação do sangue agradece, e a cabeça pensa melhor. É por esse motivo, que os homens de negócios da América costumam nivelar as extremidades, sempre que têm de resolver um assunto importante. A coisa fica mais bem resolvida – dizem eles.

         – E é verdade?

         – Os negócios de lá prosperam melhor que os de qualquer outro país; se o tal nivelamento dos pés com a cabeça contribui para isso, não sei. Ê problema para os fisiologistas resolverem.

         – Que é fisiologista?

         – Os fisiologistas são os sábios que estudam o funcionamento do nosso corpo. Aquele livro que estou lendo, Man the Unknown, foi escrito por um grande fisiologista, Alex Carrel.

         Depois que Pedrinho soube da opinião de Dona Benta, nunca mais deixou de ler sem botar os pés para cima, costume que Emília e o  Visconde adotaram imediatamente – Emília por espírito de imitação e o Visconde por ordem de Emília. – “Vossa Excelência fica proibido de ler com as extremidades desniveladas” – ordenou ela. – “É por ler de pé, ou sentado, que está velhinho e ainda nem entrou para a Academia Brasileira.” – E o pobre Visconde, apesar dos reumatismos, teve de continuar a leitura da sua geologia dobrado que nem um V. Geologia? Pois o Visconde andava a estudar geologia?

         Verdade, sim. O Visconde descobrira entre os livros de Dona Benta um tratado dessa ciência e pusera-se a estudá-la – a ciência que conta a história da terra, não da terra-mundo, mas da terra-terra, da terra-chão. E de tanto estudar, ficou com um permanente sorriso de superioridade nos lábios – sorriso de dó da ignorância dos outros. “Ele já entende de terra mais que tatu”, dizia a boneca.

         Mas, como íamos contando, naquele dia Pedrinho começou a ler o jornal à moda americana, com os pés em cima da grade. Em certo momento interrompeu a leitura para dizer em voz alta falando consigo mesmo:

         – Bolas! Todos os dias os jornais falam em petróleo e nada do petróleo aparecer. Estou vendo que se nós aqui no sítio não resolvermos o problema, o Brasil ficará toda a vida sem petróleo. Com um sábio da marca do Visconde para nos guiar, com as ideias da Emília e com uma força bruta como a do Quindim, é bem provável que possamos abrir no pasto um formidável poço de petróleo. Por que não?

         Disse e ficou pensando no assunto com os olhos nas andorinhas que desenhavam “riscos de velocidade” no céu azul. Depois chamou o geólogo e disse:

         – O amigo Visconde já deve estar afiadíssimo em geologia de tanto que lê esse tratado. Pode portanto dar parecer num  problema que me preocupa. Acha que poderemos tirar petróleo aqui no sítio?

         O Visconde respondeu depois de cofiar as palhinhas do pescoço:

         – Ê possível, sim. Com base nos meus estudos estamos em terreno francamente oleífero.

         – Lá vem! Lá vem o pedante com os tais termos arrevesados! Que quer dizer oleífero?

         – Oleífero, quer dizer produtor de óleo. Frutífero, produtor de frutas; argentífero, produtor de prata…

         – Milhífero, produtor de milho – gritou a boneca, aparecendo e metendo o bedelho na conversa. Em vez de tanta ciência, eu preferia que o Senhor Visconde produzisse grãozinhos de milho de pipoca. Há um mês que tia Nastácia não rebenta nenhuma, porque o milho acabou. Se este sabugo de cartola produzisse pipocas em vez de ciência, seria muito melhor.

         – Não encrenque, Emília – ralhou Pedrinho. – Estamos a tratar dum assunto muito sério: o petróleo. Que acha de abrirmos um poço de petróleo aqui no sítio?

         Emília arregalou os olhos. A lembrança pareceu-lhe de primeiríssima.

         – Ótimo, Pedrinho! Até parece ideia minha. E tenho um plano maravilhoso para conseguir uma perfuração bem redonda e profunda.

         – Qual é?

         – O tatu! Amarra-se um tatu pela cauda e pendura-se ele de cabeça para baixo, no ponto onde queremos abrir o poço. Na fúria de fugir, o tatu vai furando, furando até chegar no petróleo…

         – E aí?

         – Aí espirra – e a gente fica sabendo que deu no petróleo.

         Pedrinho tocou Emília da varanda e continuou na discussão com o Visconde.

         – Primeiro – disse o grande sábio – temos de abrir um curso de geologia. Sem que todos saibam alguma coisa da história da terra, não podemos pensar em poço. Como já li esta Geologia inteira, proponho-me a ser o professor.

         – Ótimo! – exclamou Pedrinho levantando-se. Vou avisar o pessoal que as aulas começam hoje mesmo. Otimíssimo…

         Foi assim que começou o petróleo no Brasil.

 

1 – O primeiro serão

         Pedrinho arrumou a sala como um anfiteatro de escola superior. Um tamborete em cima da mesa ficou sendo a cátedra do mestre. Na primeira fila de cadeiras sentaram-se Narizinho, Emília e ele. Na segunda, Dona Benta e tia Nastácia. Pedrinho fez questão de que a pobre negra também se formasse em geologia.

         Naquela noite, logo que todos se reuniram, Pedrinho plantou o geólogo na cátedra.

         – Nivele as extremidades e comece, Senhor Visconde.

         O sábio assim fez; depois de apoiar os pés na geologia, erguendo-os ao nível da cartolinha, cuspiu o pigarro e começou:

         – A Geologia é a história da Terra. Tudo que aconteceu desde o nascimento deste nosso Planeta se acha escrito nas rochas que o formam. A terra é uma rocha, uma bola de pedra.

         Como nasceu? Temos de adivinhar, porque nenhum de nós assistiu a isso. Uns imaginam que foi dum jeito. Outros imaginam que foi de outro jeito. Vou contar como nós, sábios, imaginamos o nascimento da terra.

         Em certo instante do Tempo Infinito, destacou-se do Sol um pedaço da massa de fogo que ele é e ficou regirando no espaço. A Terra, portanto, começou sendo uma bolota de fogo no espaço…

         – Espécie de bomba de pistolão! – gritou Emília.

         – Sim. Tal qual bomba de pistolão. Mas as bombas de pistolão descrevem uma curva e caem. A bolinha de fogo de nome Terra, em vez de cair, ficou toda a vida a regirar em torno do canudo do pistolão, que era o Sol. E foi se resfriando. Quando eu digo bola de fogo, é um modo de dizer. Era uma bola de minerais derretidos, ou pedra derretida. Dessa massa candente escapou mais tarde o espirro que formou a Lua.

         – E por que motivo a Terra foi se esfriando? – perguntou Narizinho.

         – Porque a tendência do calor é espalhar-se. Tudo que é quente esfria porque o calor se espalha – sai do corpo quente espalha-se pelo espaço. O calor irradia-se, como dizem os sábios. De modo que o calor da bola de minerais derretidos que chamamos Terra foi se irradiando – e até hoje está se irradiando.

         – Como isso? Pois então já não está totalmente fria a Terra?

         – Não. Já que esfria de fora para dentro, só está fria na crosta, ou na casca onde nós, e todos os animais e plantas, vivemos. Mas à medida que vamos afundando dentro da terra, o calor cresce.

         – Como sabe disso?

         – Em qualquer perfuração profunda observa-se muito bem esse fato. O termômetro, que é o instrumento de medir a temperatura, sobe de um grau a cada 25 metros de descida. Nessa marcha a dois ou três quilômetros de fundo temos a temperatura da água em ebulição; e a trinta ou quarenta quilômetros temos a temperatura em que os metais se derretem.

         – Que horror! Quer dizer então que lá bem no centro da terra o calor é de nem se fazer ideia?…

         – Exatamente. Não podemos fazer ideia dele. Além desse aumento do calor com a fundura, ainda existem muitas outras provas do calor central da terra.

         – Os vulcões! – gritou Emília.

         – Sim os vulcões. São aberturas por onde o fogo interno jorra. Hoje há muito poucos vulcões, uns 250; mas no começo a superfície inteira da crosta era coalhadinha de vulcões.

         – Como sabe?

         – Porque pela superfície inteira da terra vemos sinais de vulcões extintos – as rochas derretidas que saíram deles, as rochas ígneas, ou eruptivas, como se diz em geologia. Temos, ainda, os gêiseres, que são repuxos de água quente. Se a água sai quente, de alguma parte recebe o calor.

         – Mas como nós não sentimos esse calor aqui em cima?

         – Porque já há uma espessa camada de rochas quase fria, entre nós e as zonas de calor ainda forte. Essa camada constitui a crosta da Terra. Resfriou-se; as rochas derretidas que a  compunham solidificaram-se – e como são más condutoras do calor, evitam que morramos assados aqui em cima.

         Nos vulcões ativos podemos ter uma prova de como a coisa é. A lava que escorre desses vulcões, sai candente, derretida, em forma de pasta mole; o calor é tanto que nem olhar para aquilo de perto a gente pode. Cega os olhos. Mas logo que se afasta da cratera, a lava começa a resfriar-se, muda de cor; perde o fulgor cegante e fica vermelha, depois vermelho escuro e por fim preta. A massa endurece por cima e esfria a ponto de podermos passear sobre ela; mas dentro o calor continua bravo.

         – Muito bem, Visconde – disse Narizinho. Chega de calor. Já estou suando. Fale das rochas.

         O Visconde falou.

         – Chamamos rocha a essa massa de minerais derretidos que se esfriaram e solidificaram. São compostas duma mistura de minerais simples, verdadeira salada. Existem nelas sílica, quartzo, mica, feldspato, ferro e todo os minerais que conhecemos.

         A terra, portanto, aos resfriar-se, ficou uma bola com casca de pedra dura, ou de rochas ígneas, também chamadas eruptivas ou plutônicas.

         – Que quer dizer ígnea? – indagou Pedrinho.

         – Ígneo significa neste caso produzido pelo fogo. Essa bola de pedra dura regirava no espaço envolvida por uma camada de ar e uma imensa nuvem de vapores. Esses vapores, compostos de hidrogênio e oxigênio, formavam uma combinação de nome água, interessante por mil razões, entre as quais a de ser a nossa mãe – a mãe de todos os seres vivos, animais e plantas.

         – Que engraçado! Nunca pensei nisso.

         – Pois é. A água é a mãe da vida – e o pai é o calor. Sem água e calor não há vida possível. Mas no começo, não havia água. Só havia vapor de água, ou água em estado gasoso. O oxigênio e o hidrogênio quando se combinam ficam rebeldes ao calor excessivo. Por essa razão, em vez de permanecerem incorporados na massa candente da terra, fugiram, ficando suspensos no ar sob forma de grande nuvem a envolver a bola.

         Assim, porém, que a crosta da terra entrou a resfriar-se e a

consolidar-se, a água passou do estado gasoso para o estado líquido – e desceu sob forma de chuva para irrigar a crosta. A água acumulada nas partes mais baixas deu origem aos oceanos, mares e lagos. A que caiu nas partes mais altas deu origem aos rios. Ainda hoje a água sofre a ação do calor do sol e evapora-se, para cair de novo sob forma de chuva; mas daqui a milhões de anos o calor do sol não dará para evaporar a água e ela então ficará unicamente em estado líquido.

         – Ou sólido – ajuntou Pedrinho.

         – Perfeitamente. Quando por cima de toda a crosta da terra o calor do sol for tão pouco como já é hoje nas regiões polares, então toda a água do mundo se congelará. Os rios secarão,  porque não havendo chuvas que os alimentem não pode haver rios – e os lagos e os mares se transformarão em imensas planícies de gelo.

         – Que ótimo! – exclamou Emília. Poderemos ir daqui à Europa numa volada de patins.

         – Ótimo, nada! – contestou Pedrinho. Nesse tempo estará extinta a vida na terra, como já se extinguiu nos polos. Até me arrepio de pensar nisso…

         – Muito bem – continuou o Visconde. Estávamos já com a crosta da terra endurecida e a água formando os mares, os lagos e rios. Neste ponto começou a dar-se um fenômeno muito interessante. A água, de tanto lidar com o Calor e o Ar, fez com eles um trato. “Está muito feia a terra, assim reduzida a uma crosta de rocha dura”, disse a Água. “Precisamos combinar umas modificações que permitam o aparecimento da vida. Quero ver a terra cheia de verdura e de bichos que andem, corram e se ataquem uns aos outros.”

         – E urrem, e zurrem, e piem – acrescentou Emília.

         – “E para isso, que fazer?” – perguntou o Calor.

         – “Aliar-nos os três e atacarmos as rochas ígneas, transformando-as em rochas sedimentárias” – respondeu a Água.

         – “De que modo?” – perguntou ainda o Calor, que era bem burrinho.

         – “Isso veremos na hora do trabalho. Tenho que experimentar. No momento basta que vocês jurem aliança comigo.”

         O Calor e o Ar aceitaram a proposta e desde então o trabalho da Água, do Calor e do Ar na transformação da crosta da terra não parou um só minuto. Para atacar as rochas ígneas os três inventaram uma picareta invisível, chamada Erosão. A Erosão ataca todas as pedras dum modo contínuo, e as vai rachando, lascando, esfarelando, até reduzi-las a pó finíssimo.

         – Que negócio é esse? – perguntou Pedrinho.

         – Muito simples. Para atacar uma grande massa de rocha, o calor primeiro a aquece. Vem depois a água, sob forma de chuva, e a resfria bruscamente. Como o calor dilata os corpos e o frio os contrai, começou na crosta da terra um terrível rachamento de pedras. Pedra aquecida e resfriada de brusco, racha, parte-se. As grandes massas de rochas foram sendo divididas em pedaços cada vez menores. E quando esses pedaços, por ficarem muitos pequenos, puderam resistir ao processo do rachamento, a Erosão veio com processos novos. A água, nas grandes chuvas, criava as enxurradas, as torrentes. Os blocos de pedra eram arrastados por essas torrentes, chocando-se uns nos outros, desgastando-se. Quem examina um fundo de ribeirão vê milhares de pedras de todas as cores, que de tão esfregadas entre si ficaram roliças, com todas as arestas destruídas. Também o Ar entra em cena, e sob forma de Vento ajuda a Erosão. O quebra-quebra, o esfrega-esfrega, o bate-bate e o rola-rola acabam transformando tudo em pedregulho, e depois transformando o pedregulho em areia e pó finíssimo de pedra – ou argila. E como as enxurradas correm para os ribeirões, e os ribeirões correm para os rios, e os rios correm para o mar, todas as rochas destruídas pela Erosão acabam despejadas no mar.

         – Mas, se é assim, os mares já deviam estar completamente

entupidos – observou Narizinho.

         – E quem disse que os primeiros mares não foram todos entupidos? Os mares de hoje não estão onde estavam os mares  de milhões de anos atrás. Temos mil provas disso. Os continentes modernos já foram mares. Por toda parte, até nas mais altas montanhas, vemos sinais de mar, o que quer dizer que também as montanhas já foram fundos de mar. As neves eternas do Himalaia, que é a mais alta montanha do mundo, repousam sobre camadas de calcário – e o calcário, como vocês devem saber, é uma rocha sedimentária formada no fundo do mar. Rocha sedimentária quer dizer rocha que se sedimentou.

         – E que é sedimentar?

         – Sedimentar é ser depositado no fundo da água. Se num copo você mistura areia com água e sacode, logo a areia se deposita no fundo, isto é, se sedimenta. Pois foi o que aconteceu na crosta da terra. O material das rochas ígneas, desagregado pela Erosão, era arrastado para os mares e depositava-se no fundo deles – e isso se deu em tamanhas proporções que na superfície da terra há hoje muito mais rochas sedimentárias do que ígneas. Estas foram na maior parte destruídas – ou transformadas. Só restam as que estão no fundo, livres do contato da água e do ar.

         – Mas se é assim – disse Pedrinho – a crosta da terra devia estar toda reduzida a areia e pó – e não está.

         – Não está porque a Erosão tem três inimigos que invertem a sua obra de pulverizamento.

         – Quais são eles?

         – A Pressão, a Cimentação e o Metamorfismo. Logo que se forma um sedimento no fundo das águas, estes três inimigos entram em cena para ligar de novo as partículas de rocha que a Erosão desagregou. Eles ligam essas partículas, cimentam-nas, soldam-nas. Surgem então as massas de rochas sedimentárias: os conglomerados compostos de pedregulhos ou fragmentos de rocha cimentados entre si: os arenitos, que não passam de grãos de areia também cimentados entre si; os xistos, que são pó de argila consolidado; e as chamadas rochas orgânicas, formadas de resíduos de conchas e ossos de peixe e também de vegetais.

         – Que luta é a vida! – exclamou Narizinho. Um faz e outro desfaz. Nada tem sossego…

         O Visconde enxugou o suorzinho da testa e continuou:

         – Essa briga entre a Erosão e os seus três inimigos faz que realmente as rochas não tenham sossego. A erosão as esfarela; os outros as recompõe – e será assim eternamente.

         – E as tais rochas orgânicas?

         – São rochas sedimentárias constituídas pelos restos mortais dos animálculos e das plantas. Quando uma floresta é soterrada, todas as árvores nela existentes se transformam numa rocha de nome hulha, ou carvão de pedra. Nos brejos as plantas aquáticas que morrem e afundam formam uma rocha de nome turfa. E nos mares, quando se sedimentam casquinhas de numerosos animálculos e esqueletos de peixe, formam-se conglomerados de rocha calcária. São essas as rochas orgânicas.

         – E o tal Metamorfismo? – quis saber a menina.

         – Bom. O metamorfismo dá-se quando as rochas sedimentárias são muito comprimidas pela pressão ou atacadas pelo calor. Prestem atenção: sempre que lá no fundo da terra um jato de rocha derretida sobe e intromete-se por entre as camadas de rocha sedimentária, o tremendo calor da rocha derretida derrete a rocha sedimentária com que ficou em contato – solda as partículas, redu-las quase a rocha ígnea outra vez. A pressão excessiva, junto com o calor, também as modifica. As rochas sedimentárias que sofrem esses calores e essas pressões são conhecidas pelos geólogos como rochas metamórficas.

         – Que quer dizer metamórfico?

         – Quer dizer que sofreu uma metamorfose. Metamorfose é a passagem dum estado para outro. Emília, por exemplo, metamorfoseou-se em gente, isto é, passou de boneca de pano a gente. As borboletas são produtos duma interessantíssima metamorfose. Começam lagartas, esses bichos cabeludos que andam por aí a se arrastarem, comendo folhas de plantas; um dia as lagartas param de comer, encolhem-se num galhinho e sofrem uma metamorfose; viram casulos. O casulo passa uma porção de tempo dormindo, e um belo dia sai dele a borboleta. Tudo são metamorfoses.

         – Outra metamorfose interessante – disse Dona Benta – é a do pensamento lógico que temos durante o dia nessa coisa misteriosa que chamamos sonho. E como o relógio vai bater nove horas, acho que é tempo de irmos para a cama metamorfosear nossos pensamentos em sonhos. Basta por hoje, Visconde. Gostei da sua liçãozinha. Está certa. Deixe o resto para amanhã.

         Todos concordaram que a lição do Visconde fora boa, exceto tia Nastácia. A negra dormira o tempo inteiro. E quando Narizinho a censurou por causa disso, respondeu com a maior sinceridade:

         – Pra que ouvir, menina? Não entendo nada mesmo…

 

2 – Segundo serão

         No serão seguinte reuniram-se mais cedo. A curiosidade aumentava. Pedrinho plantou novamente o geólogo em cima da mesa e cada qual se sentou na cadeira da véspera. Tia Nastácia também veio, mas nem esperou o começo. Tratou logo de tirar uma boa soneca.

         Depois de cuspir o pigarrinho, o Visconde deu começo à lição.

         – Vimos ontem – disse ele – que a terra principiou uma bola de pedra feita duma mistura de minerais. Quer dizer que por aqui só havia minerais – nada de animal ou vegetal. Mas a Água, o Ar e o Calor se ligaram para criar as primeiras vidas, todas vegetais. Fizeram surgir no mar umas coisinhas mínimas, fabricadas de minerais, mas que já não eram minerais – eram vegetais. Logo, o vegetal é filho do mineral; é o próprio mineral sob forma diferente. E o que caracteriza esse vegetal é aparecer sob forma organizada, ou com órgãos. Organizado é uma coisa que tem órgãos.

         – E órgãos, que é? – quis saber Narizinho.

         – Órgão é um aparelho que desempenha uma função, isto é, que faz qualquer coisa. Os minerais não têm órgão; por isso são parados. Os vegetais têm. As vidinhas vegetais que surgiram foram se desenvolvendo, ficando cada vez mais complicadas e aperfeiçoadas, até darem os vegetais que temos hoje – as árvores, os capins, tudo. Se analisarmos a matéria que compõe um vegetal, veremos que é toda mineral. Por isso digo que o vegetal é filho do mineral. É o mineral com órgãos. Em certo momento da vida da terra alguns desses vegetais começaram a modificar-se lentissimamente, porque tudo na natureza é terrivelmente lento. Pressa não é com ela – não passa de invenção dos homens. Começaram a modificar-se num sentido diferente do resto – e foi assim que surgiram os primeiros animaizinhos. Ainda hoje existem seres minúsculos que não são bem vegetais nem bem animais.

         – Que são então?

         – São vegetais e animais ao mesmo tempo. Isto mostra que naqueles começos de vida na terra, houve um tempo em que o animal estava ainda meio lá meio cá, meio planta meio futuro animal. A natureza que vive experimentando coisas, depois de criar a vida vegetal resolvera experimentar uma novidade: a vida animal. O processo da natureza é o da experiência e erro. Experimenta, erra; experimenta, erra; súbito, experimenta e acerta – e então fixa ou conserva aquele acerto, e toca para diante com outras experiências.

         – E acertou com o animal?

         – Tanto acertou que aqui estamos nós, animais aperfeiçoadíssimos.

         Emília cochichou ao ouvido de Narizinho: “Olha a pretensão dele! Nós, animais! Um vegetalíssimo sabugo a considerar-se animal! Tem graça…”

         O Visconde continuou:

         – Por fim o animal destacou-se definitivamente do vegetal, criando órgãos novos; mas não passa dum filho direto do vegetal.

         – Neto, portanto, do mineral – acrescentou Pedrinho.

         – Exatamente, neto do mineral. Se analisarmos a matéria que compõe um animal veremos que é todinha formada de minerais. Logo, o animal é a terceira forma do mineral. Mais tarde, com o desenvolvimento dos animais, surgiu neles uma coisa nova: o Pensamento.

         – Bisneto do mineral! – gritou Pedrinho.

         – Para mim é isso mesmo – concordou o Visconde. Não sei se para os outros sábios também será… Mas como eu ia dizendo, a base de tudo, inclusive da vida, é o mineral, que temos na natureza, sob forma das rochas, onde está escrita toda a história da terra. A história do homem, muito curtinha, pois não vai além de 7.000 anos, nos é contada pelos documentos ou restos humanos que resistiram à destruição do tempo – múmias de egípcios, inscrições em monumentos, as pirâmides e outras coisas assim. Mas a história da terra, contada pelas rochas, alcança milhões de anos. Apesar disso, um geólogo como eu lê tão claramente numa rocha como Pedrinho lê num livro.

         – Lê que coisas?

         – Lê a idade dessa rocha, lê como ela se formou, o que sofreu nas suas lutas com a erosão; lê, portanto, a história da formação da terra, do nascimento das plantas, do aparecimento dos animais, tudo.

         – De que modo a rocha fala das plantas e dos animais? – quis saber Narizinho.

         – As rochas são túmulos de vidas passadas. Nelas encontramos fósseis de plantas e animais que levam os geólogos a mil conclusões sobre a história da terra. Esses restos mortais, revelam inúmeras formas de vida que já se extinguiram. Mostram plantas esquisitas, avós de muitas plantas de hoje. E vemos animais esquisitíssimos, também avós dos animais de hoje. E outros ainda mais esquisitos, que desapareceram sem deixar descendência. Mais tarde havemos de estudar a paleontologia, que é a ciência dos fósseis. Por enquanto só falaremos dos que se relacionarem com o petróleo. Nas escavações para petróleo os geólogos encontram restos fósseis de animálculos e de plantículas marinhas – como as diatomáceas, algas de células revestidas duma película de sílica.

         – Que é sílica?

         – Um mineral dos mais abundantes na natureza. Depois do oxigênio é o que aparece em maior quantidade. As areias são formadas de sílica. Mas, como ia dizendo, essas plantinhas possuem células com capa de sílica, de modo que quando morrem e desaparece o que há dentro das células, fica só a casquinha. Ao lado das diatomáceas encontram-se também muitos fósseis de radiolários, foraminíferos, ostras, etc.

         – Radiolário?… Foraminífero? Que é isso?

         – Animálculos com esqueletinhos de sílica que também chegaram até nós em estado fóssil e fornecem aos sábios preciosa instrução sobre o estado da terra há milhões e milhões de anos. Em certos pontos essas formas de vida se acumularam em tremendas quantidades. Encontramos hoje extensões enormes atulhadas com os seus esqueletinhos. E surge a pergunta: Para onde foi a substância que enchia as casquinhas? Para onde foi o protoplasma de que eram formados esses pequenos seres?

         – Pro-to-plas-ma – repetiu Emília. Explique o que é. Eu não finjo que sei as coisas.

         – Protoplasma – explicou o Visconde – é o caldo, o mingau desses serezinhos. É a substância da vida. A vida começa sendo protoplasma. O princípio de tudo que é orgânico está no protoplasma.

         – Viva o protoplasma! – gritou Emília.

         – Diante desses enormes amontoados de fósseis, os sábios

perguntam: “Onde está o gato?” Isto é: “Onde está o protoplasma que os enchia?” Os sábios sabem que na natureza nada se perde; uma coisa não desaparece, apenas se transforma em outra. Se não está aqui, está ali. Se não está sob esta forma, está sob outra forma. Os sábios fazem essa pergunta e eles mesmos respondem, porque a função dos sábios é perguntar e responder a si próprios.

         – E que respondem?

         – Respondem uma porção de coisas; esse protoplasma, ou essa matéria orgânica dos animálculos, muda-se numa porção de coisas que neste momento não nos interessam – e mudam-se também no que mais nos interessa: em petróleo. Esses bichinhos eram seres marinhos e por isso se multiplicavam tanto. O grande reservatório da vida sempre foi o mar. Na terra a vida só é possível na superfície e até a poucos palmos de fundo, onde moram as minhocas. Já no mar a vida é possível até nas maiores profundidades. Mal comparando, a vida na terra é uma folha de papel; e a vida no mar é uma pilha de folhas de papel que vai desde a superfície das ondas até lá no fundo. Num pedaço de terra do tamanho desta sala, quanta vida cabe?

         – Pouca – respondeu Pedrinho. Uns animais grandes, umas plantas, uns bichinhos e os micróbios. Só.

         – Exatamente. Mas num pedaço de mar do tamanho desta sala cabe um colosso de vida, porque esse pedaço de mar pode descer até 9.000 metros de fundo, como no Mar do Japão, e está cheio de vida desde cima até embaixo. Por esse motivo a fauna e a flora do mar são imensas, muitíssimo mais ricas que a fauna e a flora da terra. Os cetáceos e os peixes representam as formas graúdas de vida marinha – as baleias, os tubarões, os espadartes, os atuns, os salmões, os arenques. Mas muito mais que isso são as formas da vida miudinha, que em vez de nadar bóia na imensa massa líquida. Se a flora e fauna miúda fossem juntadas num bloco, dariam uma montanha muito maior que a formada de todos os peixes. Ora, toda essa vidalhada está nascendo e morrendo sem parar – e o que morre afunda. Em virtude disso há no mar uma perpétua chuva de organismos mortos, que vão caindo e se acumulando no fundo, onde formam uma camada de lodo negro, ou um sedimento. Tudo que se deposita é um sedimento, como já mostrei.

         – Bolas! – exclamou Emília. Então o dinheiro que Dona Benta depositou no banco é um sedimento?

         O Visconde coçou a cabeça. Emília atrapalhava-o com aquelas objeções de bobagem. Mas continuou, sem dar-lhe resposta:

         – Esses sedimentos de animálculos e vegetais mortos cobrem o fundo dos mares, de modo que aquilo não passa dum imenso cemitério de matéria orgânica.

         – Que quer dizer matéria orgânica?

         – É a matéria que compõe os vegetais e os animais, isto é, as coisas dotadas de órgãos. Orgânico vem de órgão. Só têm órgãos as coisas que têm vida. A matéria que forma os minerais chama-se matéria inorgânica.

         O Visconde tossiu – cuspiu e prosseguiu:

         – Bem. Nas regiões marinhas próximas das terras, sobretudo nos golfos, parte desse lodo negro do fundo do mar foi recoberto, há milhões de anos, pelas areias e argilas que os rios despejam no mar. Como já vimos, a erosão desagrega as rochas e por meio dos rios as conduz para o mar. Por isso os continentes estão sempre a diminuir de volume e o fundo do mar está sempre a crescer de altura. Os sábios calculam, por exemplo, que a cada ano o Mississipi arrasta para o golfo do México 400 mil toneladas de material pulverizado extraído do continente, de modo que em cada dez mil anos o tal golfo fica mais raso um metro. No fim de 7 milhões de anos estará completamente aterrado. Aqui no Brasil temos o Amazonas que, segundo os cálculos de Euclides da Cunha, leva para o mar 3 milhões de metros cúbicos de detritos por dia, ou sejam quase dois quilômetros cúbicos por ano. Mas esses detritos não se acumulam logo adiante do despejo do Amazonas, por causa da velocidade da correnteza na foz. São levados mar adentro até alcançarem a célebre corrente do Golfo do México, e no fundo deste golfo se depositam, de mistura com os detritos do Mississipi.

         – Quer dizer então que o Brasil também fornece aterro para o Golfo do México?

         – Sim, e em boa quantidade. Manda para lá quase dois quilômetros cúbicos de terra amazônica por ano.

         – Mas assim a região amazônica vai se abaixando e acabará invadida pelo mar…

         – Muito possível. Essa região já foi mar, antes do enrugamento da terra que criou a Cordilheira dos Andes. Era um mar que ligava o Atlântico ao Pacífico. Hoje é um aguaçal doce, de tanto rio que há lá; e como esses rios não param de desmontar as terras, acabarão baixando-as tanto que a água do mar cobrirá novamente a bacia amazônica, formando o futuro Golfo do Amazonas. Por esse tempo o Golfo do México estará aterrado.

         – Bonito! – protestou Pedrinho. Então os Estados Unidos aumentarão de território à nossa custa, mandando para cá o golfo que há lá?

         – Claro. Os dois maiores rios do mundo, o Amazonas e o Mississipi, estão empenhados nessa tarefa de aterrar o Golfo do México e abrir o Golfo Amazonense.

         – Sim, senhor! – disse Narizinho. Vejo que a água é mesmo uma danadinha. Muda tudo na terra, com a sua mania de não parar nunca. É a leva-e-traz, é a sobe-e-desce, é a saúva carregadeira.

         – Realmente é assim. Os sábios sabem que há uns poucos milhões de anos o Golfo do México tinha uma extensão o dobro da de hoje. O mesmo acontece com o Golfo da Califórnia, que já foi muito maior. Está em grande parte aterrado pelo despejo dos rios – e é nessa parte aterrada que os americanos extraem maior quantidade de petróleo.

         – Quer dizer que o petróleo se forma nesse lodo enterrado?

         – Justamente. A matéria orgânica acumulada nos sedimentos gera o petróleo – pelo menos na opinião de muitos sábios. Mas para isso é preciso que nessa matéria orgânica haja hidrocarbonetos.

         – Que bicho esquisito é esse?

         – Hidrocarboneto é o nome que os químicos dão às combinações de hidrogênio e carbono. Esses dois corpos mostram-se muito amigos, gostam de andar juntos, de braços dados. Os átomos de um se ligam aos átomos de outro, ora nesta, ora naquela proporção – e conforme é essa proporção, surgem os hidrocarbonetos chamados metano, butano, propano, acetileno, benzina, etc. que são gases ou líquidos voláteis, todos eles inflamáveis.

         – Que quer dizer líquido volátil?

         – Quer dizer um líquido que se transforma em gás assim que é exposto ao ar. Conserva-se líquido, enquanto preso. Se o soltam, adeus! vira gás. Mas, como eu ia dizendo, para que se forme petróleo é preciso que nos tais sedimentos haja hidrocarbonetos. Nos sedimentos sem hidrocarbonetos, só de fósseis secos, tais como os sedimentos calcários, não se forma o petróleo.

         – Bom – disse Emília – estou vendo que o tal petróleo não passa de azeite de defunto. Cadáveres de foraminíferos, peixe podre, cemitérios de caramujo – até já estou ficando com o estômago enjoado…

         – Por isso é que é tão fedorento – ajuntou Narizinho.

         – O Visconde falou no aterro dos golfos do México e da Califórnia – disse Pedrinho. E aqui no Brasil? Não teremos algum aterro assim?

         – Como não? Há, por exemplo, o Pantanal de Mato Grosso, um dos maiores aterros que o mundo conhece.

         – Explique isso, Visconde.

         – O Pantanal de Mato Grosso e o Chaco do Paraguai e da Bolívia formam uma imensa depressão duns 700 quilômetros de comprimento. Essa região já foi um mar interno, ou mediterrâneo, como se vê das inúmeras lagoas de água salgada ainda existentes. Chamava-se o Mar de Xaraés. Também inúmeros fósseis marinhos atestam o antigo mar que secou – ou que está secando, porque as lagoas salgadas ainda são restos do mar.

         – E quem aterrou esse Mar de Xaraés?

         – Está claro que foi a Erosão, com a terra tirada da Cordilheira dos Andes, dum lado, e das montanhas do Brasil, de outro. Ainda hoje vemos no meio do pantanal algumas montanhas baixas, como a Serra de Maracaju e a da Bodoquena. Essas serras são ruínas de montanhas. Deviam ter sido altíssimas, mas foram rebaixadas pela erosão. Com as areias e argilas tiradas delas, dos Andes e das outras montanhas do Brasil, é que se aterrou o velho Mar de Xaraés.

         – Deve haver muito petróleo no Pantanal – observou Pedrinho.

         – Claro que deve. Reúnem-se ali todos os requisitos para a formação do petróleo, além de que em muitos pontos há sinais evidentes de petróleo. Bem possível até que o Pantanal seja a maior região petrolífera do mundo.

         – Que beleza! – exclamou Pedrinho pensativamente.

         Nesse momento o relógio da parede bateu nove horas.

         – Basta por hoje, Visconde – disse Dona Benta levantando-se. – Ouvi com a maior atenção a sua geologia e acho que está certo. Mas basta. Temos de alternar ciência com sono – e chegou a hora de recolher.

         Depois, voltando-se para tia Nastácia, que cochilara o tempo inteiro:

         – Que tal está achando a geologia do Visconde? – perguntou.

         Tia Nastácia abriu uma enormíssima boca vermelha e respondeu bocejando:

         – Ele só fala em peixe podre, Sinhá. Peixe há de ser fresquinho. Quanto mais fresco, melhor. E se vem ainda vivo, como aquele surubi que o Coronel Teodorico mandou outro dia, então ainda melhor…

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