Monteiro Lobato

O PICAPAU AMARELO

Capítulos 05, 06, 07 e 08

 

05 – D. Quixote hospeda-se no sítio

Nunca houve jantar mais apressado. Pedrinho nem mastigava — engolia!

— Não adianta correr, menino — disse Dona Benta. — Eles vão ficar morando em nossas terras toda a vida. Coma sossegado, mastigue bem.

Mas quem ouve conselhos numa ocasião dessas?

Pedrinho continuou a engolir sem mastigar, e por fim saiu correndo, com uma perna de frango assado na mão. Nem esperou pela sobremesa. Os outros o imitaram. Correram todos para a cerca, deixando Dona Benta sozinha.

— O que é criança! — exclamou tia Nastácia. — Brincam a vida inteira, e quanto mais brincam mais querem brincar. E foi pena essa correria hoje, porque fiz um docinho de batata roxa que está mesmo do céu. Prove, Sinhá.

Dona Benta comeu sossegadamente o doce de batata roxa; em seguida encaminhou-se sem pressa nenhuma para a cerca. Lá estavam todos encarapitados, com os olhos fixos na procissão sem fim dos personagens fantásticos, de mudança para as Terras Novas. Emília e o Visconde acharam jeito de se acocorarem no topo de dois moirões da cerca; os demais ficaram de pé no segundo fio de arame a contar debaixo, e debruçados no de cima, com os cotovelos entre os intervalos de duas farpas. Quindim olhava, sem entender coisa nenhuma. O Burro Falante filosofava.

— Vovó perdeu uma cena gozada — disse Narizinho logo que Dona Benta chegou. — O Pequeno Polegar foi o único que veio sem bagagem — só trouxe aquelas botas de sete léguas. E sabe a ideia dele, vovó? Deu com a casa de João-de-barro ali do Cedro Grande e apossou-se dela. Já se recolheu. Está lá dentro descansando da viagem.

— E os donos da casa, o casal de passarinhos? — indagou Dona Benta.

— Andam por fora, cavando a vida. Quando voltarem e encontrarem a casa ocupada, vai haver tragédia.

Pedrinho estava maravilhado com a transformação das Terras Novas. Um puro milagre, aquilo! Tudo mudado. Castelos e mais castelos, palácios e mais palácios; e árvores enormes, velhíssimas, que ele nunca vira por lá. E lagos azulíssimos; e  torrentes de água  espumejante, alvíssima; e despenhadeiros de pedras nuas; e jardins maravilhosos. Até aquela famosa casa feita só de doces, que Hansel e Gretel descobriram na mata virgem, fora transportada para lá.

— Está ali uma casa — disse Pedrinho — em que eu não poderia morar. As paredes são de açúcar-cande; as telhas, de chocolate; as torneiras dão mel e vinho e leite. Eu comia essa casa inteirinha.

— E não escapava duma boa dose de Erva-de-santa-maria com óleo de rícino — observou Emília. — Doce demais gera lombrigas, diz tia Nastácia.

Mas houve um personagem que ficou ao desabrigo: D. Quixote. Com a sua mania de proezas e mais proezas, só trouxera o escudo, a espada e a lança — esquecera de trazer casa. E andava às tontas pelas Terras Novas, procurando qualquer coisa, montado no Rocinante, com o gordo Sancho Pança atrás.

— D. Quixote gosta muito de hospedarias — lembrou Narizinho. — Aposto que está procurando uma.

— Mas não acha, porque aqui não há — disse Pedrinho.

— O remédio é hospedar-se no castelo de alguma das princesas.

— Seria no meu, se eu fosse princesa — disse Emília. — Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes interessantes que há no mundo.

Don Quixote, porém, não teve a ideia de acolher-se em casa de nenhuma princesa. Depois de andar dum ponto para outro, deteve-se no alto de um morrinho, com a mão na testa, em viseira. Corria os olhos em todas as direções.

— Está procurando moinhos de vento — murmurou o Visconde. — Por felicidade, o nosso moinho é de roda d’água — está livre de ser atacado por ele.

Depois de tudo examinar, D. Quixote fixou os olhos na casinha de Dona Benta e conferenciou com o escudeiro. Deu-lhe uma ordem qualquer. Sancho fincou os calcanhares no burrinho e veio de galope na direção da cerca.

Chegado que foi, parou, tirou respeitosamente o chapéu e disse, dirigindo-se a Dona Benta:

— Ilustre senhora! Meu amo, o invencível Cavaleiro da Triste Figura, não encontra nestas terras nenhuma estalagem em que  descanse os seus valentes ossos, e manda-me dizer-vos que lhe seria de agrado um pouso na casinha tão simpática que se ergue além da cerca.

Dona Benta respondeu com o desembaraço de sempre:

— Meu caro senhor, a combinação que fiz com o Pequeno Polegar foi de que todos os personagens da Fábula podiam morar em minhas terras, mas para lá da cerca. Assim disse eu e assim pretendo que seja — mas grande gosto me dará receber em minha modesta choupana o ilustre fidalgo da Mancha, se não for para ficar a vida inteira, está claro. Ele que venha.

Sancho agradeceu-lhe as palavras e voltou ao amo no galope.

— Corra lá em casa, Visconde — disse Dona Benta — e previna tia Nastácia da visita de D. Quixote. Diga-lhe que prepare qualquer coisa para ele comer. Deve estar com uma fome de cabelos brancos, o coitado.

Enquanto o Visconde corria a avisar a preta, D. Quixote foi se aproximando. Chegou. Parou diante da cerca, com aquela dignidade de atitudes que o tornava o mais perfeito dos heróis.

— Ilustre dama — disse ele — muito me penhora a gentileza de tão alta acolhida. O vosso palácio me será de repouso, e o vosso convívio me demonstrará que o mel da bondade ainda flui dos nobres corações.

— Que mania a dele de falar complicado! — cochichou Emília para Narizinho.

— É o estilo antigo — explicou a menina. — As palavras de dantes dançavam o minueto e usavam anquinhas e saias balão. Eu não entendo lá muito bem, mas gosto.

Dona Benta, sabidíssima que era — respondeu no mesmo tom, e com muitas anquinhas nas palavras pediu-lhe que apeasse e entrasse. Infelizmente a chave da porteira estava no bolso do Visconde, e o Visconde fora dar o recado lá dentro, de modo que o ilustre herói teve de pular a cerca. Foi um custo! Enfiado na sua armadura de lata, D. Quixote atrapalhou-se, e enganchou-se nas farpas do arame. E quando o desenganchavam dum lado, ele enganchava-se de outro. Por fim, depois de muito trabalho e com a ajuda de todos, foi possível baldeá-lo para o lado de cá da cerca. Uf!

Cumprimentos. Apresentações.

— Este é o meu neto Pedrinho; esta, a minha neta Narizinho; e esta aqui, a famosa Emília, Marquesa de Rabicó.

Don Quixote saudou-os de cabeça, mas ao fazer isso deu com o Quindim de olhos ferrados nele, a vinte passos de distância. O efeito foi tremendo. Aquele esquisito animalão africano impressionou profundamente o fidalgo da Mancha, que se pôs em guarda, de lança em riste, pronto para o ataque.

— Sancho — gritou ele — cá estou de novo diante do mágico Freston, o infame que toma todas as formas para perseguir-me. Mas desta feita darei cabo do miserável.

— Perdão, senhor fidalgo — disse Dona Benta, aflita. — Aquele honrado paquiderme não é nenhum mágico Frestonu, ou o que seja — é apenas o Quindim, velho amigo nosso, pessoa excelente, notável em gramática.

Mas D. Quixote não atendia a coisa nenhuma. Felizmente Rocinante estava do outro lado da cerca, o que iria retardar o choque.

— Depressa, amigo Sancho! Traze—me o valente corcel de mil batalhas.

— Como, senhor — respondeu Sancho com a maior pachorra. — Como, se entre a vossa ilustre pessoa e Rocinante há essa terrível muralha de arames espinhentos, que não vi em parte nenhuma e me parece a última invenção do demo?

O pobre Sancho não conhecia o arame farpado.

— Depressa, depressa, amigo Sancho! — insistia D. Quixote. —  Esta vai ser a mais cruenta peleja da minha vida — mas tenho de atacar montado. A mim, o meu fiel Rocinante — depressa!…

A situação começava a agravar-se. D. Quixote não atendia a ninguém, e se não lhe dessem o cavalo, atacaria mesmo a pé, contra todas as regras da arte.

Foi quando Emília interveio com grande oportunidade.

Correndo ao Quindim, pediu-lhe que se afastasse o mais depressa possível, porque aquele homem era louco. Quindim, o mais sensato rinoceronte do mundo, obedeceu docilmente. Afastou se a trote largo.

Vendo o “inimigo” fugir daquele modo vergonhoso, D. Quixote cantou o triunfo, como galo no terreiro.

— Foge, foge o infame! Não se envergonha de deixar-me nas mãos uma vitória fácil demais para que eu dela me orgulhe. Freston sempre foi o rei dos covardes.

Nisto chegou o Visconde com a chave da porteira. Abriu-a. Sancho entrou com o seu burrinho, a puxar pela rédea o magro Rocinante.

Mas Dona Benta continuava muito aflita. Recolher aquele homem em sua casa — assim sujeito a frequentes acessos de loucura — D. Quixote conversava muito bem, como um  verdadeiro sábio; mas de  súbito lá vinha o acesso. E Dona Benta quase se arrependeu de ter-lhe concedido permissão para entrar.

Sancho fez logo camaradagem com Pedrinho, ao qual contou várias proezas de seu amo que não figuram no famoso livro de Cervantes.

— Ah! menino, este meu amo é na verdade o herói dos heróis. Ainda há pouco, ali na estrada das Terras Novas, espetou com a lança um homem muito feio, de grandes barbas azuis.

— De barbas azuis? Então era o Barba Azul! Bem feito! Esse  homem é o maior especialista em matar mulheres. Já liquidou sete. Não estava de faca na mão?

— Trazia na cintura uma enorme faca de ponta, sim.

— Pois é isso mesmo. Com aquela faca o malvado já matou sete esposas — e matará a oitava, se aparecer outra tola que se case com ele.

— Pois ficou bem espetado pela lança de meu amo — continuou Sancho. — Quis resistir; mas quando ia puxando a faca, foi alcançado no peito e derrubado.

E assim a conversarem foram se encaminhando para a varanda. Dona Benta abria a fila de braço dado a D. Quixote; em seguida vinha Pedrinho, de prosa com Sancho. Narizinho e Emília, atrás, comentavam os acontecimentos. O Visconde ficou lá com Rocinante e o burrinho, depois de apresentá-los ao Burro Falante.

— Já os conheço de fama — disse este. — As proezas de D. Quixote têm corrido o mundo todo — e continuarão a correr. Mas o que nelas mais admiro é a extrema fidelidade de Vossa Senhoria.

Rocinante e o Conselheiro, que era o nome do Burro Falante, só se tratavam assim, de Vossa Senhoria para cima, tão bem educados eram. O Visconde recordou a conversa de horas antes, em que o Burro propusera a Dona Benta que Rocinante e o asno de Sancho ficassem ali no seu pastinho, onde havia capim de sobra e o ótimo — capim gordura do roxo! Rocinante gostou muito da ideia e lambeu os beiços, dizendo que lá nos áridos da  Espanha, sua terra natal, o capim era ralo e duro, dos que não dão o mínimo prazer a um animal. Por isso andava magro daquele jeito, com as costelas sempre de fora.

— Cá no sítio V.S.ª vai engordar como um cevado — disse o Burro Falante. — Em dois meses estará estourando — e ali o senhor asno também.

— A maçada é que meu amo não sabe andar a pé — disse Rocinante. — Tem passado quase a vida inteira montado em meu lombo — e tanto me acostumei a isso que quando ele desmonta até me sinto atrapalhado — leve que nem pluma.

— Pois eu aqui levo vida bem melhor — disse o Conselheiro. — Todos são meus amigos e todos muito leves. Emília pesa, no máximo, uns cinco quilos; o Senhor Visconde não pesa mais de meio. Pedrinho eu calculo em 30; e Narizinho, em outro tanto. De modo que já perdi a memória do que é carregar no lombo mais que 3 arrobas.

— Já não posso dizer o mesmo — suspirou Rocinante. — Meu amo, apesar de ser só ossos, pesa mais de 5 arrobas; e a sua armadura, com mais a lança, a espada e o escudo, pesa mais duas. Regulo carregar, permanentemente, aí umas sete arrobas. É peso!

— Pior comigo — disse o burrinho de Sancho. — Meu amo é gordo, uma pipa, e como anda sempre cheio de sacos de mantimentos, e alforjes com as coisas que pilha durante os combates, vivo suando. Minhas esperanças é que eles parem com as correrias e me deem um merecido sossego.

O Burro Falante levou-os a ver o pastinho de capim-gordura, enquanto o Visconde voltava para a varanda. Lá encontrou D. Quixote desajeitadamente sentado na redinha de Dona Benta, com os dois meninos a fazerem os maiores esforços para lhe tirar do rosto a viseira. O fecho de metal havia emperrado.

— O jeito é empregar o ferro de abrir latas — lembrou Emília, e correu em procura do instrumento. Pedrinho, que era mestre em abrir latas de sardinha e azeitonas, num instante abriu a cara de D. Quixote.

— Que magreza, Santo Deus! Mas que nobreza de feições!

— Emília declarou não existir no mundo homem mais “magramente belo” do que aquele.

Tia Nastácia, a espiar lá da copa, resmungou: “Credo! Essas crianças inventam cada bicho careta …”

Sancho andava pelo quintal cuidando dos arreios. Concluído o serviço, apareceu muito lampeiramente na cozinha. A negra olhou-o desconfiada; mas o escudeiro era desses malandros que sabem agradar às cozinheiras, de modo que dali a minutos estavam amigos. Sancho contava-lhe casos cômicos, um atrás do outro, sempre recheados de provérbios da sabedoria popular. Em troca a preta ia lhe dando coisas de comer, até entupi-lo completamente.

— E vinho? Não há por aqui algum verdasco da Andaluzia? — perguntou o guloso.

— A Luzia aqui não anda não, “Seu” Sancho — nosso vinho é a água do pote. Se quer, mando buscar uma garrafa na venda do Elias Turco — mas juro que bebe uma vez e nunca mais. Falsificadíssimo! Aquele raio de homem é a peste aqui do bairro, “Seu” Sancho. Eu ainda peço pra D. Quixote chuchá ele com a lança. Falsifica tudo — até cebola…

Sancho suspirou de saudades dos bons vinhos da Espanha.

Lá na varanda D. Quixote conversava com Dona Benta sobre as aventuras, e muito admirado ficou de saber que sua história andava a correr mundo escrita por um tal Cervantes. Nem quis acreditar; foi preciso que Narizinho lhe trouxesse os dois enormes volumes da edição de luxo ilustrada por Gustavo Doré. O fidalgo folheou o livro muito atento às gravuras, que achou ótimas, porém falsas.

— Isto não passa duma mistificação! — protestou ele. — Esta cena aqui, por exemplo. Está errada. Eu não espetei este frade, como o desenhista pintou — espetei aquele lá.

— Isto é inevitável — disse Dona Benta. — Os historiadores costumam arranjar os fatos do modo mais cômodo para eles; por isso a História não passa de histórias.

— Mas é um abuso! — insistiu o fidalgo. — Eu, que sempre me bati pelas melhores causas, não merecia que me atraiçoassem deste modo.

Por fim fechou o livro; não quis ver mais.

— O meio — disse Emília — é o senhor mesmo escrever a sua história, ou as suas memórias, como eu fiz.

Don Quixote admirou-se de que aquela pulguinha humana tivesse memórias.

— Tenho, sim. E escrevi-as justamente para isso — para que não viesse nenhum Cervantes dizer a meu respeito coisas tortas ou arranjadas. Faça o mesmo, Senhor Quixote — e se quer, eu o ensinarei como se escrevem memórias. Eu e o Visconde temos grande prática.

Don Quixote, que não sabia quem era o Visconde, fez cara de ponto de interrogação.

— Pois é o nosso “sabinho” — explicou Emília. — Vou apresentá-lo. E gritou para dentro:

— Visconde, cresça e apareça!  

O Visconde apareceu e foi mostrado a D. Quixote, o qual, a despeito de haver passado a vida inteira às voltas com prodígios, não quis acreditar que o sabuguinho de cartola fosse realmente um Visconde. Mas guardou consigo a desconfiança. Era homem educadíssimo.

Nesse momento tia Nastácia entrou com a bandeja de café com mistura — bolinhos, torradas, pipocas. D. Quixote três tomou xícaras de café, comeu doze bolinhos, seis torradas e uma peneirada de pipocas. Estava verdadeiramente faminto, o coitado.

Aquilo fez-lhe bem, porque logo em seguida cruzou as pernas, abriu os braços e, com as mãos seguras nos punhos da rede, disse, correndo os olhos pela varanda:

— Não há dúvida, não há dúvida! A vidinha aqui é bem boa…

Por fim os seus olhos se foram fechando; sua cabeça pendeu para a frente, e um sorriso começou a aparecer-lhe nos lábios.

— Está dormindo e sonhando com a Dulcinéia — murmurou Emília, de dedinho na boca em sinal de silêncio.

Todos saíram da varanda na ponta dos pés.

 

06 – O ninho de João-de-barro e a Quimera

Minutos depois aparecia Rabicó, muito afobado.

— Estive lá na cerca — disse ele — e vi uma briga muito séria. Os dois passarinhos do Cedro Grande voltaram do passeio e descobriram dentro da casa de barro um intruso qualquer. Ficaram furiosíssimos e estão se batendo com o intruso.

— Nossa Senhora! — exclamou Narizinho. — É o Pequeno Polegar! Ele ocupou a casa de João-de-barro como se aquilo fosse hospedaria às ordens do respeitável público, e está agora na encrenca. Vamos depressa acudi-lo!…

Correram todos para o ponto da cerca mais próximo do Cedro Grande e viram o tremendo fecha travado lá em cima. Os dois passarinhos investiam furiosos contra o intruso, procurando deitá-lo fora. Polegar, sem arma nenhuma, defendia-se com as botas. Dava “botadas” na cabeça dos agressores…

— Como há de ser, Pedrinho, para acudirmos ao nosso amigo?

— Só com o bodoque. Mato os dois joões e pronto.

— Isto, nunca! — protestou Narizinho. — Eles são os donos da casa, estão com o direito. O que há a fazer é um de nós subir à árvore e aconselhá-lo a sair. Se Polegar quer casa, que fique morando conosco — é pequenininho, não ocupa espaço.

Subir à árvore! Mas quem? O Visconde, sem dúvida, porque se caísse e quebrasse perna ou braço, tia Nastácia o consertaria num pingo de tempo.

— É isso — resolveu Pedrinho. — Suba lá, Visconde, espante os passarinhos e diga ao Polegar que saia, que desça e venha morar conosco.

O Visconde coçou-se. Não gostava de subir em árvores, por não ser coisa de sábio. Mas obedeceu. Varou a cerca, aproximou-se do  Cedro Grande e começou a subir. Emília, de longe, dava instruções.

— Antes de agarrar-se a um galhinho, veja se não está seco. Lembre-se do que me aconteceu aquele dia na jabuticabeira. Firmei-me num galhinho sem examinar se estava seco, e o galhinho quebrou, e eu — tchibum! — no chão.

— Tchibum é quando a gente cai n’água — corrigiu Narizinho. — Quem cai no chão faz — paf!

O Visconde subiu com as maiores cautelas e por fim chegou ao galho do ninho. Ao avistarem aquele ente que eles nunca tinham visto, de pernas finas e cartola, os dois joões se assustaram e fugiram para longe. O Visconde estava suado; correu o lenço pela testa; bufou. Em seguida foi engatinhando até o ninho e bateu, toque, toque! Polegar, lá dentro, julgando que ainda fosse os pássaros, arrumou-lhe com as botas pelas ventas.

O “sabinho”, apanhado em cheio, perdeu o equilíbrio e caiu — paf — no chão.

— Que horror! — exclamaram os meninos lá na cerca. — Deve estar em pandarecos o Visconde. Temos de juntar os cacos.

Atravessaram a cerca num ponto em que o arame havia bambeado e correram ao Cedro Grande. Pobre Visconde! Era um gemido só. Braço partido, pé destroncado, cartola amarrotada…

— Ai, ai, ai! — gemia ele.

Pedrinho apressou-se em fazer uma espécie de maca a fim de conduzi-lo à “enfermaria”, que era debaixo do divã da sala de jantar. Afastou-se um pouco em procura de pauzinhos secos — mas voltou instantes depois na maior volada de sua vida. “Vem vindo um monstro de três cabeças!…” — gritava ele.

Narizinho olhou e viu, e viu, e VIU! Viu um horrendíssimo monstro de três cabeças — uma de leão, outra de cabra, outra de serpente. Dirigia-se para o lado deles. A disparada dos três foi tamanha que num minuto estavam bem longe dali, diante dum castelo. Entraram por ele adentro como balas de canhão, e trancaram a porta com toda a força, ficando a escorá-la com os ombros.

O rumor do batimento da porta atraiu a castelã, que apareceu muito assustada. Os meninos reconheceram-na incontinenti: Branca de Neve!

— Narizinho! Pedrinho! Emília! — exclamou a gentil princesa. —  que prazer! Que gosto em vê-los aqui! Mas que susto é esse? Larguem a porta.

— Um monstro horrendo quis nos devorar — explicou Narizinho — e com certeza já comeu o pobre Visconde. Lá no Cedro Grande. Três cabeças! Um horror, Branca!…

— Não tenham medo de nada. Estamos em segurança absoluta. Os anões nos defendem.

 — Que é deles? — perguntou Pedrinho mais acalmado, largando a porta, depois de fechá-la bem fechada com a tranca de ferro.

— Aí por fora cuidando das arrumações. Esta mudança para as Terras Novas tem trazido grandes trapalhadas. Muitas brigas por causa de terrenos. Há simpatias e antipatias. Um quer ficar, outro não quer ficar perto do outro. Rosa Vermelha está de mal com Rosa Branca, e depois de erguer o seu palácio num ponto, resolveu mudá-lo para adiante — bem longe de Rosa Branca. Mas o novo ponto por ela escolhido já está ocupado pelo pessoal das “Mil e uma Noites.” As coisas do Mundo das Maravilhas são tão encrencadas como as do mundo de vocês. Há ciumeiras, há implicâncias, há invejas…

— Está aí uma coisa que vovó não previu — pensou Narizinho.

— Outro inconveniente das Terras Novas — continuou Branca — é que os terrenos não estão arruados, nem loteados — não há boas estradas, não há pontes. Creio que tão cedo não poderei dar os meus passeios de carruagem. O que me vale são os anões. Num mês eles me arrumam tudo, deixam isto aqui um brinco. Abrem estradas, plantam a floresta, desenham os jardins…

Emília tinha ido à janela, espiar lá fora, de cima duma cadeira.

— Estou vendo o monstro! — gritou. — Já comeu o Visconde inteirinho …

Todos correram para a sacada e de fato viram, lá muito longe, debaixo do Cedro Grande, um vulto que tanto podia ser o monstro como uma vaca. O “comimento” do Visconde era coisa que só os olhos da Emília podiam perceber daquela distância.

Que monstro seria aquele? A princesinha refletiu. Acho que devia ser qualquer coisa da Fábula Grega. Lá é que há bichos tremendos, como a Hidra de Lerna, o Hipogrifo, o Javali de Erimanto, a Medusa.

— Vovó errou — refletiu Pedrinho. — Devia ter dado licença só para um certo número de personagens — os amigos, os já conhecidos. E não devia admitir monstro nenhum — nem sequer o Barba Azul. Eles vêm nos atrapalhar. Não podemos brincar sossegados. No melhor da festa, surge um deles e temos de fugir a toda.

— Felizmente — disse Branca — a multidão enorme dos personagens da Fábula Grega formou um bairro especial bem no extremo das Terras Novas — lá longe. Esse que assustou vocês deve andar fugido — extraviado. Logo aparece aqui o dono e leva-o.

 

07 – O Visconde e a Quimera

Enquanto no castelo de Branca de Neve os meninos se extasiavam diante dos maravilhosos diamantes extraídos do seio da terra pelos anões, o pobre Visconde conversava sem medo nenhum com o monstro. O “sabinho” nunca teve medo das feras — só tremia diante de vacas e galinhas. Quem tem alma de sabugo é assim.

Quando os meninos fugiram, ele sentou-se, a segurar o pé destroncado, e só então viu diante de si o estranho monstro de três cabeças. Sua curiosidade de sábio espicaçou-o. De que “mitologia” era aquele monstro? Há muitas mitologias, isto é, coleção de fábulas — uma para cada civilização. Há a mitologia grega, a mais rica de todas; há a mitologia da Índia; há a mitologia dos povos nórdicos; há até a mitologia do Brasil, na qual vemos o Saci, o Caipora, a Mula-sem-cabeça, a Iara. Mas aquele monstro? Em qual dessas mitologias figurava? — resolveu perguntar.

— Perdoe a minha indiscrição, senhor monstro, mas eu muito desejava saber a que mitologia o senhor pertence. Poderá tirar-me da duvida?

O monstro parecia um poço de estupidez. Não entendia coisa nenhuma e muito menos o que quisesse dizer “mitologia.” Olhou para o Visconde com os seis olhos ao mesmo tempo, com ar de galinha que olha para a gente.

— Sim — continuou o Visconde. — Desejo saber se o senhor é grego, hindu ou nórdico.

O monstro continuava galinha.

— Onde nasceu? Na Grécia?

Os seis olhos do monstro brilharam. Havia afinal compreendido qualquer coisa. E uma voz rouquenta saiu de sua cabeça de cabra.

— Sou da Lícia.

O “sabinho” franziu a testa. “Lícia?” Deu busca à memória; vagamente recordou-se dum reino da Lícia que existiu antigamente na Ásia Menor.

— Hum — exclamou. — Sei, sei, a Lícia… E seu nome como é, senhor monstro?

— Quimera.

Os olhinhos do Visconde cintilaram.

— Ora viva! Lembro-me perfeitamente. A Quimera, sim, o monstro que o herói Belerofonte venceu em combate. Mas pelo que sei esse monstro vomitava fogo pela boca das três cabeças. Nós também temos por aqui qualquer coisa desse gênero — a Mula-sem-cabeça que vomita fogo pelas ventas. Muito curioso, não? Sem cabeça e com ventas! Que maravilha é esse mundo das maravilhas! Mas, diga-me Senhora Quimera, ainda sai fogo das suas três goelas ou não?

O monstro, como resposta, espremeu-se, e das três bocarras saiu uma fumacinha à-toa.

O Visconde refletiu consigo que estava diante dum monstro muito velho, de milhares de anos e já extinto — como os vulcões que apenas fumegam. Examinando-o melhor, confirmou-se nessa ideia. O bicho apresentava todos os sinais duma tremenda velhice: pelo escasso e branco, rugas, olhos lacrimosos e tremores nas pernas. Parecia o papagaio caduco do tio Barnabé, que tinha cem anos e só dez penas no corpo enrugado. Sim, ele estava diante da terrível Quimera que fora o pavor da antiguidade — mas já inofensiva, sem dentes, sem fogo, sem pelos — caduca. E o Visconde sentiu um grande dó daquela  decadência. Coitada!

Quando lhe pediu fogo, ela, com o maior esforço, só pôde dar fumacinhas…

— É curioso esse fenômeno de sair fumaça das suas entranhas — disse ele. — Parece contrário a todas as leis da fisiologia.

— Que é fisiologia? — perguntou a Quimera. — A rainha deste reino?

O Visconde riu-se com superioridade de sábio.

— Fisiologia é a ciência que estuda o funcionamento do corpo dos animais.

— Mas eu não sou animal — disse a Quimera — apesar de minha aparência de leão, cabra e serpente.

— Que é então?

— Sou uma fábula grega, como você me parece uma fábula moderna.

O Visconde ficou admiradíssimo da resposta. A Quimera não estava tão caduca como ele pensou. Raciocinava e muito bem. O interesse dela, entretanto, resumia-se em saber quem mandava naquele reino.

— Quem é o rei ou rainha daqui? — perguntou.

— Não há disso por cá. Somos uma democracia. Há Dona Benta, que é a Tesoureira, ou a Dona. Há dois príncipes herdeiros: Narizinho e Pedrinho. Há a Lambeta-Mor, que é uma tal Marquesa de Rabicó. Há o Ministro da Defesa Nacional, que é o Marechal Quindim. Há a Provedora Mor das Comidas, que é tia Nastácia. Há o Sábio dos Sábios, que é o ilustríssimo Senhor Visconde de Sabugosa …

Pobre Visconde! A dor do pé destroncado o ia levando ao delírio dos febrentos. Falava de modo que a Quimera nada podia entender.

— E que está fazendo aqui? — perguntou esta.

— Estou pagando os meus pecados, senhora. Fui vítima dum litígio arbóreo e joanesco — o choque do Polegar com os joões.

— Litígio? — repetiu a Quimera .— Que quer dizer litígio?

— Um conflito de direito — o choque de dois direitos, um direito-torto e um direito-direito. Polegar julgou-se com o direito-torto de ocupar a casa dos dois joões; os dois joões estavam no direito-direito de resistir. Começou a luta — bicadas de lá, botadas de cá. Vai então o príncipe herdeiro me manda subir à árvore como o anjo da paz. Quem se mete entre dois litigantes acaba apanhando. Foi o que me sucedeu. Apanhei botada pelas ventas. Perdi o prumo. A força da gravidade atraiu-me para o centro da terra, isto é, fez-me cair. O tornozelo esquerdo não aguentou o choque — saiu do lugar. Apareceu então uma célebre peste chamada Dor — e a Dor está doendo. É isso…

A Quimera estava com as três bocas abertas, sem entender coisa nenhuma. O Visconde resumiu o caso numa sentença: “Foi o Polegar que me derrubou lá de cima do pau.”

— E quem é esse Polegar?

— Um garoto que vem da Idade Média e anda nos livros de Andersen, Perrault e Grimm. Dona Benta caiu na asneira de mudar para cá o tal Mundo da Fábula — e a primeira consequência foi esta: o meu pé destroncado.

— Por que não se recolhe à sua casa?

— De que modo? Como poderei andar, com este pé assim? Narizinho, Pedrinho e Emília estão longe, escondidos nalgum daqueles castelos. Quem me há de levar ao sítio?

— Eu. Eu o levo — e com o maior prazer.

Apesar da dor que sentia, o Visconde riu-se à ideia de aparecer no terreiro de Dona Benta montado na Quimera! O espanto de tia Nastácia!…

— Pois aceito — disse ele — e semelhante ato de caridade não ficará sem recompensa.

Nesse momento soou na galharia do Cedro Grande um barulho. Oito olhos ergueram-se para lá — os seis da Quimera e os dois do Visconde. O casal de João-de-barro havia voltado e reiniciado o ataque ao intruso que lhes invadira a casinha.

Polegar, sem as botas, não tinha com que defender-se. Foi obrigado a sair do ninho. Assim que o pilharam fora, as duas enfurecidas aves deram-lhe tal surra de bicanca, que ele fez como o Visconde: perdeu o equilíbrio e caiu — plaf! no chão. E quebrou a perna — ai, ai, ai!

Gemia, gemia…

— Ai, ai, ai Que vai ser de mim agora, sem botas e de perna quebrada?

O Visconde procurou acalmá-lo.

— Tudo se há de arranjar, amigo. Aqui a Senhora Quimera nos vai levar ao sítio de Dona Benta.

Só então Polegar deu com o monstro de três cabeças. Que susto! Seu coraçãozinho pulou. O sangue fugiu-lhe das faces.

— Não tenha medo — disse o Visconde. — A madama aqui é velha, mansíssima, e de tão boa paz como o Quindim. Vai levar-nos montados em seu lombo.

Polegar foi sossegando.

Há coisas fáceis de dizer e bem duras de fazer. Custa muito aos dois estropiados colocarem-se sobre o lombo da Quimera — mas a Necessidade sabe operar prodígios. Montaram, afinal, e lá foram. Chegados à cerca, o monstro parou.

— Como atravessar estes malditos arames espinhentos?

— Pela porteira — respondeu o Visconde. — Tenho a chave aqui no bolso. Sou o chaveiro.

Outra dificuldade. A Quimera não sabia lidar com chaves, de modo que o Visconde gemendo, gemendo, teve de apear para abrir.

O monstro grego ficou assombrado de uma chavinha tão pequena abrir uma porteira tão grande. Evidentemente tratava se de um talismã encantado…

Quando aquela esquisitíssima trempe surgiu no terreiro, tia Nastácia vinha entrando na varanda com duas moringas d’água.

“Credo” — urrou a pobre negra largando tudo no chão — e caiu desmaiada.

 

08 – Branca de Neve e os meninos

Dona Benta estava sentada na sua cadeirinha de pernas curtas, a cerzir meias de Pedrinho. A seu lado, na rede, D. Quixote roncava sorridente, sonhando com a formosa Dulcinéia.

Sancho, lá na copa, farejava o guarda-comida. O grito de tia Nastácia acordou D. Quixote e pôs Sancho de orelha em pé.

— Nossa Senhora! Que será que aconteceu? — murmurou Dona Benta, pondo as meias na cestinha e levantando-se.

Encaminhou-se para a varanda. Lá tropeçou na negra estendida no chão. Agarrou-a, sacudiu-a. — “Nastácia! Nastácia!”

Foi o mesmo que sacudir uma pedra. Nisto voltou os olhos para o terreiro e deu com a Quimera. “Ai!…” O seu susto foi tamanho que também desmaiou.

Don Quixote erguera-se da rede, e depois dum longo bocejo berrou pelo escudeiro.

— Sancho, Sancho, Onde estás, amigo Sancho?

— Aqui, meu amo — respondeu Sancho, emergindo da copa, com a boca cheia de qualquer coisa.

— Dormi uma boa soneca, amigo Sancho. E sonhei lindos sonhos. Quão formosa a Dulcinéia me apareceu!…

— Pois eu realizei belos sonhos — disse o escudeiro com o pensamento nos petiscos encontrados na copa. — Estou aos arrotos…

Lá no castelo de Branca de Neve os meninos ouviam a história da galante princesinha contada por ela mesma.

— Pois é assim — dizia Branca. — A minha perversa madrasta tanto fez que me transformou em princesa. Isto é que se chama atirar no que vê e acertar no que não vê. Os anõezinhos me salvaram. Veio o príncipe e casei-me.

— Tem uma coisa curiosa — disse Emília — a gente sabe toda a vida de vocês princesas, mas nunca sabe nada dos príncipes consortes. Esses príncipes só aparecem no fim das histórias. Casam-se, há uma grande festa e pronto! Até hoje ainda não consegui ver um só desses príncipes-maridos. Onde anda o seu?

— Caçando. É doidinho por caçadas. Só à noite me aparece por aqui, com uma penca de faisões ou perdizes.

— E é feliz com ele? — quis saber Narizinho.

— Muito. Meu marido não me amola. Deixa-me na maior liberdade aqui dentro, com os meus anões. Homem que não sai de casa é a maior das pestes.

— Vovó diz sempre que o lugar do homem é na rua — observou Narizinho.

Nesse momento chegou-lhes um soar de trompas ao longe.

Branca ficou de ouvidos à escuta. Depois disse:

— Lá está ele atrás dos veados! A caçada hoje é de veado…

Narizinho falou a Branca da maravilhosa fita que andava correndo mundo com o título “Branca de Neve e os Sete Anões”, feita pelo famoso Watt Disney.

— Quem é esse Disney?

— Oh, um gênio! — berrou Emília. — O maior gênio moderno — maior que Shakespeare, que Dante, que Homero e todos esses cacetões que a humanidade tanto admira. Faz desenhos animados, mas com uma graça de a gente chorar de gosto. A fita de você, Branca, é o suco dos sucos!

Branca não era do tempo do cinema, de modo que não sabia o que fosse “fita”, nem como pudesse haver desenhos animados.

E por muito que Pedrinho explicasse a grande invenção, ficou na mesma.

— Pois o cinema — continuou Pedrinho — é a única invenção realmente boa que os homens inventaram. É uma invenção só de paz.

— Que quer dizer isso?

— Invenção de paz é a que não se presta para a guerra. As outras, Branca, você nem imagina que calamidade são! Assim que aparecem, como a tal máquina de voar, os homens logo as aproveitam para armas de guerra — para matar gente, para bombardear cidades, etc. Mas o cinema, não. Não há cinema-de-bombardeio, não há cinema-lança-chamas. Só há cinema da gente assistir e regalar-se. Eu, se fosse dono do mundo, proibia qualquer invento que não fosse de paz.

Nesse instante um tropel lá fora atraiu-lhes a atenção.

Correram à sacada. Vinha passando a cavalo um formoso herói grego.

— O herói Belerofonte montado no Pégaso! — exclamou Branca.

— No Pégaso, o tal cavalo de asas?

— Sim. Pégaso desta vez vem no trote, com as asas fechadas.

Que formoso animal…  Percebendo-a na janela, o herói deteve-se e falou, depois de amável cumprimento:

— Formosa princesinha, não poderá informar-me do paradeiro da Quimera?

Antes que Branca abrisse a boca, Emília berrou:

— Não é um monstro de três cabeças, uma de cabra, outra de leão, outra de cobra cascavel? Vimos, sim — e foi de medo dele que corremos para cá.

— E onde o viu, graciosa figurinha?

— Lá no Cedro Grande, aquela árvore enorme que se avista daqui — onde há um ninho de João-de-barro.

Belerofonte olhou na direção indicada, enquanto “a graciosa figurinha” prosseguia, muito espevitadamente:

— Deve estar lá ainda, comendo o Visconde. Vá depressa herói, e, se puder, salve o “sabinho.” Mas que tem o senhor com esse monstro?

— Tenho que ele é meu. Venci-o em combate nos desertos da Lícia e amansei-o. Está muito velho, o coitado, sem dentes, sem pêlos, sem fogo…

— Sem fogo?

— Sim, era um monstro que vomitava fogo pelas bocas das três cabeças.

— Que horror, meu Deus! E não vomita mais?

— Não. Hoje só sai uma fumacinha. Está quase totalmente extinto.

— E por que anda ela cá por estas bandas, a nos assustar?

— Fugiu do cercado em que o tenho no Bairro Grego, que é longe. Caduquices. Vou levá-lo de volta.

O herói deu rédeas a Pégaso, na direção do Cedro Grande.

— Adeus, princesa! Adeus, gentil figurinha. Obrigado pela informação — e partiu no trote.

— Vá voando para nós vermos! — berrou Emília.

O herói achou graça e deu uma ordem a Pégaso. Imediatamente o maravilhoso corcel espichou as asas e voou tal qual um gavião-pato de proporções desmedidas.

— Lindo, lindo! — exclamaram todos, em êxtase.

— Que pena todos os cavalos não terem asas! — lamentou Pedrinho. — Voar montado num Pégaso, lá pelas nuvens, que suco! …

Pégaso baixou lá adiante, desaparecendo-lhes das vistas.

— Maravilha, hein, Branca? — foi o comentário de Narizinho.

— Nem diga! — respondeu a princesinha. Continuaram à janela, na esperança de verem Pégaso reaparecer. Mas não reapareceu. O que apareceu foi um bando de meninos com um mandão na frente.

— Peter Pan, com o pessoal da Terra do Nunca! — exclamaram os quatro numa grande alegria.

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