Monteiro Lobato

O PICAPAU AMARELO

 Capítulos 09, 10, 11 e 12

 

09 – Peter Pan e Capinha Vermelha

Era realmente ele. Depois da mudança para as Terras Novas, Peter Pan andava em grande atividade para arrumar todas as coisas trazidas da Terra do Nunca. A dificuldade maior era a acomodação do Mar dos Piratas. Os mares têm o defeito do tamanho. Muito grandes. O menor ainda é grande em comparação das terras, porque há no globo três quartas partes de mar para uma de terra firme. Como, pois, colocar um mar inteiro ali no sítio de Dona Benta? Peter Pan estava seriamente atrapalhado, cheio de ruguinhas na testa.

Ao defrontar o castelo de Branca, esta chamou-o com o dedo. O menino subiu as escadarias a galope. Vendo lá os netos de Dona Benta, sorriu.

— Que andam fazendo por aqui? — perguntou.

— Somos daqui mesmo — respondeu Pedrinho.

— O sítio de vovó fica para lá da cerca, e estas Terras Novas vovó as comprou para a instalação definitiva do Mundo das Fábulas. Todos os personagens maravilhosos começam a mudar-se para cá — até os gregos. Inda há pouco demos de cara com a Quimera — e abrimos no pé…

Peter Pan, menino moderno, nada sabia dos monstros gregos, nem se interessava por eles.

— Se é coisa grega, eu “passo”, disse. Só cuido dos meus Meninos Perdidos e mais coisas da Terra do Nunca — mas estou atrapalhado com o Mar dos Piratas. Não cabe aqui…

— Cabe, sim! — berrou Emília, encantada à ideia de ter ali perto todo um mar, com piratas e sereias e prainha de banho. Se não couber inteiro, você coloca apenas uma parte. Desde que haja o bastante para a “Hiena dos Mares” e as sereias, para que mais? Mar muito grande até enjoa, como aquele que o Fernão levou um ano a atravessar.

— Que Fernão?

— O Fernão de Magalhães, não conhece? O que deu a volta ao mundo.

Peter Pan, cru em geografia, ficou na mesma; mas aprovou a ideia de botar lá apenas um pedaço do Mar dos Piratas. Deu mais uns dedos de prosa e, depois de papar umas “cocadas de fita” que Branca  trouxera, despediu-se com um coricocó — indo juntar-se aos Meninos Perdidos lá fora. Emília, da sacada, ainda lhe perguntou se o Capitão Gancho também tinha vindo.

— Claro que sim — respondeu Peter. — Ele e o crocodilo, e o despertador na barriga do crocodilo — tudo veio …

— Que coisa curiosa! — disse Narizinho. — No Mundo da Fábula ninguém morre duma vez. Peter já venceu esse Gancho e o fez afogar-se no mar e ser engolido pelo jacaré — e depois disso o Capitão já nos apareceu lá em casa e agora vai aparecer novamente aqui…

— Se não fosse assim — explicou Branca — isto não seria nenhum País das Maravilhas. O maravilhoso está justamente nisso …

— Foi também o que aconteceu para o lobo que devorou a avó de Capinha. Morreu a machadadas, e no entanto, continua a viver e a farejar avós — como naquele dia lá no sítio.

Por falar em Capinha — já se encontrou com ela, Branca? — quis saber a menina.

— Inda não, mas não tarda aí. Já avisou que vem visitar-me.

Nem bem disse isso, e um toque, toque na porta chamou lhe a atenção. Era Capinha.

— Capinha! — exclamaram todos na maior alegria, vendo surgir a encantadora criança com uma cesta de flores na mão.

Nunca houve tantos abraços e beijos.

— Que coincidência! — exclamou Narizinho. — Estávamos justamente falando em você. Já arrumou sua casa?

— Está quase pronta — respondeu a galanteza. — É pequenininha. Este castelo de Branca, enorme, é que deve ter dado um trabalhão. Como vão indo lá no sítio? Que fim levou a preta dos bolos do céu?

— Cada vez mais boleira — respondeu Emília.

— E o Visconde?

— Esse, coitado, deve estar dormindo o último sono no papo da Quimera. Caiu do Cedro Grande. A bicha veio e nhoque!

Capinha ignorava que coisa fosse a Quimera. — Alguma vaca? — perguntou.

Ao saber do monstro de três cabeças, arrepiou se toda.

— Que horror! Minha vida era fugir do lobo — agora tenho de fugir da Quimera também…

Branca de Neve sossegou-a. Com os anões ali, não havia perigo nenhum. Eles eram “emilianos” — davam jeitos para tudo.

Depois de visitarem o castelo inteiro, Pedrinho, Narizinho e Emília despediram-se.

— Estamos com pressa. Temos de ver o que realmente aconteceu ao Visconde. Adeus, adeus!…

Saíram. Correram os olhos pelas redondezas. Não havia sinal da Quimera. Isso animou-os a chegar ao Cedro, sempre com a esperança de encontrar o Visconde, Mas não encontraram o menor sinal do “sabinho” — só encontraram o herói Belerofonte, sentado na raiz da árvore, enquanto Pégaso pastava a pequena distância.

— Então, herói, nada?

— Nada. Nem Quimera, nem Visconde.

Pedrinho fez um estudo de detetive nos rastos que havia pelo chão. Com surpresa notou que a Quimera tinha se encaminhado na direção da porteira. Foram todos até lá. Porteira aberta! O monstro havia penetrado no sítio de Dona Benta!

— Homessa! — exclamou Emília. — Se o monstro, passou pela porteira, então o Visconde veio com ele, pois estava com a chave no bolso. Logo, a Quimera não comeu o Visconde. Errei.

Mais uns passos e viram, lá longe, no terreiro, o horrível monstro calmamente conversando com o Quindim e o Burro Falante.

Assim que a Quimera deu com o herói, murchou as quatro orelhas e baixou as três cabeças. Fora pilhada!

— Coitada! — disse Belerofonte. — Está caducando. Já não sabe o que faz… — e dirigiu-se para a Quimera, enquanto os meninos corriam para a varanda.

— Vovó caída sem sentidos! — gritou Narizinho lançando-se sobre o corpo inanimado de Dona Benta. — E tia Nastácia também! — gritou Emília.

No maior dos desesperos, Narizinho e Pedrinho levantaram a cabeça da querida vovó, enquanto Emília fazia, o mesmo à tia Nastácia.

— Água! Água! Tragam água para acordar vovó!

Sancho, lá dentro, de conversa com Don Quixote, ouviu o grito e correu com um jarro d’água na mão. Mas Don Quixote também veio e estragou tudo. Ao surgir na varanda, deu imediatamente com a Quimera no terreiro e berrou:

— Ei-lo de novo, o infame Freston, transformado em bicho de três cabeças, a desafiar-me! Aceito a luta. Sancho, Sancho, traze-me depressa o meu corcel de mil batalhas — e a lança e o escudo!

Inutilmente Emília tentou explicar-lhe que a Quimera estava caduca e era tão mansa como o Quindim — e que o dono dela se achava ali presente. Don Quixote não atendia a nada; continuava a berrar pelo escudeiro.

— Sancho, Sancho, depressa! Meu cavalo, meu escudo, minha lança!

O escudeiro saiu correndo em busca do Rocinante, mas com a atrapalhação errou e selou o Conselheiro, trazendo-o pelas rédeas ao amo furioso. Sempre de olhos fitos no monstro, Don Quixote não deu pelo engano — montou no Conselheiro. E enfiando o escudo, e enristando a lança, partiu veloz ao encontro do inimigo.

— Quem é este freguês tão estourado? — perguntou Belerofonte.

— Pois é o famoso Don Quixote de La Mancha, não conhece? Um tremendíssimo herói de cem batalhas, mas de miolo mole. Tem a mania de combater monstros e gigantes imaginários. O fecha vai ser horrível…

Narizinho havia acordado Dona Benta, e Emília feito o mesmo a tia Nastácia, a qual fugira para a cozinha fazendo uma dúzia de pelos-sinais errados. “Credo, credo, credo!”

Era inevitável o choque entre o cavaleiro da Mancha e a Quimera caduca. Quindim, que cada vez compreendia menos o que se passava por ali, recuou uns passos, muito curioso de ver no que daria aquilo. Um homem de ferro, com uma longa lança em punho, montado no pobre Burro falante, a investir contra um monstro de três cabeças. Só mesmo voltando para as florestas da África, pensou ele.

Mas o que aconteceu foi menos heróico do que cômico. O Conselheiro, com o fidalgo em cima, avançou para a Quimera com muito má vontade, e a dez passos de distância empacou. O herói viu-se atrapalhado. Não conseguia alcançar com a ponta da lança o “infame Freston”, que para ainda mais iludi-lo simulava uma cara muito humilde e triste, como a pedir desculpas. Don Quixote fincava as esporas no Conselheiro sem conseguir que o burro desempacasse.

Só então percebeu que não estava montado no valente Rocinante.

— Infame mágico! — exclamou. — Acaba de fazer-me vítima de mais uma das suas infernais maquinações: transformou o meu valente corcel de mil batalhas num miserável burro de carroça…

— Isso também não! — gritou Emília furiosa. — Dobre a língua. O Conselheiro nunca foi burro de carroça, nem aqui, nem na casa de seu sogro. Fique sabendo que é o primeiro burro do mundo — falante e sábio. Não admito que o tratem desse modo, ouviu, seu Latoeiro?

— Que é isso, Emília? Mais respeito com os hóspedes — ralhou Dona Benta.

O herói Belerofonte resolveu intervir. Correu lá e com muita dificuldade convenceu Don Quixote de que a Quimera lhe pertencia por direito de conquista, visto como a vencera havia séculos, nos tempos heróicos da Grécia. Custou-lhe muito convencer o teimoso fidalgo, mas por fim conseguiu trazê-lo para a varanda.

Don Quixote voltou e caiu na redinha, a assoprar as fumaças da cólera recolhida.

— Acalme-se, acalme-se — dizia Dona Benta. — Aqui todos somos de paz. Também eu me assustei com a Quimera, mas veja como estou sossegadinha…

E voltando-se para a Emília: — Corra lá dentro e diga a tia Nastácia que traga um café bem quente, com bolinhos.

Minutos depois Don Quixote e o herói saboreavam o café bem quente de tia Nastácia — mas café só.

— Que é dos bolinhos? — reclamou Dona Benta.

— Ah, Sinhá, “Seu” Sancho comeu tudo — e mais tudo quanto havia na copa, o pernil de porco, a pamonha de milho verde que fiz para sobremesa. Ele é muito pior que Rabicó, Sinhá…

Dona Benta deu um suspiro puxado.

 

10 – Os dois estropiados

Acalmada a situação, os meninos lembraram se do Visconde e contaram a Dona Benta a tragédia do Cedro Grande.

— Pois é isso, vovó, o coitadinho quebrou-se por dentro. Nós estávamos fazendo a maca para trazê-lo, quando a Quimera surgiu. Foi o tempo de fincar o pé no mundo — e fomos dar no palácio de Branca de Neve. Depois apareceu este senhor herói grego, dono da Quimera, que nos contou que o monstro é manso — caduquíssimo. Voltamos então em procura do Visconde — mas nem sinal.

— Teria sido devorado pela Quimera?

— Foi o que Emília pensou — disse Narizinho — mas acho que não, porque a Quimera atravessou a cerca pela porteira, e como a chave estava com o Visconde, isso é sinal de que ela não comeu o Visconde, porque se o comesse o comeria com chave e tudo. Alem de que a Quimera é carnívora e o Visconde é erva — é comida de herbívoros.

— Mas onde está ele, então?

Ao fazerem essa pergunta, uma vozinha muito conhecida soou no terreiro:

— Estou aqui, o Pequeno Polegar! — Aqui, onde? — berrou Pedrinho.

— No lombo da Quimera. O monstro nos trouxe montados nele, mas não podemos apear porque estamos estropiadíssimos — eu com o pé destroncado, ele com a perninha quebrada.

— Será possível? — exclamou Emília. — Pois Polegar não está no ninho do João-de-barro?

— Esteve — respondeu o Visconde. — Mas os passarinhos o atacaram com a maior fúria, e tanto fizeram que o derrubaram da árvore. O coitadinho caiu de mau jeito e…

— Que horrível tragédia! — exclamaram os meninos correndo na direção do monstro.

Os dois ilustres personagens estavam de fato sobre o lombo da Quimera, agarradinhos. Surgiu uma dificuldade. Como descê-los de lá? Embora soubessem que o monstro já estava mansíssimo, nenhum dos três se animava a aproximar-se. Emília lembrou-se do herói.

— Senhor Fontebelero — gritou ela atrapalhando-se toda — faça o favor de vir tirar estes estropiados de cima da sua Miquera.

O herói foi e tirou-os, trazendo-os na palma da mão para a varanda.

Polegar gemia de dor. Dona Benta examinou-lhe a perna.

— Quebrada, sim, com um ossinho aparecendo. Mas há de sarar. Tia Nastácia tem um remédio ótimo para isto. Numa semana ou duas põe-no bom.

— E se ficar aleijado?

— Pedrinho arruma-lhe um par de muletas de pau de fósforo — disse Dona Benta, e mandou entregar o doentinho à preta.

Depois de num instante consertar o Visconde, tia Nastácia despiu a perninha de Polegar para o exame.

 

11 – Belerofonte conta a sua história

Os meninos não largavam o herói Belerofonte. Era a primeira vez que viam diante de si um herói dos tempos heróicos da Grécia — sim, porque a Grécia teve tempos heróicos antes de ter tempos iguais aos de todos os outros países.

Nesses tempos heróicos tudo lá eram maravilhas — deuses e semideuses, ninfas e faunos pelas florestas, náiades e tritões nas águas, silfos nos ares. O tremendo Hércules andava realizando aqueles prodígios denominados “Os Doze Trabalhos de Hércules”, cada qual mais assombroso.

Ah, a Grécia foi a verdadeira juventude da Imaginação Humana. Depois da Grécia essa imaginação foi ficando adulta e sem graça — lerda. Nunca mais teve o poder de criar maravilhas verdadeiramente maravilhosas. Aquele herói Belerofonte, por exemplo…

— Senhor herói — murmurou Emília plantando-se-lhe na frente — conte-nos um pedaço da sua vida, que deve ser uma beleza …

Era tão formoso o herói que todos não tiravam dele os olhos — até tia Nastácia o espiava lá da copa, de minuto em minuto.

Perto dos gregos antigos, as gentes de hoje parecem verdadeiras corujas.

— Ah, a minha história! — exclamou Belerofonte. — Corre mundo contada por numerosos poetas, entre eles o velho Hesíodo e o grande Homero.

— Este eu sei quem é — disse Pedrinho. — Um cego que andava pelas ruas contando histórias.

— Sim, o maior poeta da antiguidade. Até hoje seus poemas são lidos, admirados e estudados pelos homens.

— A Ilíada e a Odisséia! Vovó já nos falou neles.

— Mas não basta conhecê-los de nome — observou o herói — é preciso lê-los.

— Vovó diz que ainda é cedo — que há uma leitura para cada idade.

— E tem razão. Realmente ainda é cedo para vocês compreenderem Homero — disse o grego.

— Mas conte a sua história, herói — insistiu Emília. — Como foi que venceu e apagou o fogo da Quimera?

Belerofonte sorriu da pergunta e contou.

— Isto é velho como o tempo — disse ele. — Foi na Lícia, um reino que houve na Ásia Menor, governado pelo Rei Iobatos. Sim, na Lícia… — e Belerofonte fez uma pausa, como a recolher velhas recordações. Deu um suspiro e continuou:

— Misteriosamente apareceu na Lícia um terrível monstro que se meteu a fazer espantosos estragos na população: a Quimera. Tinha três cabeças, uma de leão, outra de cabra, outra de serpente. Bastava isso para que já fosse um hediondo monstro; mas não ficava nisso, pois as três cabeças tinham a propriedade de expelir um fogo infernal. Essa circunstância o tornava invencível, pois não permitia que ninguém o atingisse — as línguas de chama torravam os atacantes à distância. E ainda com esse fogo a Quimera incendiava florestas e aldeias. Tão ruins foram ficando as coisas, que o Rei Iobates, no maior dos desânimos, só pensava em fugir de lá antes que aquilo virasse um deserto.

Foi quando cheguei. Eu estava em pleno apogeu da mocidade, todo ardores e avidez da glória. Naquele tempo os moços só podiam  distinguir-se realizando feitos heróicos. Era no período em que tínhamos no grande Hércules o modelo supremo.

Equiparar-se a Hércules constituía o sonho de todos os jovens gregos.

— E o senhor tinha ido à Lícia justamente para procurar aventuras, não é? — perguntou Narizinho.

— Sim, fora esse o objetivo da minha viagem. Saí de casa para correr mundo e realizar façanhas.

— Tal qual o senhor Don Quixote — lembrou Emília. — Ele também varejava a Espanha atrás de aventuras — mas apanhou demais, o coitado. Cada sova…

Todos volveram os olhos para o Cavaleiro da Mancha, que por felicidade não ouvira a inconveniente observação.

Belerofonte continuou:

— Logo que o Rei Iobates teve notícia da minha chegada, lembrou-se da Quimera. “Quem sabe se esse moço é capaz de destruir o flagelo que está arruinando o meu reino?” Mandou me chamar e expôs a situação.

— “Por que não tentas a gloriosa empresa?” — disse-me por fim.

Aceitei a luta.

— “Real senhor” — respondi — “o vosso convite me fala à ambição. Vou dedicar minha vida inteira ao combate ao monstro”.

Saí. Informei-me de tudo quanto corria na boca do povo a respeito da Quimera — os lugares que frequentava, a caverna em que morava, seus hábitos e suas inclinações. Percebi logo a rematada loucura que seria contar apenas com as minhas armas comuns, a espada e a lança.

— Que falta fazia naquele tempo uma boa Mauser! — exclamou Pedrinho. — Hoje não há mais desses monstros porque com uma bala dundum qualquer caçador dá cabo deles.

O príncipe, que não sabia o que fosse Mauser, não entendeu e continuou:

— Eu tinha de aliar-me a um cavalo — mas a um cavalo excepcional, que possuísse dons fora do comum.

— Como o Bucéfalo de Alexandre — lembrou Narizínho.

O príncipe também não entendeu, porque Bucéfalo não era cavalo do tempo dele. E continuou:

— Mas onde, esse cavalo? Pondo-me a indagar, encontrei no povo a tradição dum corcel de asas, de nome Pégaso. Seria lenda ou realidade? Consultei muita gente, sem conseguir informes seguros. Uns diziam ter visto nas nuvens, muitíssimo alto, um corcel de deslumbrante alvura; outros afirmavam que era ilusão — que o tal corcel não passava de garça ou outra ave qualquer. Certeza ninguém me deu.

Certo dia, na peregrinação em que eu andava em demanda de notícias de Pégaso, fui ter a uma fonte famosa, cujas águas cristalinas fluíam entre pedras num campo de extrema beleza. Tinham me contado que, de longe em longe, naquelas águas se refletia a imagem de Pégaso lá pelas nuvens. Era uma fonte maravilhosa. Por uma questão de ciúmes, a deusa Diana havia matado com suas flechas o filho duma formosa mulher de nome Pirene, a qual de tanto chorar se derretera e se transformara nessa fonte.

Encontrei lá um velho, uma jovem camponesa e um menino. Pedi informações aos três. O velho riu-se da minha pergunta; a jovem  camponesa disse que podia ser que sim, podia ser que não; já o menino afirmou com a maior segurança ter visto a imagem de Pégaso refletida na água da fonte. Suas palavras encheram-me de esperança, porque dou mais fé a um menino do que a um moço ou a um velho.

Pedrinho e Narizinho remexeram-se de gosto com aquela derrota dos adultos.

— “E como era a imagem que viste na fonte?” — perguntei ao menino.

— “Oh” — respondeu ele — “era uma coisa linda, que até me doeu nos olhos, de tanta alvura. Mas foi visão rápida. O cavalo de asas saía duma nuvem e entrava em outra. Enxerguei-o só por um instantinho.”

— “E não olhaste para cima?”

— “Não tive coragem…”

Acreditei em suas palavras e deixei-me ficar por ali muitos dias, na esperança de também ver a imagem de Pégaso na fonte. Diariamente passava horas e horas mirando o espelho das águas.

— E viu, afinal! — adivinhou Emília.

— Sim, vi. Um dia vi — e deslumbrei-me! Era o espetáculo mais maravilhoso que a imaginação humana possa conceber. Extasiei-me. Mas nesse dia Pégaso não passou duma nuvem para outra. Começou a dar voltas em espiral. Vi que vinha descendo…

Eu levava comigo um freio mágico, de ouro; se conseguisse aproximar-me de Pégaso e lançar-lhe esse freio, instantaneamente o transformaria no mais manso e dócil corcel do mundo. E como vinha descendo para beber naquela fonte, senti que a minha grande ocasião era chegada. Ocultei-me na moita próxima e esperei.

— E ele foi e “sentou!” — disse Emília batendo palmas.

— Sim — pousou a vinte passos distantes da moita. Pousou e fechou as asas cor de neve. Aproximou-se da fonte na qual bebeu regaladamente. Em seguida pastou umas flores do campo e deitou se de pernas para o ar.

— Isso é espojar-se — explicou Pedrinho. — O Conselheiro faz sempre.

— Sim, espojou-se com delícias, como qualquer cavalo comum. Eu, perto, aguardava o momento oportuno para o bote. De repente, zás! criei coragem e saltei-lhe sobre o lombo. Oh, o espanto de Pégaso e o salto que deu! Senti-me arremessado às alturas. Pégaso corcoveava como um demônio. Agarrei-me com toda a força ao encontro de suas enormes asas e tive a felicidade de não cair. Pégaso, que jamais fora montado por ninguém, não podia compreender o que se passava — aquele estranho peso em seu lombo — um homem bifurcado nele e pinoteou e corcoveou, fez o que pôde para agarrar-me com os dentes. Depois desceu ao campo e experimentou novos pinotes em terra — corcovos, empínamentos. Eu, firme!

— Isso é que é ser peão! — berrou Pedrinho. — Se fosse aquele Chico Macota, do Coronel Teodorico, já havia se esborrachado cem vezes. O homem é só prosa e pinga…

Belerofonte prosseguiu:

— Em dado momento Pégaso parou um instantinho para pensar. Curvei-me então sobre o seu pescoço e lancei o freio.

Pronto! Instantaneamente o cavalo se transformou num cordeiro de mansidão.

— Só porque pensou — disse Emília. — É um perigo!

Nastácia conta a história de um burrinho que morreu de tanto pensar.

Belerofonte lançou à boneca um olhar desconfiado e prosseguiu:

— Bem. Metade da minha empresa estava realizada. Tinha de cuidar da outra metade: a luta contra a Quimera. Dei rédeas a Pégaso e subi a grande altura. De lá olhei o mundo que tinha a meus pés, para nortear-me — e lancei-me na direção do reino da Lícia. Como Pégaso fosse baixando, breve pude distinguir um trato de terras pedregoso, árido, sem vegetação, onde havia um grande amontoamento de rochas. “Deve ser ali a caverna do monstro” — pensei comigo. E era.

Fiz Pégaso pousar bem defronte à sombria boca da caverna. Olhei. Lá estava a Quimera dormindo! Mas dormindo ao modo dos bichos de três cabeças: enquanto duas dormem, a terceira vela.

— Qual a cabeça que velava? — perguntou Pedrinho.

— A de serpente. Mas assim que me viu acordou as outras.

— De que modo? — quis saber a Emília. — Com um grito ou uma cotovelada?

Narizinho cutucou-a:

— Onde você já viu cotovelo em cabeça de cobra, Emília?

— Numa terra de bichos de três cabeças, bem que pode haver cotovelos, e até tornozelos, na cabeça das cobras.

Dona Benta deu uma risadinha filosófica.

Belerofonte continuou:

— Assim que as outras cabeças acordaram, o monstro voltou-se na minha direção, e das três horrendas goelas saiu um jacto de chamas que por um triz não nos torrou. Mesmo assim algumas penas de Pégaso ficaram chamuscadas. Mas que animal ligeiro! Dum arranco pôs-se fora do alcance do jacto.

— Com certeza foi daí que os alemães tiraram a ideia daqueles lança-chamas que usam na guerra — observou Pedrinho.

— Pôs-se fora do alcance das chamas — repetiu Belerofonte — e numa fulminante manobra de flanco aproximou-se de Quimera, o  necessário para que eu pudesse atingi-la com a ponta da espada. Atirei um golpe certeiro, que decepou a carótida do pescoço da cabeça de leão.

Pedrinho mostrou em si qual era a veia carótida, que nos degolamentos os degoladores cortam.

— Esguichou um sangue negro — prosseguiu o herói — e a horrenda cabeça descaiu, pendurada pelas muxibas do cangote, enquanto Pégaso se afastava com a velocidade do raio. Outro esguicho de fogo saiu das cabeças restantes, e novamente as asas de Pégaso foram chamuscadas. Isso porque, apesar da rapidez do seu recuo, as chamas tinham avançado a maior distância do que da primeira vez. O fogo interno que já não podia sair pela cabeça cortada viera somar-se ao fogo das outras duas. O jacto, portanto, foi duas vezes mais violento que o primeiro.

— Devia ser só um terço mais violento — corrigiu o Visconde, sempre afiado em matemáticas.

Belerofonte arregalou os olhos, e já ia abrindo a boca para sustentar que era o dobro quando Don Quixote interveio:

— Paciência, grego, o Visconde está certo. Continue.

Belerofonte, um tanto desapontado continuou :

— Pégaso repetiu a manobra e pude cortar a carótida da segunda cabeça — a de cabra. E por fim cortei a última — a de serpente.

— Está claro que a última era a de serpente — observou Don Quixote, que estava começando a implicar-se com o grego.

— Isso não! — protestou Emília. — Naquela barafunda, ele podia ter errado o golpe e cortado a cabeça de Pégaso.

O herói agradeceu-lhe a respostinha e terminou a história:

— Estava conclusa a minha tarefa. Eu havia destruído o monstro assolador do reino da Lícia.

— Bravos! — gritou Emília batendo palmas. — Só quero agora que me explique como é que o monstro está aqui mais vivo do que nunca.

Belerofonte explicou:

— É que eu não tinha intenção de destruí-lo totalmente — bastava inutilizá-lo. De modo que me apeei e dei uns pontos nas carótidas cortadas, isso depois de ter-lhe aberto o papo e extraído de dentro a glândula da maldade. A Quimera sarou das cortaduras, ficando essa mansidão que todos sabem.

— Bem diz vovó que é nas glândulas que estão todos os segredos do nosso corpo — lembrou Pedrinho. — Cada glândula serve para uma coisa; governa uma coisa. Existe, por exemplo, uma tal glândula tireóide que governa o crescimento dos animais. Se ela funciona com muita força, sai um gigante; se ela cochila, sai um anão.

— Mas será que os gregos daquele tempo já sabiam disso? — duvidou Narizinho.

Dona Benta respondeu:

— Os gregos, minha filha, sabiam por palpite todas as coisas que os modernos sabem por experiência; isto é, sabiam sem certeza — adivinhavam. Foram os adivinhadores do mundo. As nossas certezas modernas baseiam-se na experiência. As certezas dos gregos  baseavam-se na intuição, isto é, numa espécie de adivinhação. Não há teoria moderna que não esteja esboçada na obra dum antigo sábio grego.

— Assim é, minha senhora — confirmou Belerofonte, admirado da sabedoria da velhinha. — Eu abri o papo da Quimera e vendo lá a glândula cortei-a sem saber o que fazia. Mas qualquer coisa me cochichava que era ali a sede da maldade do monstro. E era.

— E que prêmio recebeu do tal Iobatos? — perguntou Emília.

Belerofonte ia abrindo a boca para responder, quando um tumulto no terreiro o atrapalhou. Um coricocó havia soado.

— Peter Pan! — exclamaram os meninos no maior assanhamento — e saíram correndo.

 

12 – O mar invade o castelo de Branca

— Que há, Peter? — interpelou Pedrinho, vendo-o de cara assustada.

Peter Pan nem podia falar, da carreira que dera até ali. Tomou dez fôlegos antes de responder.

— Uma desgraça, Pedrinho — disse por fim. — imagine que eu estava arrumando nas Terras Novas o Mar dos Piratas (um pedaço só), quando desmoronou um morro e a água foi alcançar o castelo de Branca de Neve, inundando tudo. Só ficou de fora a torre mais alta. Branca e os sete anões estão lá em cima da torre, tremendo de medo que a água suba mais e os afogue.

A notícia causou profunda consternação. Emília correu em busca do binóculo para espiar o que restava do lindo castelo.

— Felizmente a água parou de subir — disse ela depois do exame. — Mas os “náufragos” não sabem disso e continuam no maior dos desesperos, torcendo as mãos e chorando. Se pudéssemos avisá-los de que a água parou de subir…

Mas avisá-los como? Canoa, não havia ali nenhuma. A única embarcação existente na zona era a “Hiena dos Mares” do Capitão Gancho.

— Não há remédio! — propôs Pedrinho. — Temos de recorrer à “Hiena dos Mares.”

— Parece simples — objetou Peter Pan — mas você esquece que o Capitão Gancho é nosso inimigo, e por coisa nenhuma nos cederia o seu barco. Se fosse para atacar e destruir a torre, ainda vá lá — mas para salvar alguém, isso nunca. Aquele diabo é a pior das biscas.

Ficaram todos atrapalhados por uns momentos, pensando. Súbito Emília bateu na testa.

— Há um jeito: atrair o Capitão Gancho para aqui e prendê-lo na despensa. Depois fantasiamos Sancho de pirata, e Sancho vai lá, e engana a tripulação, e dá ordem ao navio para salvar os náufragos.

Em falta de melhor, a ideia da Emília foi aprovada.

— Antes de tudo, porém — observou Peter Pan — temos de descobrir um jeito de avisar Branca que a água parou de subir, se não ela morre de medo. Não haverá por aqui algum pombo-correio, alguma coisa que voe?

— Há o galo carijó — murmurou Pedrinho.

Emília bateu na testa:

— Há o Pégaso! Pégaso! Pégaso!…

Aquela lembrança foi um raio de sol no escuro. Belerofonte correu ao pastinho para dar a ordem ao maravilhoso corcel, o qual no mesmo instante partiu pelos ares como enorme garça alvíssima.

— Que beleza! — exclamou Narizinho — e todos igualmente se extasiaram com o vôo maravilhoso — todos, menos Belerofonte, que já se enjoara de ver aquilo.

Pégaso foi e deu o recado. Ah, o suspiro de alívio de Branca de Neve! A sua alegria ao saber que no sítio de Dona Benta estavam cuidando de aprontar uma embarcação para salvá-la, e aos anões, e a todos os seus tesouros!

Mas Dunga não concordou.

— Perdão, Branquinha — disse ele — o mais acertado me parece que você vá já para o sítio montada neste cavalo. Nós ficaremos à espera do navio.

Os outros anões concordaram imediatamente. Branca resistiu; não queria separar-se deles; mas afinal teve de ceder. Montou no Pégaso e lá se foi. Quando o cavalo de asas “sentou” no terreiro e a criançada viu em cima dele a adorada princesinha, foi um clamor.

— Viva, viva!…

Branca saltou, ainda tonta da viagem aérea, e correu para o colo de Dona Benta.

— Ah, que susto, “vovó”! Quando as águas começaram a invadir as nossas terras e o Dunga, na maior das aflições, me veio avisar…

— O Dunga? — espantou-se Emília. — Mas ele não é mudo?

— Foi mudo, minha cara. O pavor fê-lo recuperar a voz. Eu fiquei de pernas moles quando vi o coitadinho aproximar-se, de olhos arregaladíssimos, berrando: “O mar vem vindo e engolindo todas as terras!” Foi ele o primeiro a observar o fenômeno. Avisou-me e avisou os demais. Imediatamente todos se puseram a carregar os nossos sacos de diamantes, dos porões para o alto da torre. E ficamos reunidos la, morrrendo de medo, até que um vulto branco apareceu no céu. Vinha vindo, vinha vindo. Chegou. Era Pégaso. Uff! Que alívio. Quem teve a abençoada ideia de me mandar o cavalo de asas?

— Fui eu! — berrou Emília radiante.

Mas Dona Benta contestou.

— Não, Branca, o seu verdadeiro salvador foi Peter Pan. Se ele não houvesse aparecido aqui com a notícia da inundação, ninguém se lembraria do cavalo de asas.

— Mas fui eu que me lembrei de Pégaso para levar o recado — insistiu Emília. Pedrinho só pensou no galo carijó.

— Grande coisa! — exclamou Pedrinho. — Fatalmente tínhamos de lembrar de Pégaso, já que era o único ente de asas que havia por aqui. Todos iam lembrar—se dele, até a Quimera. Se você berrou o nome dele antes dos outros, foi simplesmente porque é a Lambeta-Mor, como diz o Visconde.

— Nada de encrencas! — exclamou Dona Benta. — Podemos repartir a “abençoada ideia” entre o Peter Pan e a Emília.

Peter Pan, que era orgulhozinho, desistiu da sua parte.

— Muito obrigado. Cedo a minha metade à Senhora Marquesa, já que faz tanto caso de gloríolas. Poderá guardá-la no seu museuzinho, junto com o pé de frango de seis dedos…

Emília não gostou da piada.

Findo o incidente, puseram-se a discutir o meio de prender na despensa o Capitão Gancho. Cada qual apresentava um protejo, que por esta ou aquela razão era logo repelido. Estavam nesse debate, quando tia Nastácia entrou com o café.

— Ué, Sinhá! Então está de neta nova? — disse ao ver Branca no colo de Dona Benta.

Depois, ao inteirar-se do caso em discussão, a boa negra deu uma risada gostosa.

— Tão simples, Sinhá! Pois basta que “Seu” Pedrinho convide o tal Gancho para um café com mistura. Juro que ele vem ventando.

Todos admiraram-se da simplicidade da ideia, que parecia um ovo de Colombo. Quem sabe? Café com mistura ninguém rejeita. Quem sabe?…

— Aprovo a ideia — disse Pedrinho — e podemos mandar o convite pelo Visconde. Que é do Visconde? Visconde!

VISCONDE!… VISCONDE!…

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