Monteiro Lobato

O PICAPAU AMARELO

 Capítulos 21, 22, e 23

  

21 – O cruzeiro

O “Beija-Flor das Ondas” ancorou rente ao cais do palácio e o Visconde mandou dizer ao Príncipe Codadade que Branca, Dona Benta, e os meninos estavam à espera de sua visita. Codadade preparou-se e foi.

A recepção correu muito cordial. Em certo ponto Pedrinho disse-lhe:

— Lembra-se, Príncipe, daquela vez em que esteve lá no sítio e fomos aventurar pelos campos, com o Aladino da lâmpada maravilhosa? Nunca mais me esqueci desse dia. E por falar: que fim levou Aladino?

— Está aqui, sim. Todos nós das “Mil e Uma Noites” já nos mudamos.

E apontou para os palácios em estilo árabe que se viam ao longe.

— Olhe, lá está a residência da Xarazada, a contadeira de histórias. E à esquerda, a caverna de Ali Babá e os quarenta ladrões. O palácio de Aladino fica à direita, atrás do morro.

Pedrinho estava sequiosíssimo por encontrar-se com Aladino, para novas experiências com a lâmpada.

Ao ser apresentado a Branca de Neve, o Príncipe não deu nenhum sinal de amor instantâneo. E vice-versa: o coração de Branca de Neve não palpitou pelo Príncipe.

— Mau, mau, mau! — murmurou o Dunga para a Emília. — O coração destes príncipes não bate um pelo outro.

Emília teve uma ideia luminosa.

— Escute, Dunguinha. Quem governa o amor eu sei quem é: um tal Cupido que mora no bairro dos gregos. Ele usa umas flechinhas infalíveis. Coração espetado é coração assanhado. Podemos trazer Cupido para flechar o coração de Branca e Codadade…

Dunga achou a coisa possível, e como justamente no fim das terras das “Mil e Uma Noites” ficava a zona dos deuses e heróis gregos, era fácil chegar até lá para um entendimento com o deusinho do Amor.

O iate estava se preparando para o cruzeiro, Tia Nastácia tomou conta da cozinha e entupiu de comedorias a despensa: linguiças, milho de pipoca, cocos, salames, biscoitos, latas de sardinha — e várias centenas de limões galegos.

— Sinhá diz que limão é bom contra uma tal doença de navio chamada “escrubuto” — explicou ela, estropiando a palavra escorbuto.

Tudo pronto, o iate partiu, com as velas bojudas de vento, rumo à zona dos gregos. Emília andava com a cabeça tonta com a Grécia, depois da história do herói Belerofonte. Vivia pedindo a Dona Benta que contasse coisas gregas — façanhas de Aquiles na Guerra de Tróia; as proezas de Éolo o governador dos ventos; a vida dos Ciclopes, gigantões de um só olho no meio da testa; e a do famoso Hércules, o semideus que matou o terrível leão da Neméia e tantas coisas tremendas fez. E agora estava empenhadíssima em encontrar o deusinho do amor, para resolver o caso de Branca de Neve e Codadade.

Emília ia sentadinha num rolo de cordas, na proa do navio, com os olhos na esteira de espuma. Sua atenção era atraída ora por um peixe voador, ora por um tubarão. Súbito, deu um grito:

— Imagine o que estou vendo: o crocodilo do Capitão Gancho! Ele reconheceu neste iate a velha “Hiena” e vem vindo atrás, na esperança de comer o “resto…”

Esta história do “resto” é a seguinte. Esse crocodilo era o maior perseguidor do Capitão Gancho, ao qual certo dia conseguiu comer o braço direito, obrigando-o daí por diante a usar, em vez de mão, aquele horrível gancho de ferro. Mas o crocodilo comeu-lhe o braço e gostou — gostou tanto que nunca mais desistiu de comer o “resto” do braço — isto é, o Capitão Gancho inteirinho. Daí a sua mania de acompanhar a “Hiena dos Mares” na esperança de que o Capitão Gancho lhe viesse ter ao papo.

Assim que Emília denunciou a presença do crocodilo, todos correram para ver. O enorme sáurio vinha nadando atrás do “Beija-Flor”, de boca aberta, muito vermelha e cheia de dentes.

— O que atrapalha — disse Pedrinho — é o despertador que ele tem no estômago. Várias vezes já esteve quase pegando o capitão — mas o despertador faz tlim-lim-lim e o pirata ouve e bota-se.

— Está aí uma coisa que me espanta — disse Narizinho. — A corda desse despertador já devia ter acabado há muito tempo.

— Devia, se fosse no “mundo normal” — explicou Emília. — Aqui no mundo fabuloso nada acaba — nem corda de despertador!

— Só se é isso…

Nastácia jogou ao crocodilo uma galinha que havia morrido no jacá. O sáurio engoliu-a com um “nhoque!” como se fosse uma simples pílula.

Dona Benta gostava de contar aos meninos coisas interessantes do mundo maravilhoso dos gregos.

— A Grécia povoou o mundo de deuses, semideuses, heróis, monstros, gigantes, ninfas, sátiros, faunos, náiades e mil coisas mais — tudo lindo, lindo… Agora vamos lá apenas para um breve passeio — mas havemos de voltar para uma estada longa. Ah, como vocês hão de apreciar a Grécia!…

O que Dona Benta contou foi o suficiente para assanhar os meninos. Emília só falava em morar lá toda a vida; Pedrinho fazia mil projetos; e Narizinho declarou que já de muito tempo seus sonhos eram só sobre a Grécia.

— Pois muito bem — declarou Dona Benta. — Nossa próxima viagem de aventuras será pela Grécia — e dará um livro.

— Que lindo livro vai ser! — exclamou Emília — VIAGEM DO SÍTIO PELO OCEANO DA IMAGINAÇÃO GREGA.

— Comprido demais, Emília. Os títulos devem ser curtos, se não ninguém decora. Veja: OS LUSÍADAS, A ILÍADA, A ODISSEIA, O INFERNO, A ENEIDA…

— Então fica sendo a EMILEIDA, propôs a diabinha — mas ninguém concordou por ser desaforo: a viagem não era só dela, era de todos.

— Pois então que seja A SITIEIDA…

— E por que não A ASNEIREIDA? — lembrou Narizinho.

Emília pôs-lhe a língua.

O iate já estava chegando. Pelo binóculo puderam ver várias maravilhas: as ninfas dos bosques, perseguidas pelos faunos tocadores de flauta; centauros belíssimos, metade do corpo homem, metade cavalo, em doidos galopes pelos campos; lá longe, o Minotauro, monstro meio homem, meio touro, metido dentro do labirinto; e a terrível Esfinge que devastava a cidade de Tebas e só sossegou quando lhe decifraram o enigma; e bem no alto duma montanha, o tal Prometeu amarrado à rocha e devorado vivo por um abutre…

— Quantas belezas, vovó! — exclamou Narizinho. — Lá, sim, vale a pena aventurar…

Emília, ao binóculo, ia espiando o que se passava ao longe. De repente, urrou:

— Don Quixote! Lá está ele — lá, lá, lá — atacando um monstro!…

Dona Benta olhou e viu que era verdade. O herói da Mancha invadira o bairro grego e estava em luta com a Hidra de Lerna!

— Que homem perigoso! — exclamou Dona Benta. — Não tem medo de coisa nenhuma. Olhem que essa hidra é um dos maiores terrores da Grécia…

Enquanto isso o iate encostou a um cais e desceu a âncora. Haviam chegado.

— E agora? — disse Dona Benta. — Descer, não vale a pena, porque como há coisas demais neste mundo grego nós nos arriscaríamos a ficar por aqui a vida toda. O melhor é só vermos o que puder ser visto pelo binóculo.

Todos concordaram, menos Emília, que tanto fez que desceu em terra. Encasquetara na cabecinha encontrar o deus do Amor e havia de encontrá-lo; e tanto fez que o encontrou num bosque, brincando de dar setadas nos passarinhos — para que eles se amassem.

— Que galanteza! — murmurou Emília quando o avistou, de carcás de setas ao ombro e arco em punho. — É tal e qual Flor das Alturas! …

Cupido espantou-se de ver por ali aquela gentinha de outras terras, mas instantes depois já estavam amigos. Sentaram se numa raiz de pau, a conversar.

— Sou a Emília, não sabe? — Lá do sítio…

Cupido não sabia de sítio nenhum; mas ficou sabendo de tudo — e com uma vontade doida de dar um pulo até lá para conhecer os bolinhos de tia Nastácia.

— É longe? — perguntou.

— É e não é. Tudo depende. Mas isso fica para depois. Agora vim a negócios — e contou o caso de Branca de Neve e do Príncipe Codadade.

— Nós queremos que eles se casem; mas no baile que houve os dois se viram com a maior indiferença. Nem um pingo de amor nasceu naqueles corações gelados.

Cupido riu—se.

— Nem podia nascer, boba. O amor só nasce quando eu espeto os corações.

— Sei disso — declarou Emília — e é o que me trás aqui. Quero que você me ceda por algum tempo este arquinho e três flechas.

— Impossível, Emília! Mamãe Vênus proibiu-me de largar o arco nas mãos de quem quer que seja.

— Mas eu tenho cá o bodoque de Pedrinho — disse Emília. — Trocamos o arco pelo bodoque — depois destrocamos. Sua mãe nem percebe.

Cupido examinou o bodoque e achou-o muito feio. Não quis. Emília, porém, insistiu, e tantas cocadas lhe prometeu que a resistência do menino de asas fraqueou.

— Está bem — disse ele. — Aceito a troca, mas só por um dia, veja lá! Amanhã, sem falta, quero o meu arco de volta. Tenho uma serviceira que você nem imagina, Emília. Passo todo o meu tempo flechando as criaturas, porque sem isso o mundo para — por falta de amor. Durante as horas em que o arco estiver com você não vai haver nenhum amor no mundo. Veja que transtorno.

— Isso não! Enquanto o arco estiver comigo, você poderá dar bodocadas de amor…

Cupido examinou de novo o feio bodoque de Pedrinho; não achava aquilo com jeito. Em todo caso quem sabe? Iria experimentar.

Combinado o negócio, Emília tomou três flechas.

— Por que três, se os príncipes são dois?

— É que posso errar uma — respondeu a previdente figurinha.

Despediram-se. Cupido ficou provando o bodoque nuns sabiás-do-campo, enquanto Emília trotava para o iate. Tinha agora de pregar em Dona Benta uma peta de bom tamanho para convencê-la a regressar sem a menor demora.

Entrou no “Beija-Flor” fingindo-se muito assustada e correu para Dona Benta.

— Ah “vovó”, este mundo não dá sossego à gente! Temos de voltar sem perda de um só minuto !…

Dona Benta espantou-se.

— Por que, Emília?

— Imagine que no passeio que dei pelas terras gregas tive a sorte de encontrar a Fênix, aquela ave.

— Sei. A Fênix é uma ave que ressurge das próprias cinzas.

— Isso mesmo. Encontrei a Fênix saindo dum monte de cinzas e dizendo: “Coitado, coitado!” Aproximei-me e perguntei: “Coitado de quem?” Ela respondeu: “Do príncipe”. “De que príncipe?” “Do príncipe que prendeu os atacantes. Eles conseguiram sair da prisão e o pobre príncipe está no maior dos apuros.” Será o príncipe Codadade?” — perguntei — mas o diabo do peru nada respondeu. Ora, quem há de ser esse príncipe se não Codadade? Em vista disso acho que devemos voltar ao palácio sem demora, para salvá-lo…

Dona Benta ficou indecisa; consultou o Visconde; consultou os meninos e também a princesinha. Todos ficaram igualmente indecisos. Por fim resolveram voltar. Se não houvesse nada, muito bem, retomariam o cruzeiro interrompido; mas se houvesse, eles ajudariam o Príncipe a salvar-se.

O iate voltou com a maior rapidez. Felizmente não era verdadeira a suposição feita. Os piratas continuavam muito quietos no calabouço, presos nas suas algemas. Emília, com o maior cinismo do mundo, disse, com arzinho inocente:

— Erramos, Dona Benta, supondo que o tal príncipe mencionado pela Fênix fosse o Codadade. Antes assim… e deu um suspiro.

Dona Benta olhou para ela desconfiada, mas calou-se.

Emília desceu do navio e foi correndo ao palácio do Príncipe. Entrou pé ante pé. Lá estava ele examinando as contas apresentadas pelo seu gordo mordomo Abude. Sempre na ponta dos pés, Emília foi se chegando, com o arco de Cupido em punho.

Ajustou nele uma seta e zás! bem no coração do Príncipe! Imediatamente Codadade afastou de si as contas e, levando as mãos ao peito, murmurou, com os olhos revirados: — “Ai que amor, que amor meu coração está sentindo!…”

— Este peixe está fisgado! — murmurou Emília consigo, afastando-se. — Resta agora a “peixa”… e foi em procura de Branca de Neve.

Encontrou-a suspirando pelo marido afogado. Repetiu a manobra. Aproximou—se na ponta dos pés, ajustou no arco nova seta e zás! bem no coração da Princesa. Imediatamente Branca levou as mãos ao seio e disse, revirando os olhos: — “Ai que amor, que amor meu coração está sentindo!…”

— Pronto! — exclamou Emília. — Basta agora que os dois se avistem.

O encontro do Príncipe Codadade com Branca de Neve não tardou nem um minuto. Viram-se e caíram nos braços um do outro. Era amor de verdade, do bom… do legítimo … desses que não acabam mais…

Ao ver aquilo, o Dunga sorriu e esfregou as mãos. Emília havia trazido três setas, de modo que sobrara uma.

— “Que faço disto agora?” — pensou. E resolveu: — “Finco na primeira criatura que passar perto de mim.” Ora, aconteceu que essa primeira criatura foi tia Nastácia, que vinha vindo com um frango seguro pelas pernas. Emília, zás! bem no coração da preta. Tia Nastácia largou o frango, levou as mãos ao peito e murmurou com os olhos revirados: — “Ai que amor, que amor meu coração está sentindo!…”

Mas como Emília não tivesse mais flechas, não pôde flechar o “companheiro” de tia Nastácia; de modo que a pobre ficou “amando no ar”, amando tudo e nada — sem ninguém que a amasse.

— Hum! — fez Emília. — Agora compreendo este jogo de Cupido. Só há amor perfeito quando ele espeta um par. Quando acerta um e erra o outro, ou quando esquece de flechar esse outro, o coitado do primeiro fica amando em seco — e passa a vida a suspirar por um “amado” que não existe… Compreendo, compreendo… resolveu aplicar o “faz-de-conta.” Tomou o arco e disse:

— “Faz de conta, meu arco, que és uma andorinha com ordem de ir numa velocidade imensa ter às mãos de Cupido. Boa Viagem!”

O arco obedeceu. Instantes depois estava nas mãos de Cupido, que muito se admirou do “fenômeno.” Tinha ele agora de devolver o bodoque. Pensou, pensou, pensou e não achou jeito. O burrinho ignorava as maravilhas do “faz-de-conta.”

— Bom — disse ele — nesse caso fico com os dois, o arco e o bodoque — um para provocar feridas de amor, outro para causar simples machucaduras de amor…

 

22 – Transtornos na cozinha

A reinação da Emília com as setas causou séria perturbação no iate. A pobre negra, ferida no peito pela terceira seta de Cupido, estava que nem barata tonta. Suspirava, arregalava os olhos, queria uma certa coisa que não sabia o que era. Dona Benta achou muito esquisito o caso, e mais ainda quando ao jantar o feijão apareceu com “bispo” — isto é, queimado.

— O feijão está com “bispo”, vovó! — gritou Narizinho fazendo uma careta.

— Não é possível, menina! — protestou Dona Benta. — Tia Nastácia nunca, nunca jamais, queimou o feijão, nem coisa nenhuma. Sempre foi uma cozinheira perfeita.

— Pois queimou o feijão, sim — prove.

Dona Benta provou e viu que era mesmo.

— De fato! — exclamou admiradíssima. — Com certeza foi algum dos anões que fez isso, por vingança. Eles não devem ter gostado da mudança que fizemos na cozinha.

Todos provaram o feijão e repeliram-no. Intragável. Pedrinho trinchou o frango assado e serviu-se. Provou. Franziu o nariz.

— O frango está ainda pior que o feijão, vovó! Sem sal, rijo — horrível.

Todos provaram do frango e viram que era isso mesmo. Dona Benta começou a arregalar os olhos. Seria possível? Além do feijão o frango?…

E tudo mais no mesmo teor. Tudo ruim, péssimo, intragável. O picadinho estava com sal demais; ninguém o pôde comer. Na salada de alface o Visconde encontrou uma taturana.

— O caso é dos mais sérios — disse Dona Benta. — Tia Nastácia é minha cozinheira desde os tempos do meu marido Encerrabodes, que Deus haja, e nunca jamais falhou em um só prato sequer. Hoje falhou em todos! Que será que aconteceu?

— Ela está completamente mudada, vovó — disse Narizinho. Desde ontem que não faz outra coisa senão suspirar e levar a mão ao peito. Dá cada “ai”! que até assusta a gente…

Emília percebeu que a flecha de Cupido era a causa de tudo — mas calou-se.

— Visconde — disse Dona Benta — mande um marinheiro chamar tia Nastácia.

O Visconde mandou o Mestre. Instantes depois apareceu a negra, com cara muito diferente da sua cara do costume. Parecia até mais magra. Parou diante de Dona Benta, com um ar muito resignado.

— Que é, Sinhá?

— É que a sua comida de hoje não parece sua, Nastácia. Feijão, com “bispo”; o frango, sem sal e rijo; o picadinho, salgado demais — e na alface, uma taturaninha… Que foi que aconteceu?

A pobre preta, depois dum profundo suspiro, falou:

— Não sei, Sinhá, mas sinto que não sou a mesma. Vem cada suspiro lá do fundo que até me atrapalha. Quero e não quero as coisas. Vou pegar no facão e pego no garfo. Erro tudo. Quando fui temperar a sopa, há de crer, Sinhá, que botei açúcar pensando que era sal? Por isso é que não apareceu sopa hoje na mesa…

O espanto de Dona Benta aumentava. Seria doença?

— Escute, Nastácia. Não está sentindo alguma dor, alguma pontada?

— Sim, Sinhá, bem no coração. Um peso, uma vontade de chorar sem motivo nenhum.

— Bom, então é isso. Você está doente. Já tomou algum remédio?

— Já, sim. Purgantinho de maná e sene — mas fiquei na mesma.

Dona Benta refletiu uns instantes. Depois:

— Olhe, vá para a cama. Entregue a cozinha ao Atchim, que tem jeito de ser bom cozinheiro. Vá repousar e tome um chazinho de erva-cidreira.’

— Não adianta, Sinhá. Já experimentei. Se o Doutor Caramujo aparecesse por aqui, então sim. Aquilo é que é médico bom.

A inquietação de Dona Benta recrescia. Que fazer? Olhou para Narizinho, para Pedrinho, para Branca de Neve, na esperança duma sugestão. Ninguém disse nada — não entendiam de doenças! Olhou para Emília. Nada. Voltou-se para o Visconde.

— Que acha deste caso, Visconde?

O Visconde coçou as palhinhas de milho do pescoço e disse:

— Ela com certeza está mal do hipocôndrio. Li num livro que há uma doença chamada hipocondria, que deixa as criaturas assim, apatetadas, suspirantes e melancólicas.

— Mas qual é o remédio?

— Mudanças de clima e pílulas…

— Que pílulas?

— Quaisquer. Basta que sejam pílulas.

Dona Benta viu que em matéria de medicina o Visconde era ainda pior que um barbeiro.

O debate prolongou-se, e por fim assentaram em recorrer a um médico. Se fosse possível encontrar o Doutor Caramujo, ótimo; se não, um curandeiro qualquer serviria.

Tia Nastácia recolheu-se ao quarto, suspirando.

Emília ficou de mãozinha no queixo, a pensar. Sim, fora ela a culpada. A doença da pobre preta não passava de amor recolhido. E agora? Como fazer para curá-la da paixão? Se pudesse consultar o deusinho do Amor! Ele havia de saber o remédio — mas era impossível comunicar-se com o filhote de Vênus. Que fazer? Emília sentiu-se no maior dos embaraços.

— As setas de Cupido são envenenadas, refletia ela com os seus botões. — Mas para todo veneno há um contraveneno. Qual será o contraveneno para o veneno do amor?

Pensou, pensou e nada. Pela primeira vez na vida não encontrava solução para um caso. Súbito, riu-se.

— Ah, meu Deus, que boba eu sou! Pois basta aplicar o faz-de-conta, esse meu remédio que não falha nunca.

E aplicou o faz-de-conta.

Erguendo os olhinhos para o céu, murmurou:

— “Faz de conta que aquela flecha não estava envenenada! Faz de conta que eu não espetei o coração de tia Nastácia. Faz de conta que não estive com o deus do Amor, nem lhe pedi o arco emprestado. Faz de conta que ele só me deu duas flechas, não três.

Nem bem fez Emília essa invocação e já tia Nastácia melhorou. Deu uma risadinha e parou com os suspiros. Levantando-se da cama, foi à cozinha e espantou-se do infame jantar que havia servido. Correu então à sala das refeições e disse:

— Sarei, Sinhá, sarei completamente — e vou fazer num instante um jantarzinho daqueles de sempre. Aconteceu qualquer milagre comigo. Estou boa, completamente boa…

Dona Benta não cabia em si de assombro.

— É extraordinário o que está se passando! Trata-se positivamente dum milagre, não resta dúvida nenhuma. Mas milagre de quem?

Meia hora depois estavam todos devorando o delicioso jantarzinho improvisado, com as caras alegres e os paladares satisfeitos.

— Agora, sim — disse Narizinho. — Isto é comida de tia Nastácia. O outro jantar até parecia feito pela Quimera.

O ar de Emília era tão radiante que Dona Benta desconfiou e disse:

— Macacos me mordam se não anda aqui o dedo da Emília.

Olhem o ar dela…

— Mas como, vovó?

— Não sei, minha filha. A pestinha é capaz de tudo …

 

23 – No sítio

O Capitão Gancho havia se retirado da casa de Dona Benta furioso da vida, a praguejar seiscentos milhões e a dar pontapés em quanta lata velha havia pelo caminho. Foi direto à venda do Elias Turco. Entrou.

Ao ver aquele homem sem braço, o Elias julgou ser um pedinte de esmolas e disse: — “Deus o favoreça, irmão.” Mas o Capitão Gancho pespegou um tal murro no balcão que as garrafas das prateleiras dançaram.

— Com seiscentos milhões de alambiques! — berrou ele. — Quero uísque, dose dupla, não esmola, seu coisa!

Elias, trêmulo de medo, não discutiu. Passou a mão numa garrafa de álcool retificado e empurrou-a para o ferrabrás, uísque naquela venda era sinônimo de espírito-de-vinho. O Capitão encheu um copo e revirou. Depois;

— Seu cara de laranja azeda, com que então é você o fornecedor lá da velha?

— Sim — respondeu o Elias medrosamente. — Dona Benta só compra aqui — e é bem servida. Artigos de primeira, nada falsificado.

Gancho deu uma cusparada de esguicho.

— Por este uísque estou vendo. Continue.

Elias continuou:

— Ela é uma excelente freguesa, das que pagam sem discutir. Boa gente. Mas a negra é o diabo. Vive reclamando e caluniando o meu armazém. Diz que aqui tudo é falsificado — até a cebola!

— Basta! — rosnou Gancho. — Escute.

O Elias aproximou-se, com muito medo, e o pirata cochichou-lhe ao ouvido uma história. O turco arregalou os olhos; depois coçou a cabeça e disse que não era ladrão desses que assaltam casas. Mas podia indicar uns tantos sujeitos capazes de aceitar a proposta.

— Há o Zé das Dúzias, que foi capanga do Coronel Teodorico e anda vago. Também há o Quebra-Queixo, um mulato de cara feia, amigo de novidades. O Chico Dentadura também poderá servir.

— E onde mora essa gente?

— Costumam vir aqui todos os dias, para a pinguinha. Estão na hora.

Nem bem disse isso e um caboclão mal encarado apontou na estrada — o Zé das Dúzias. Entrou. Pediu um martelo da “boa.” Elias Turco serviu-o e apresentou-o ao Capitão Gancho.

— Este é o Zé, um dos homens que indiquei. Zé das Dúzias mediu o Capitão Gancho de alto abaixo. Gostou. Viu imediatamente que era criatura da sua marca. Foram sentar-se a uma mesinha dos fundos e “garraram” a conversar em voz baixa.

Logo depois vieram o Quebra-Queixo e o Chico — que também foram conduzidos à mesinha. Os quatro patifes cochicharam à vontade, enquanto bebiam copos e mais copos da horrenda pinga do turco. Quando se ergueram, pareciam amigos velhos.

— Pois é isso — rematou o Capitão depois de deixar a venda. — O diabo da velha roubou-me o navio e quero agora roubar-lhe o sítio. Faço sociedade com vocês — metade para mim, metade para os três. Fechado?

— Fechado! — respondeu Quebra-Queixo estendendo-lhe a mão.

Os outros fizeram o mesmo.

— A maçada — disse o Chico — é o tal bicho de chifre no nariz que há lá. Tenho medo daquilo.

— Pois eu não tenho! — berrou o Zé. — Esses bichos grandalhudos só oferecem perigo em campo raso. Nós invadiremos a casa e pronto. Lá dentro ele não entra — não cabe.

— Lá isso é — concordou o Chico.

Quebra-Queixo disse:

— E com uma boa espingarda, posso dar cabo dele, apesar do que dizem por aí — que bala nenhuma penetra naquele couro. É o que quero ver! Tenho uma espingarda de carregar pela boca que vale um canhão. Pondo lá dentro quatro dedos de pólvora FFF e seis bagos de chumbo paula-sousa — e dou o tiro na “volta do apá.” Vamos ver se o bicho revira ou não revira os olhos!

Depois de bem estudado o assunto, combinaram o dia e a hora do ataque.

— Depois de amanhã — disse o Zé das Dúzias. — Hoje tenho que ir à vila arrumar umas coisas. Só depois de amanhã estarei disponível.

Gancho resolveu ir à vila com o Zé das Dúzias, mas antes de separarem-se foram a outra venda para molhar o ajuste com mais uns martelos de pinga.

Enquanto isso, o Burro Falante combinava coisas com o Quindim.

— O Capitão Gancho virá fatalmente roubar o sítio — disse ele. — Temos de prever essa hipótese e conservar-nos muito atentos.

— Que venha! — rosnou o rinoceronte. — Cá estou para recebê-lo na ponta do chifre.

— Infelizmente eu não disponho de uma arma como a sua — disse o burro; só sei dar coices, o que aliás me repugna. Há de crer, Quindim, que ainda não dei um só coice em toda a minha vida?

— Nem eu…

O Burro Falante riu-se.

— Sim, mas a sua defesa não é o coice. É a chifrada. Será que também nunca deu uma chifrada em toda a sua vida?

Quindim não quis passar por santo e confessou a verdade.

— Dei, sim, muitas. Mas só lá na África, onde nasci. Naquele tempo eu era um rinoceronte selvagem, como todos os outros. Depois que fui caçado e domesticado, nunca mais chifrei ninguém. Talvez por falta de oportunidade.

Estavam nessa conversa quando ouviram barulho na porteira. Olharam. Era um bando de crianças.

— Ó de casa! — gritou uma delas.

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