O PICAPAU AMARELO
Capítulos 24, 25 e 26
24 – Os visitantes
Dona Benta nunca deixou que os meninos dessem o seu endereço a ninguém, e isso porque milhares de crianças andavam ansiosas por passar temporadas lá — e se soubessem onde o sítio era, seriam capazes de abandonar tudo pelo gosto de conhecer a Emília e experimentar os bolinhos de tia Nastácia. Mas quem pode com certas crianças mais espertas que as outras?
Quem pode, por exemplo, com a Maria de Lourdes? Ou com a Marina Piza, ou a Maria Luísa, ou a Bjornberg de Coqueiros, ou o Raimundinho de Araújo, ou o Hélio Sarmento, ou a Sarinha Viegas, ou a Joyce Campos, ou a Edite Canto, ou o Gilbert Hime, ou o Ayrton, ou o Flávio Morretes, ou a Lucília Carvalho, ou o Gilson, ou a Leda Maciel ou a Maria Vitória, ou Nice Viegas, ou os três Borgesinhos (Stila, Mário e Marila), ou o Davi Appleby, ou o Joaquim Alfredo, ou a Hilda Vilela, ou o Rodriguinho Lobato e tantos e tantos outros?
Essa criançada achou meios de descobrir onde era o sítio de Dona Benta; e comandados pela Maria de Lourdes, ou a Rãzinha, lá foram ter. Infelizmente erraram de época e apareceram justamente na pior das ocasiões — quando o pessoal do sítio estava no palácio do Príncipe Codadade.
Ao ver aquele grupo de meninos na porteira, o “administrador” foi recebê-los.
— Que é que querem? — perguntou na sua voz serena de burro filósofo.
A criançada assustou-se, porque nenhuma ainda tinha visto um burro falante; mas como já o conheciam pelas histórias publicadas, acalmaram-se. Rãzinha falou em nome do bando.
— Somos amigos dos tais netos cujas histórias vêm nas “Reinações de Narizinho” e outras obras. Muito lutamos para localizar o sítio; mas à força de indagar aqui e ali e de escrever cartas a este e àquele, conseguimos encontrá-lo. Mas esta porteira aqui é novidade. Nos livros a porteira é aquela outra lá — a porteira velha — disse Rãzinha apontando para a antiga porteira do pasto.
— Sim, esta porteira tem uma semana apenas — explicou o burro — é a que separa o sítio de Dona Benta da Terra da Fábula.
A Rãzinha não entendeu.
— Que Terra da Fábula é essa, Conselheiro?
— Não sabe ainda? Pois Dona Benta comprou diversas fazendas vizinhas para cujas terras mudou todos os personagens do Mundo das Fábulas. Isto aqui anda agora movimentadíssimo.
Don Quixote e Sancho estiveram cá. Também o Príncipe Belerofonte com o Pégaso e a Quimera. E o Pequeno Polegar está lá dentro, na enfermaria, sarando duma perna quebrada.
O espanto das crianças não tinha limites.
— Como é? Como é isso? Com que então os…
— Sim todos os personagens da Fábulas mudaram-se para as Terras Novas.
— Peter Pan também?
— Também. Peter Pan e as princesas e os príncipes todos, Branca de Neve, Codadade…
As crianças estavam tontas. Imaginaram uma coisa e vieram encontrar outra.
— Mas … e Narizinho, Pedrinho, Emília?
— Todos estão fora, em aventuras lá pelo bairro das “Mil e uma Noites.” Parece que o Príncipe Codadade vai casar-se com a Princesa Branca de Neve.
— Como vai casar-se, se Branca já é casada?
— Parece que enviuvou. Eu não sei bem da história, mas ouvi dizer.
— Que azar o nosso! — exclamou a Rãzinha. — Virmos de tão longe e darmos com a casa vazia! Nem tia Nastácia?
— Nem tia Nastácia. Anda por lá também. Foram todos no “Beija-Flor das Ondas.”
Ninguém entendeu. Ninguém sabia de tal beija-flor. Tudo estava sendo da maior novidade para aquelas crianças.
— E agora? — murmurou a Rãzinha voltando-se para o grupo.
Indecisão, uns acharam melhor voltar. Outros opinaram por uma visita à casa deserta.
— Sim — disse Ayrton — não podemos voltar de mão abanando. Pelo menos as panelas em que tia Nastácia faz os bolinhos eu quero ver.
Rãzinha disse ao burro:
— Senhor Conselheiro, estas crianças vieram de muito longe e querem entrar para uma vista d’olhos. É possível?
O Burro Falante mostrou-se bastante atrapalhado. Tinha ainda fresco na memória o turumbamba que houve no caso do anjinho, quando o sítio foi invadido pelas crianças inglesas. O bando agora era menor, mas não havia ninguém na casa. Como recebê-las ali, ele e o Quindim?
— Não sei, senhorita, se devo ou não abrir a porteira. As ordens de Dona Benta são para não receber ninguém…
— Sim, ninguém daqui das redondezas — argumentou a Rãzinha — mas não gente vinda de longe, como nós. Dona Benta de forma nenhuma seria capaz de acolher de maus modos um bando de crianças amigas de seus netos. Eu, por exemplo, já troquei várias cartinhas com a Emília…
O burro coçou a cabeça. Por fim disse:
— Pois entrem, mas não me estraguem nada. O responsável por tudo sou eu.
Foi uma alegria imensa na criançada. Eles no sítio de Dona Benta! Que coisa colossal! …
Entraram de cambulhada, num atropelo. Ao darem com o rinoceronte, houve gritinhos.
— O Quindim! — exclamou Hilda. — Parece incrível que nossos olhos estejam vendo o célebre Quindim!…
O medo ao paquiderme desapareceu rapidamente — e as crianças rodearam-no, cada qual dizendo uma coisa, fazendo uma observação. O Gilbert chegou a cutucá-lo com um pauzinho, para ver a dureza da casca.
— E que tal um passeio no Quindim? — lembrou o Gilson.
A ideia foi recebida com palmas.
— Viva! Viva! Passeio no Quindim! …
O rinoceronte era o animal de maior pachorra que existia no mundo, um gênio maravilhosamente cordato. Estava por tudo.
Foi, pois, com a melhor das boas vontades que deixou que os meninos subissem ao seu lombo. Para alcançá-lo tiveram de recorrer a uma escadinha americana, das que ficam em pé em forma de V invertido.
Rãzinha colocou-se no chifre, que era o lugar da Emília.
— A Emília agora sou eu, gentarada! Quindim deu várias voltas pelo pasto com o bando de crianças a fazer o maior dos berreiros em cima dele. — “Eu sou Pedrinho!” — berrava uma.
— “E eu sou Narizinho! berrava outra. — “E eu sou Dona Benta!” — berrava a terceira. — “E eu, tia Nastácia!”
— “E eu sou um bolinho!” — “E eu sou o bodoque!” — “E eu sou o pé de frango de seis dedos!”
Dadas as voltas, Quindim parou em frente à varanda e todos apearam. Subiram a escadinha. Sentaram-se na rede, nas poltronas de vime e até na célebre cadeira de pernas serradas de Dona Benta.
— Vamos brincar de “sítio”! — propôs a Joyce. — Eu sou Dona Benta. — Pegou na mão do Gilson e disse, fingindo voz de velha:
— Ah, Pedrinho, que mão suja a sua! E que é isso amarelo em sua cara?
Gilson respondeu:
— São bigodes de manga, vovó. Eu sou o Conde dos Bigodes de Manga!
— Mentira, Dona Benta! — gritou a Marina, a fingir de Emília. — Ê que ele não lavou o rosto hoje.
“Dona Benta” fez uma cara muito triste.
— Ah, Pedrinho, onde se viu um herói como você, que anda em livros, assim de cara suja?
Nisto o vento deu e levantou no pasto uma pena de galinha. Novo berreiro.
— O Peninha! O Peninha! — gritaram todos — e saíram correndo atrás da pluma.
Quindim e o Burro Falante sorriam, enlevados na cena.
— Gosto de ver estes quadros — disse o Conselheiro. — Gosto de ver as crianças na plena alegria da liberdade, porque fui muito infeliz em criança — nunca brinquei …
Depois da correria com a pena, um mais guloso lembrou-se do pomar.
— Ao pomar! Ao pomar!… — e todos lançaram-se ao pomar, numa correria.
Que gostosura! Era justamente o mês das jabuticabas — e havia lá uma porção de árvores carregadinhas.
— Esta é de Sabará! — disse o Appleby — e trepou pelos galhos acima com ligeireza de gato.
— E esta aqui é das de penquinha! — gritou o Mário Borges trepando à árvore próxima.
E começou a festa do tloque—pluf. Tloque — uma fruta arrebentada entre os dentes; pluf! caroço fora. Só faltava o nhoque! A parte do nhoque! era feita pelo Rabicó — o comedor de caroços e cascas. Pois para completar a cena, até o Rabicó apareceu !
— Rabicó! Rabicó! — gritou a criançada ao ver surgir o célebre porquinho. — Viva o Marquês de Rabicó!
O leitão regalou-se — e o “onomatopéia” das jabuticabas fez perfeita — tloque-pluf-nhoque!…
De repente, um galho estalou e ouviu-se um baque.
— O Ayrton caiu! O Ayrton caiu! — gritaram dez vozes.
De fato assim fora. O galho em que estava o Ayrton lascou e veio com ele abaixo. Felizmente não machucou o coranchim.
Depois de bem enchidos os papos, as crianças desceram e correram à varanda.
— Que pena estar fechada a casa! — disse o Flávio. — Eu tanto que queria ver o célebre museu da Emília…
— E eu, queria dar umas bodocadas com o bodoque de Pedrinho! — gritou o Raimundo.
Maria Vitoria fizera-se meditativa.
— Em que está pensando? — perguntou a Maria Luísa.
— Estou pensando que ao voltar ao Rio e contar que estive no Sítio do Picapau Amarelo, nem mamãe vai acreditar…
— E eu estou pensando na inveja da meninada inteira do Brasil quando souber da nossa aventura. Que África, hein?
Nisto uma figurinha no terreiro chamou-lhes a atenção.
— Olhem quem vem lá — o Polegar!… — exclamou a Edite Canto, de olhos arregalados. — Que amor de criaturinha…
Polegar já havia sarado, mas vinha de muletas. Ao ouvir o barulho na varanda, pulou da caminha para ver o que era. O encontro de tantas e tantas crianças fê-lo abrir a boca.
— Meu amor, meu amor! — e Rãzinha colocou-o na palma da mão.
Que festa foi aquilo! Até parecia sonho. O célebre Pequeno Polegar, que as crianças do mundo inteiro só conhecem de fama e de história, eles o tinham ali, em carninha e ossinho — vivinho da silvinha.
— Mas essas muletas, Polegar? Que é isso? Você nunca foi aleijado …
Polegar contou a sua terrível aventura no Cedro Grande com o casal de passarinhos, as bicadas que levara e finalmente o tombo que caiu.
— Pois é, caí e quebrei a perna. Felizmente o bicho de três cabeças me trouxe para cá, e tia Nastácia tratou-me muito bem com as suas pomadas.
— Bicho de três cabeças? — repetiu a Leda Maciel. — Que história é essa?
Polegar teve de contar toda a história da Quimera e do herói Belerofonte. Por fim queixou-se de Pedrinho e Narizinho:
— O que eles fizeram não é direito. Deixaram-me aqui sozinho, imaginem …
— Sozinho, sozinho?
— Sim. Isto é, ficou também o Capitão Gancho — mas esse…
A Joyce arregalou os olhos.
— O Capitão Gancho? Pois essa peste também esteve cá?
— Esteve, sim — e ficou aqui depois que Dona Benta e os netos embarcaram no “Beija-Flor das Ondas.” E ou eu muito me engano, ou ele ainda volta para assaltar o sítio.
Aquelas palavras assustaram as crianças.
— Assaltar, como? — perguntou o Gilbert.
— Ele está queixoso por lhe terem tomado a “Hiena dos Mares” e jurou vingança. Tentou corromper o burro e o chifrudo. Como nada conseguisse, saiu dando pontapés nas latas velhas e vomitando pragas.
— As tais de seiscentos milhões?
— Sim. Ele não faz por menos…
Enquanto isso, a Hilda Vilela conversava com o Burro Falante.
— Por que está assim tão tristonha, menina? — perguntou-lhe o Conselheiro.
— É que sempre quis vir aqui sozinha, e afinal vim num bando. Não gosto de bandos. Mas deixe estar que hei de aparecer eu só, agora que já aprendi o caminho.
Um pequeninote veio se chegando.
— Quem é esse xereta? — perguntou o Burro.
— Não conhece? Pois é o célebre “boneco americano”, o Rodrigo. Quer ver?
E chamando o pequeninote:
— Venha, Rodrigo, venha fazer “bonequinho americano” para o Conselheiro ver.
O pelotinho de gente aproximou-se, parou diante do Burro e, enterrando a cabeça nos ombros, imitou um tal “boneco americano” que só ele sabia o que era. O Conselheiro achou tanta graça que não conteve um zurro de gosto, tão bem zurrado que o Rodrigo, num susto, caiu sentadinho no chão.
25 – A fuga
A visita da meninada ao Picapau Amarelo seria dessas coisas de comer e berrar por mais, se não fosse o maldito Gancho. O piratão estragou tudo. Chefiadas pela Rãzinha, as crianças estavam vivendo uma vida de puro sonho, em brincadeiras e mais brincadeiras, quando foram interrompidas pelo Polegar.
O homenzinho aproximou-se com ar assustado e disse:
— As coisas não vão bem. Estive de atalaia no pomar e vi o Capitão Gancho e mais três homens de cara feia esconderem se dentro daquele pé de carambola cuja saia toca no chão.
Aproximei-me na ponta dos pés e ouvi perfeitamente o pirata falar assim: “O melhor é nos escondermos aqui para o assalto à casa à noite.” Isso eu ouvi e juro. Vocês agora resolvam o que quiserem.
Os meninos olharam uns para os outros, atrapalhadíssimos. Que fazer? Permanecerem ali, era ultraperigoso. O prudente seria escaparem do sítio antes que viesse a noite. Assim pensavam as meninas.
Já os meninos pensavam outra coisa: em “organizar a resistência.”
— Sim — disse Ayrton — avisaremos ao Quindim e ao burro e nos armaremos com paus e pedras. O perigo nesses ataques é a surpresa; quem sabe que vai ser atacado, defende-se muito bem. Eu voto pela resistência.
As meninas, entretanto, eram umas grandes medrosas. Nenhuma queria saber de resistências — só pensavam na fuga.
Até a Rãzinha, que parecia corajosa como a Joana d’Arc.
— Nada de lutas! — disse ela. — Viemos aqui a passeio, não para guerras; e como estou no comando, minha ordem é de retirada, já, já.
— Mas isso é uma vergonha! — protestou o Gilson. — Vamos ficar desmoralizados perante o mundo.
— Bolas para o mundo! — disse a Rãzinha. — O que para nós tem importância são as nossas mamães e papais — não é o tal mundo duma figa. Imaginem que seguimos a cabeça do Ayrton e organizamos a tal resistência — e em vez da vitória vem a derrota, e o Capitão Gancho nos aprisiona e nos leva para não sei onde, de mãos e pés amarrados!…
— Mas nós havemos de vencer, Rãzinha!
— Quem entra numa guerra nunca sabe o fim. Lembre-se da Alemanha em 1914. Estava certíssima de vencer — e venceu? Uma ova. Nada, não quero saber de histórias. Quem manda aqui sou eu, como chefa do bando — e minha ordem é para uma boa retirada estratégica.
— Mas o ataque, segundo diz o Polegar, é à noite; podemos ainda chupar umas jabuticabas e encher os bolsos.
— Nem isso eu consinto! — declarou a Rãzinha com a maior firmeza. — Os bandidos estão ocultos dentro do pé de carambola.
Quem não comeu de regalar-se, que comesse. Vamos fugir daqui, já, já…
Com grande dor de coração, a criançada obedeceu à voz do comando. Depois de despedirem-se do Quindim e do burro, encaminharam-se para a porteira.
— Já sabe da história? — disse a Sarinha ao burro.
— Que história?
— Dos bandidos ocultos na caramboleira?
— Quem disse isso? — exclamou o Conselheiro, pálido como uma folha de papel.
— Converse com o Pequeno Polegar. Adeus, Conselheiro! Quando o povinho do sítio vier, conte-lhe da nossa visita. Adeus, adeus! …
— Adeus, adeus! — repetiu a criançada — e todos fugiram correndo.
O Burro Falante foi ter com o rinoceronte, ao qual contou tudo. Quindim, furioso, dirigiu-se a trote largo para o pomar.
Diante da caramboleira parou para armar o bote — e investiu contra a árvore com tamanha fúria que a atravessou de lado a lado como um tanque.
Perdeu a chifrada. O Capitão Gancho com os capangas tinham estado ali, mas já não estavam. Estavam na venda do Elias, bebendo espírito-de-vinho e matando o tempo. O assalto fora transferido para o dia seguinte.
Quindim e o Conselheiro passaram a noite montando guarda. Como não acontecesse coisa nenhuma, sossegaram.
— O Capitão Gancho com certeza desistiu do assalto — disse Quindim. — Não haverá nada.
— Bom — disse o burro — nesse caso, vou para o meu serviço e você fica de sentinela. Havendo qualquer coisa, dê um daqueles urros de bicho africano, que virei no galope.
26 – O casamento de Branca de Neve
O casamento de Branca de Neve com o Príncipe Codadade era a primeira grande festa a realizar-se nas Terras Novas. Os príncipes orientais são amigos da grandeza e do luxo. Codadade quis que o seu casamento derrotasse todos os casamentos havidos até aquela época, e ordenou ao mordomo Abude que não poupasse dinheiro nem coisa nenhuma. Estava resolvido a gastar metade dos seus tesouros para espantar o mundo com uma tremendíssima festa.
Iniciaram-se imediatamente os arranjos, e os convites foram enviados para todos os personagens da Fábula — menos os monstros. Tia Nastácia, já completamente sarada do veneno de Cupido, encarregou-se dos comes — e era um regalo vê-la na grandiosa cozinha do palácio, de mangas arregaçadas, dirigindo os cem cozinheiros codadadianos. Esses grandes mestres sabiam fazer os pratos mais raros e caros — faisões com recheio de língua de rouxinol, javalis assados inteiros com molho de néctar furtado ao Olimpo dos gregos; omeletas de ovos da Fênix e outras aves famosíssimas. Tia Nastácia, entretanto, ria-se deles.
— Ché, tudo isso é muito bom para quem gosta de comer com os olhos. Para quem come com a boca, e mastiga bem, não há comida como a minha — mocotó à baiana, bem apimentado; vatapá com azeite-de-dendê; quibebe, costeleta com anguzinho de fubá; picadinho, virado de feijão com torresmo… Vocês façam esses “pratos bonitezas” que eu faço os meus “pratos-gostosura.”
No dia da festa vamos ver quem vence…
Para enfeitar o palácio houve uma verdadeira devastação nas florestas; nos velhos troncos não ficou nem uma só orquídea ou parasita rara. Também houve limpeza nas avencas, begônias e musgos dos lugares úmidos.
Codadade confiou a ornamentação do palácio à deusa Flora, lá do bairro grego — e Flora trouxe a sua amiga Fauna, que é quem toma conta dos animais. Netuno mandou um belíssimo sortimento de algas do mar — e tanta concha preciosa, e tanto caramujo, que nem cabia no palácio.
— É demais! — exclamou Dona Benta. — Eles estão devastando o mundo.
E a música? Oh, a música! Compareceram todos os rouxinóis das florestas, e todos os sabiás, todas a patativas, todos os canários e melros e até os tico-ticos. Orfeu, que era o maior músico da antiguidade, veio em pessoa dirigir a grande orquestra — e trouxe a sua miraculosa lira. Dona Benta explicou:
— Este freguês foi educado pelas Musas. Sua lira tem a propriedade de encantar a quem a ouve — seja fera, rio ou árvore. Tudo cai no enlevo, de boca-aberta e olhos pasmados; as feras choram de ternura; as árvores derramam as folhas como se fossem lágrimas; os rios param de correr, com todos os peixes de cabecinha de fora…
O Príncipe andava numa lufa-lufa tremenda, porque fazia questão de que não faltasse uma só princesa. Era ele próprio quem redigia os convites.
— Uf! — exclamou num momento de descanso. — Creio que vou reunir todas aqui — não me esqueci de nenhuma.
— Eu sei de uma que não vem — disse Emília. Codadade encarou-a interrogativamente.
— A Bela Adormecida do Bosque. Não vem porque está dormindo…
— Mando acordá-la! — gritou o Príncipe — e deu ordem ao Abude para acordar a Bela Adormecida do Bosque.
No dia da festa, desde cedinho, começaram a chegar carruagens e mais carruagens. Rosa Branca e Rosa Vermelha vieram ao mesmo tempo, apesar de estarem brigadas. Aladino apareceu com a lâmpada a tiracolo. Os heróis gregos surgiram num grupo — Aquiles, vestido de guerreiro, com o famoso escudo ao ombro; Jasão, o chefe dos Argonautas ; Midas, o rei da Frigia; Perseu, o herói que decepou a cabeça da Medusa…
E vieram as semideusas gregas, cada qual mais resplendente de formosura: as Doze Musas; as Três Graças; Filomela, a deusinha dos rouxinóis; Pomona, a ninfa que presidia aos jardins e pomares ; Pirene…
Quando Pirene apareceu, Emília berrou:
— Lá está a cuja que de tanto chorar se transformou na fonte do Pégaso!…
E veio Psique, a belíssima criatura que conquistou o coração de Cupido moço; e veio a boa Penélope, que fiava uma teia sem fim… E veio até a Fênix — a ave que renasce das próprias cinzas.
Codadade hospedou-a no galinheiro.
E depois dos gregos vieram personagens de outras mitologias, como o Príncipe Mitra, da Pérsia, a personificação do Sol; e Niorde, uma espécie de Netuno da Escandinávia; e a formosa Tisbe, da Babilônia, que causou sem querer a morte do seu amado Píramo.
— Como foi a sua história? — perguntou-lhe Emília.
A bela criatura deu um suspiro.
— Nem queira saber, criaturinha! Certo dia combinei um encontro com o meu amado noivo Píramo — um encontro no túmulo do Rei Nino. Fui; cheguei primeiro — mas apareceu me lá uma terrível leoa de dentes arreganhados. Consegui escapar, mas na fuga perdi um véu que levava. A leoa, furiosa, estraçalhou esse véu. Logo depois veio Píramo; vendo o meu véu todo estraçalhado, supôs que a leoa me houvesse comido — e suicidou-se…
— Pois então queira aceitar meus pêsames — disse Emília, e saiu correndo a contar a história aos outros.
Depois de Tisbe chegou uma encantadora dançarina hindu — Sundartará, trazendo consigo uma gaiolinha dourada. Emília quis saber o que havia lá dentro. Era um camundongo! A formosa dançarina do deus Xiva nunca largava esse camundongo — sinal, pensou Emília, de que em outra encarnação ela havia sido gata.
Vinha gente que não acabava mais. Súbito, apareceu uma figurinha de meio palmo. Passou manquitolando, apoiada numa muletinha de pau de fósforo.
— Polegar! — berrou Emília reconhecendo-o — e ao ouvir esse nome Dona Benta sentiu de novo a célebre pontada no coração.
— Meu Deus! — exclamou aflita. — Positivamente estou ficando caduca. Pois não é que deixei o Polegar sozinho no sítio, em companhia do Capitão Gancho?
E era verdade! Na fúria de embarcarem no “Beija-Flor”, nem ela, nem tia Nastácia, nem ninguém, se lembrara do pobre estropiadinho lá na enfermaria, com a perna encarangada no gesso. Que judiação!
Polegar chegou e foi direto a Dona Benta. Parecia aflito.
— Que há, figurinha?
— O que há — disse ele arrumando-se nas muletas — é que o sítio está ameaçado de ataque. O pirata que a senhora esqueceu lá tentou seduzir o burro e o hipopótamo…
— Rinoceronte — corrigiu Dona Benta.
— Sim, o chifrudo. Nada conseguindo, retirou-se, danado da vida, rogando mil pragas de milhões e está com intenção de reunir os malfeitores da zona para um ataque ao sítio. Pelo menos é essa a opinião do Burro Falante. Ora, eu achei de meu dever vir avisar à senhora. Outra novidade é que a sereia fugiu.
Pedrinho ficou danado.
— E como conseguiu chegar até aqui, que é tão longe? — perguntou-lhe Narizinho.
— Para mim não há distâncias — respondeu Polegar. — Com as botas de sete léguas, não respeito quilômetros.
A pontada de Dona Benta ia apertando.
— Como há de ser agora? — disse ela aflita. — Quindim é valente e o Conselheiro é um sábio, mas afinal de contas não passam de quadrúpedes. O sítio não pode ficar entregue unicamente a eles. Que fazer?
Pedrinho foi de opinião que se reforçasse a defesa do sítio, mandando para lá a Quimera e Pégaso. Mas onde estavam eles? Ninguém sabia. Dona Benta pensou em voltar sem demora.
— E a festa? — disse Narizinho. — Não podemos perder uma festa que vai ser a maior do mundo.
— Também não podemos perder o sítio que é o melhor do mundo — alegou Dona Benta. — Vamos ouvir a opinião de tia Nastácia. Chamem-na.
Tia Nastácia estava nas cozinhas imperiais dirigindo o assamento de mil e trinta e sete faisões. Ao receber o recado de Dona Benta, largou tudo e veio enxugando as mãos no avental.
— Que é, Sinhá?
Dona Benta explicou-lhe a situação. A preta franziu a testa.
— A culpa é nossa, Sinhá. Somos duas velhas de cabeças viradas, que andamos fazendo tanta asneira como as crianças. Mas asneira de criança tem desculpa; de gente velha não tem. Onde estávamos com o miolo quando saímos do sítio e “se esquecemos” do pobre doentinho? Credo!…
— Mas agora? Que acha que devemos fazer?
— Agora, Sinhá, é fazer como a Emília manda: “fecha” os “zóio” e se “pincha” no abismo. Se o sítio for roubado, a senhora fica morando aqui. Estou gostando muito deste palácio. Que cozinha, Sinhá! Parece uma sala de visitas. Tudo mármore e pratas alumiando. E eu aqui não faço nada — só dou ordens. Tenho mais de cem ajudantes …
Não adiantou nada a consulta à preta. Dona Benta fez vir o Visconde. Explicou-lhe a situação.
— E agora, Visconde? Que fazer?
O Visconde coçou as palhinhas de milho do pescoço. Não achou remédio. Os sábios são criaturas indecisas; não resolvem nada.
Emília meteu no meio a colherzinha torta.
— Ora, ora, ora, Dona Benta! — disse ela. — O caso é dos mais simples. Deixamos tudo como está para ver como é que fica. Se os capangas do Capitão Gancho tomarem posse do sítio, nós daremos um jeito. Se não tomarem, melhor!
Dona Benta achou que a solução da Emília não era solução de coisa nenhuma — mas como já estivesse cansada de pensar naquilo, aceitou-a.
— Pois então fica assim… — e, suspirando, voltou a assistir ao desfile dos grandes personagens convidados.
Vinha gente que não acabava mais; uns, a pé; outros, em riquíssimas carruagens; outros, a cavalo; outros, em cima de elefantes ricamente ajaezados. Dois apareceram em burrinhos — o semi-deus Sileno, gordíssimo e todo enfeitado de rosas, e Sancho Pança.
Pedrinho chamou Sancho para saber notícias de Don Quixote.
— Ah, esse não vem — respondeu o escudeiro.
— Por quê?
— Porque não pode andar. Meu amo meteu-se a combater a Hidra de Lerna e ficou descadeirado. A Hidra, que é uma peste, deu-lhe uma tal lambada com a ponta do rabo que ele foi ao chão com seis costelas partidas.
— E onde ficou?
— Deixei meu amo numa caverna que há lá e vim em busca de remédios. Nisto dei com este palácio e esta gentarada entrando — e resolvi entrar também para ver se como alguma coisa. Estou com uma fome de três dias.
— E os remédios para Don Quixote?
— Isso verei depois. Saco vazio não se põe de pé. Primeiro a pança — depois as costelas de meu amo…