a espécie humana 25, 26, 27, 28 e 29

A Espécie Humana – capítulos 25, 26, 27, 28 e 29

25.   

é tarde.  enquanto abro o portão, vejo que ainda há uma luz fraca no sótão-quarto.  subo tentando fazer o mínimo barulho.  o menino está sentado no meu colchão.   
não dormiu ainda?, filho.   
ô, pai, você demorou!  disse que voltava logo.   
devia ter dormido.  o pai sabia que eu ia demorar.   
pego-o no colo e ele me abraça forte.   
devia ter dormido, bobinho.  gente grande quando sai, às vezes, demora.   
eu não conseguia dormir.  o vô fez a janta e deixou a sua em cima do fogão.   
eu já comi.  é por isso que o fogão ainda tem fogo?
eu deixei mais pelos cachorros.  está frio.  falou meu pai.   
o vovô está lendo um livro sobre crianças que são bichos.   
crianças que são bichos?
já acabei de ler, falou meu pai.  ele pediu pra eu falar do livro e eu disse que falaria depois que você chegasse.  mas agora é muito tarde.   
então fala só um pouquinho, vô.   
eu vou descer primeiro, tomar uma água, escovar os dentes, trocar de roupa.  eu também quero ouvir.   
vou ficar na sua cama, pai.   
já fez xixi?
não.   
vamos descer, então.   
depois que subimos, sentei-me, tomei-o no colo, cobrimo-nos e meu pai começou:
é um livro sobre crianças que são criadas por animais.  alguns casos são suspeitos mas de outros há relatos muito bem documentados e dignos de crédito.   
é como o Tarzan e o Mogli?
mais ou menos.  são crianças que, por um motivo ou outro, foram criadas por animais diferentes.  mas infelizmente o resultado não é o mesmo do Tarzan e do Mogli.  a maioria nunca conseguiu falar e poucos conseguiram andar como nós, sobre dois pés.   
viraram bichos?, vovô.   
nem bicho nem gente.  eu diria que ficaram sendo o bicho-homem em seu estado mais brutal.  estou cansado e com sono.  que tal continuar amanhã?  depois do café.   
está bem, pai.  vou colocar um disco.  as pilhas ainda estão boas?
parece que sim.  à tarde eu ouvi Bob Dylan e estavam boas.   
coloquei o trio opus 100 de Schubert.  ah, o trio opus 100 de Schubert!
ah, o trio opus 100 de Schubert!  falou meu pai.  esse trio é negado a todas as crianças que foram criadas por animais.   
e também à maioria de nossas crias, pai.  ouvem e abrem os olhos como um chimpanzé diante de um mapa.   
infelizmente.  lembra do que disse Saint-Exupéry?  em cada aldeia, um Mozart assassinado…   
coloquei meu filho em seu colchão e o cobri.  no segundo movimento do trio, eu pensei.   
gostaria que todos os filhos do Homem pudessem amar esse movimento.  e falei alto:
pai, como eu gostaria que todos os filhos do Homem pudessem ter condições de amar esse segundo movimento!
vamos dormir, filho.  essas coisas apertam muito o coração da gente.   
não consigo acreditar numa alma imortal, eu continuei, mas agora em pensamento.  mas se é verdade que ela é imortal, quero entrar lá ao som de uma música como essa…   
e a melodia virou um colo de uma mãe-deusa que me embalou o sono e o meu sono era doce como música.   
e no meio da escuridão, ouvi a voz de meu pai, cantando baixinho: I’m not sleepy and there ain’t no place I’m goin’ to.   

caim – drama em dois atos – 2

CAIM 
drama em dois atos

Segundo ato.

CAIM: (entra) Grande é meu delito… Mas assustadora é a sua justiça.
E você, mãe, pobre mãe, sem você o que farei agora?,. Eu te via em tudo que fazia… Lembrava de suas palavras enquanto trabalhava… O que vou fazer?, sozinho. Sou maldito desde a terra que abriu sua boca… Fugitivo e vagabundo eu serei na terra… Pai, onde você está? Que vou fazer agora? Pra onde devo ir?, você, que me expulsou de seu mundo… Não… alguma coisa deve estar errada… Viemos ao mundo na condição de homens e devemos enfrentá-lo como anjos… Somos fracos e temos que lutar contra o mal, mas não sabemos onde está o mal… O desejo é forte, a inveja é forte, a tentação é forte… Tudo é muito forte e temos que resistir… as pedras se colocam no caminho, temos que saltá-las, uma após a outra… somos pequenos mas os obstáculos são muitos. Por que punir a queda do homem? É possível para nós, pequenos e fracos, tentados e sedentos de pecado, humanos e humanos, é possível resistir? Se há quem diga que sim, será que para esse é possível resistir? Quem põe as pedras no caminho? Pra que a gente caia? Em algum lugar estaria escrito que eu cairia?
Na nossa ignorância temos que procurar a justiça, cuja existência desconhecemos. Justiça… justiça… será a maldição de meu pai ou o perdão de minha mãe? Será condenar a demasiada liberdade do homem ou compreender a sua fraqueza?
Pobre irmão, infeliz… e mais infeliz eu, que o matei… Eu, que criei no peito a origem da inveja… de onde ela veio? Onde estava ela, antes de entrar ao meu coração? O pecado dos pais expulsou-os do céu e os colocou no mundo… E eu transformei o mundo em inferno… Gostaria de chorar… Mas… a culpa? Onde está o erro e onde a culpa? Matei e sou culpado. E por que matei? Fervia de inveja… De onde vem o mal? Sei que existe pra que a gente sofra. Permiti que a inveja crescesse e a aceitei em mim… Vivi, vivi e aceitei ser homem, ser filho de Deus! Resignei-me sobre minha natureza… Eis o erro! Meu crime? Aceitei a vida… A vida em mim é o mal e eu vivi, infeliz… Ah, se todos aqueles que sentem em si mesmo a semente do mal… os rostos transtornados pela cólera… nos olhos um brilho feroz… nas bocas a espuma da inveja e do descontentamento… ah, se eles devorassem as próprias carnes, se eles se queimassem no fogo da vingança contra si mesmos… o mal nos castiga… e nós somos o mal… Somos brinquedos nas mãos de alguma coisa…
Pobre irmão, infeliz… e mais infeliz eu… que derramei no coração de meus pais tanta aflição… que destruí o único bem que existia no mundo. Ninguém será mais abominável, ninguém mais impuro… pobre raça de sofredores… caia o céu sobre nós… saiam das órbitas as constelações, aterrorizando a natureza… aproxime-se o sol da terra, para incinerar tanta maldade…
(VOZ DE ADÃO): Quando você trabalhar a terra, ela não mais te dará sua força… 
(VOZ DE EVA): Pare! Este também é seu filho!
CAIM: Os gritos ainda me acompanham… Até quando?
(VOZ DE ADÃO): Onde está seu irmão Abel?
CAIM: O que sei eu? Sou porventura o guarda de meu irmão?
(VOZ DE ABEL): – risada – O cajado afugentou o lobo… Agora o rebanho vai pastar livre…
CAIM: Meu irmão? 

a espécie humana 20, 21, 22, 23 e 24

A Espécie Humana – capítulos 20, 21, 22, 23 e 24

20.   

pai, meus três amigos vão comer aqui e a gente quer batata frita com laranjada.   
pois muito bem.   
enquanto descasco batatas, ouço do outro lado da janela o menino e um dos amiguinhos.   
o que é que você está tirando da mochila?
papéis.   
não vai descer pra cascata?
não.  vou escrever.   
escrever?  com este sol?
estou escrevendo um livro.   
um livro!  sobre o quê?
sobre o coelho da páscoa.  quero provar que existe o coelho da páscoa.   
você sabe que ele não existe.   
eu preciso que ele exista e vou provar que existe.  são três elementos: a páscoa, o coelho, o ovo.  é como uma trindade.  o difícil vai ser explicar por que o ovo é de chocolate.   
e se não conseguir explicar?
então digo que é um dogma.   
e o que é um dogma?
um dogma é assim: eu digo que é verdade e você tem que acreditar, se não vai ser queimado vivo.   
vade retro!  como vai se chamar este livro.   
suma teológica.   
ah!  com certeza, um livreco!