oração a Deus – voltaire

ORAÇÃO A DEUS – VOLTAIRE (1694-1778)

    Não é mais aos homens, portanto, que eu me dirijo, mas a você, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos; se a frágeis criaturas perdidas na imensidão e imperceptíveis ao resto do universo, for permitido ousar pedir algo a você, você que tudo concedeu, você cujos decretos são tanto imutáveis quanto eternos, digne-se olhar com piedade aos erros ligados à nossa natureza; que tais erros não se transformem em calamidades. Você não nos deu um coração para odiar nem mãos para nos degolarmos uns aos outros; faça com que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida penosa e passageira; que as pequenas diferenças entre as roupas que cobrem nossos corpos débeis, entre todas as nossas línguas insuficientes, entre todos os nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões insensatas, entre todas as nossas condições tão desproporcionais a nossos olhos, mas tão iguais diante de você; que todas estas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens, não sejam sinais de ódio e de perseguição; que aqueles que acendem velas em pleno meio-dia, para celebrar você, suportem aqueles que se contentam com a luz de seu sol; que aqueles que colocam sobre a roupa um véu branco para dizer que é preciso amar você, não detestem os que dizem o mesmo debaixo de um manto de lã negra; que aqueles cujas roupas são tingidas de vermelho ou púrpura, que dominam uma parcelazinha de uma porçãozinha do barro  deste mundo e que possuem alguns fragmentos redondos de certo metal, usufruam sem orgulho daquilo que eles chamam de grandeza e riqueza, e que os outros os olhem sem inveja: pois você sabe que nessas vaidades não há o que invejar nem do que se orgulhar.

    Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos! Que todos tenham horror à tirania exercida sobre as almas, do mesmo modo como acham execrável a bandidagem que toma à força o fruto do trabalho e da indústria pacífica! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos dilaceremos uns aos outros no seio da paz e empreguemos o instante de nossa existência a bendizer igualmente em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, a sua bondade, que nos concedeu este instante.

do livro Tratado sobre a Tolerância por ocasião da morte de Jean Calas (1763), capítulo XXIII.

 

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garças e abutres… 01

garças e abutres 00

    Um homem inteiramente só, não teria memória; nem precisaria dela. (Pierre Janet)

O Senhor Freud estava errado.
O inconsciente não tem poder sobre nós, mas, sim, a memória.
É a memória como uma Imperatriz das Almas. É ela quem decide aquilo de que lembraremos por todo o tempo e aquilo que se apagará de dentro de nós, para todo o resto da nossa vida. Podemos aprender a tornar a memória mais ampla. Podemos, numa terapia, resgatar lembranças que pareciam perdidas. Mas NÃO PODEMOS ESQUECER, por opção, aquilo que a Imperatriz das Almas não permite que seja esquecido.
É o terrível jogo entre as lembranças que temos, e aquilo que não conseguimos esquecer, é esse o jogo que define cada ser humano. Somos essa soma. Aqui não há subtrações. O apagado apenas significa o que não nos pertence; o que não somos mais, nem voltaremos a ser.

1. Antecedentes

garças e abutres 01

Num resumo, os fatos que antecederam a minha chegada à estação de trem foram os seguintes.
Tínhamos viajado para o Rio, mamãe, Geraldo, Amélia, eu e Angela. Três dias de viagem na cabine do caminhão, Geraldo na carroceria com o ajudante. No segundo dia, em Muriaé, Ângela fez cinco anos. Vinte e quatro de março de 1949. Eu tinha, portanto, seis anos e quase nove meses.
A viagem, hoje, mais parece uma seqüência breve de fotografias. Pedaços de memória. Ou cenas curtas de um filme mudo, arranhado, muito claro, montagem complexa em que imagens se misturam umas dentro das outras.
As cenas do caminhão; o almoço na pensão, no dia do aniversário; todos nós sentados numa calçada e em volta da mãe, numa noite escura e morta, dormindo encostados uns nos outros, enquanto ela conversava com uma moradora da cidade (Leopoldina?).
Na avenida Presidente Vargas, um homem parou a moto e nós, aflitos, atravessamos a rua larguíssima. Pensei que nunca mais tornaria a vê-lo. É a primeira vez, que me lembre, de ter tido esta idéia: vendo ou sentindo alguma coisa, concluir que aquilo não se repetirá.
Do homem da moto, já estamos no apartamento da tia. Telefone, os carrinhos lá embaixo, rua Washington Luis, número 1, apartamento 801, telefone 32-8366. Seria mesmo isto? Geraldo jogou um tostão lá do alto, nós descemos e o procuramos, inutilmente. Não sei quantos dias ficamos ali.
Porque, na cena seguinte, já estou olhando o grande portão de ferro do SAM (Serviço de Assistência ao Menor), algum menino me dizendo que não daria para fugir por ali. Mas por que alguém quereria fugir dali?, eu penso. Eu visto um macacão azul, como todos, o padre nos ensina um canto, cujas palavras eu já esqueci:

    Queremos Deus, homens ingratos ….. Zombam da fé os insensatos…..Da nossa fé, oh, Virgem, o brado abençoai…

Que seria brado?, eu penso. A música me entra e engasga minha alma, a comoção dói e o padre se dilui, desaparecendo.
Geraldo devia estar por ali, decerto, porque volta e meia ele aparece, como se fosse mágica. Sua presença me dá muita segurança, sei que logo ele vai fazer doze anos!
Estou no meio de alguns meninos, um deles coloca o dedo rígido junto ao rosto de um outro e chama:
Ô garoto!
E o outro, ao virar-se, bate o rosto em seu dedo. Todos riem. Acho que eu também ri. Faço o mesmo com algum vizinho:
Menino!
Mas a palavra me soa estrangeira e desarmada. Eu me encolhi todo, envergonhado. Menino ali não era menino, era garoto. Ou então guri. Garoto, guri, as palavras dançavam dentro de mim.
Ignoro quantos dias ficamos naquele prédio. Teríamos dormido ali? Com certeza, porque me lembro de visitas, lembro de maçãs e lembro do olhar triste de minha mãe. E se alguém me perguntasse o que era viúva…
…naquele tempo, eu conhecia uma tristíssima canção infantil:

    Eu tenho um rochedo tão alto
Que ninguém pode alcançar.
Sentou-se a pobre viúva
E triste pôs-se a chorar,
A chorar,
A chorar…

…e se alguém me perguntasse o que era viúva…
…eu diria que viúva era o que era minha mãe.
Todavia minha mãe não era viúva. Apenas abandonara o marido alcoólatra, carregando a prole para a cidade grande…
De repente o portão, o padre, o canto comovedor, os garotos, as visitas, tudo corre para trás. Estou no trem.
Estou no trem!
Cheguei, enfim, à estação. Anos depois, saberei que era sexta-feira santa.

continua no próximo domingo.

ardeoj kaj vulturoj… 01

ardeoj kaj vulturoj 01


Viro kiu vivus absolute sola, ne havus memoron; eĉ ne bezonus ĝin. (Pierre Janet)

Sinjoro Freud malpravis.
La nekonscio ne regas nin, sed, ja, la memoro.
Memoro estas speco de Imperiestrino de la Animoj. Estas ŝi, kiu decidas pri tio, kion ni porĉiame memoros kaj pri tio, kio forviŝiĝos de ene de ni, dum la restanta tempo de nia vivo. Ni povas lerni, kiel fari la memoron pli ampleksan. Ni povas, per terapio, rekuperi memoraĵojn laŭŝajne perditaj. Sed ni NE POVAS FORGESI tion, kies forgeson ne permesas la Imperiestrino de la Animoj.
Estas la terura rilato inter niaj memoraĵoj kaj tio, kion ni ne kapablas forgesi, estas tiu rilato, kiu difinas la homan estaĵon. Ni estas tiu sumo. Ĉi tie ne okazas subtraho. Forviŝaĵo signifas nur tion, kio ne apartenas al ni; tion, kio ni ne plu estas, kaj neniam plu estos.

1. Antaŭaj okazaĵoj

ardeoj kaj vulturoj 01

Resume, jen la faktoj, kiuj okazis antaŭ ol mi venis al la trajnstacio.
Ni alvenis al Rio-de-Ĵanejro, panjo, Geraldo, Amelja, mi kaj Angela. Tri tagoj ene de kamionkajuto, escepte de Geraldo, kiu vojaĝis sur la ŝarĝplato, kun servisto. La dua vojaĝtago estis datreveno de Angela, ŝi iĝis kvin jaraĝa. La dudekkvara de marto, 1949. Sekve, mi havis ses jarojn kaj preskaŭ naŭ monatojn.
Hodiaŭ, la vojaĝo pli ŝajnas mallonga serio da fotoj. Pecoj el memoraĵoj. Aŭ malgrandaj scenoj de silenta filmo, difektita, tro hela, konfuza muntado ĉar kelkaj bildoj enmiksiĝas ene de aliaj.
La scenoj en la kamiono; tagmanĝo en restoracieto; ni ĉiuj dormas sidante surtrotuare ĉirkaŭ panjo, en malluma kaj mortinta nokto, unu apogata sur la alia, dum ŝi konversacias kun virino de la urbo.
En la Avenuo Prezidanto Vargas, motociklisto haltis kaj gestis al panjo; kaj ni, maltrankvile, transpasis la larĝegan straton. En tiu momento, mi pensis ke mi neniam plu revidos lin. Kaj, se mi  bone memoras, estas la unua fojo kiam mi tion pensis: se mi vidas aŭ sentas ion, mi konkludas ke tio neniam plu ripetiĝos.
Post la motociklisto, jen, ni jam estas en la apartamento de onklino. Telefono! La aŭtomobiletoj sub ni! Strato Washington Luis, 1, apartamento 801, telefonnumero 32-8366. Ĉu tio veras? De la fenestro, Geraldo ĵetis groŝon, ni malsupreniris kaj serĉis ĝin, vane. Mi ne scias kiom da tagoj ni tie restis.
Ĉar en la posta memorata sceno, mi rigardadas la altan pordegon de la Nacia Internulejo por Neplenaĝuloj. Iu knabo diras al mi ke tute neeblas fuĝi tra tiu pordego. Kial iu volas fuĝi?, mi pensas. Ni ĉiuj vestas bluan uniformon, la pastro instruas kanzonon, kies vortojn mi forgesis:

    Ni volas Dion, ni, maldankaj… Mokas pri fid’ la malsaĝuloj… Pri nia fid’, Maria, la plendon, nun, aŭdu vi…

Kion signifas plendo?, mi pensas. La muziko eniras en mi kaj sufokas mian animon, la komocio dolorigas min kaj la pastro fandiĝas kaj malaperas.
Certe, Geraldo estis proksime, ĉar kelkfoje li aperas, kvazaŭ magie. Lia ĉeesto komfortigas min, mi scias ke baldaŭ baldaŭ li estos dekdu jaraĝa!
Jen mi meze de kelkaj knaboj, unu el ili metas la rigidan montran fingron ĉe la vizaĝo de aliulo kaj alvokas:
Hej, bubo!
Kaj la alia, sin turnante, batas la vizaĝon sur la fingron. Ĉiuj ridas. Mi pensas ke ankaŭ mi ridis. Mi faras la samon al najbaro:
Hej, knabo!
Sed la vorto knabo ŝajnas al mi fremda kaj senefika. Knabo, tie, ne estis knabo sed bubo. Aŭ etulo. Bubo, etulo, la vortoj dancadis ene de mi.
Mi ne scias kiom da tagoj mi restis en tiu konstruaĵo. Ĉu eble ni dormis tie? Certe, jes, ĉar mi memoras pri vizitantoj, mi memoras pri pomoj kaj pri la malĝoja rigardo de panjo. Kaj, se iu demandus al mi tion, kion signifas la vorto vidvino…
…tiutempe mi konis malĝojegan infanan kanzonon:

Mi vidas ŝtonegon tre altan,
Neniu atingas ĝin.
Sur ĝi sidiĝas vidvino,
Kun granda angor’ en la sin’, en la sin’, en la sin’.

…kaj, se iu demandus al mi tion, kion signifas la vorto vidvino…
…mi dirus, ke vidvino estas tio, kio estas panjo.
Tamen, panjo ne estis vidvino. Nur ke ŝi forlasis la alkoholaman edzon kaj kondukis la idaron ale al la granda urbo.
Subite, la pordego, la pastro, la emociiga kanto, la bubaro, la vizitantoj, ĉio malaperas. Jen mi en la trajno.
Jen mi en la trajno!
Jes, mi finfine alvenis al la stacidomo. Jarojn poste, iu diros al mi ke la tago estis la sankta vendredo.

daŭrigo en la venonta dimanĉo.