garças e abutres… 01

    Um homem inteiramente só, não teria memória; nem precisaria dela. (Pierre Janet)

O Senhor Freud estava errado.
O inconsciente não tem poder sobre nós, mas, sim, a memória.
É a memória como uma Imperatriz das Almas. É ela quem decide aquilo de que lembraremos por todo o tempo e aquilo que se apagará de dentro de nós, para todo o resto da nossa vida. Podemos aprender a tornar a memória mais ampla. Podemos, numa terapia, resgatar lembranças que pareciam perdidas. Mas NÃO PODEMOS ESQUECER, por opção, aquilo que a Imperatriz das Almas não permite que seja esquecido.
É o terrível jogo entre as lembranças que temos, e aquilo que não conseguimos esquecer, é esse o jogo que define cada ser humano. Somos essa soma. Aqui não há subtrações. O apagado apenas significa o que não nos pertence; o que não somos mais, nem voltaremos a ser.

1. Antecedentes

garças e abutres 01

Num resumo, os fatos que antecederam a minha chegada à estação de trem foram os seguintes.
Tínhamos viajado para o Rio, mamãe, Geraldo, Amélia, eu e Angela. Três dias de viagem na cabine do caminhão, Geraldo na carroceria com o ajudante. No segundo dia, em Muriaé, Ângela fez cinco anos. Vinte e quatro de março de 1949. Eu tinha, portanto, seis anos e quase nove meses.
A viagem, hoje, mais parece uma seqüência breve de fotografias. Pedaços de memória. Ou cenas curtas de um filme mudo, arranhado, muito claro, montagem complexa em que imagens se misturam umas dentro das outras.
As cenas do caminhão; o almoço na pensão, no dia do aniversário; todos nós sentados numa calçada e em volta da mãe, numa noite escura e morta, dormindo encostados uns nos outros, enquanto ela conversava com uma moradora da cidade (Leopoldina?).
Na avenida Presidente Vargas, um homem parou a moto e nós, aflitos, atravessamos a rua larguíssima. Pensei que nunca mais tornaria a vê-lo. É a primeira vez, que me lembre, de ter tido esta idéia: vendo ou sentindo alguma coisa, concluir que aquilo não se repetirá.
Do homem da moto, já estamos no apartamento da tia. Telefone, os carrinhos lá embaixo, rua Washington Luis, número 1, apartamento 801, telefone 32-8366. Seria mesmo isto? Geraldo jogou um tostão lá do alto, nós descemos e o procuramos, inutilmente. Não sei quantos dias ficamos ali.
Porque, na cena seguinte, já estou olhando o grande portão de ferro do SAM (Serviço de Assistência ao Menor), algum menino me dizendo que não daria para fugir por ali. Mas por que alguém quereria fugir dali?, eu penso. Eu visto um macacão azul, como todos, o padre nos ensina um canto, cujas palavras eu já esqueci:

    Queremos Deus, homens ingratos ….. Zombam da fé os insensatos…..Da nossa fé, oh, Virgem, o brado abençoai…

Que seria brado?, eu penso. A música me entra e engasga minha alma, a comoção dói e o padre se dilui, desaparecendo.
Geraldo devia estar por ali, decerto, porque volta e meia ele aparece, como se fosse mágica. Sua presença me dá muita segurança, sei que logo ele vai fazer doze anos!
Estou no meio de alguns meninos, um deles coloca o dedo rígido junto ao rosto de um outro e chama:
Ô garoto!
E o outro, ao virar-se, bate o rosto em seu dedo. Todos riem. Acho que eu também ri. Faço o mesmo com algum vizinho:
Menino!
Mas a palavra me soa estrangeira e desarmada. Eu me encolhi todo, envergonhado. Menino ali não era menino, era garoto. Ou então guri. Garoto, guri, as palavras dançavam dentro de mim.
Ignoro quantos dias ficamos naquele prédio. Teríamos dormido ali? Com certeza, porque me lembro de visitas, lembro de maçãs e lembro do olhar triste de minha mãe. E se alguém me perguntasse o que era viúva…
…naquele tempo, eu conhecia uma tristíssima canção infantil:

    Eu tenho um rochedo tão alto
Que ninguém pode alcançar.
Sentou-se a pobre viúva
E triste pôs-se a chorar,
A chorar,
A chorar…

…e se alguém me perguntasse o que era viúva…
…eu diria que viúva era o que era minha mãe.
Todavia minha mãe não era viúva. Apenas abandonara o marido alcoólatra, carregando a prole para a cidade grande…
De repente o portão, o padre, o canto comovedor, os garotos, as visitas, tudo corre para trás. Estou no trem.
Estou no trem!
Cheguei, enfim, à estação. Anos depois, saberei que era sexta-feira santa.

continua no próximo domingo.

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