O Corvo de Edgar Allan Poe

O CORVO
Edgar Allan Poe (1809-1849)

Tradução e música: Jorge Teles

Nota: Para esta tradução contei com a participação de Angela Telles-Vaz. Ela fez, a pedido meu, uma tradução literal do texto completo, que eu versifiquei, seguindo a estrutura métrica e das rimas do original. O texto de Poe algumas vezes desrespeita as rimas internas.

Meia-noite era a hora; lembro tal se fosse agora.
Eu lia livros de outrora, de ciências ancestrais,
Quando, quase adormecido, ouvi um leve estalido,
Alguém fazendo um ruído bem junto de meus portais.
“Deve ser uma visita”, disse, “junto a meus portais.
        Isso apenas, nada mais.”

Ah, memória de tormento, era um dezembro cinzento.
Na lareira um fogo lento tinha brilhos espectrais.
Esperava pelo dia. Tentando esquecer, eu lia;
Esquecer a que estaria entre os anjos celestiais,
A quem chamam de Lenora estes anjos celestiais.
        Aqui, não tem nome mais.

Os sussurros da cortina púrpura de seda fina
Torturavam com tremores fantásticos, abissais.
Pra acalmar o meu proscrito coração, disse eu, contrito:
“Algum visitante aflito deve estar junto aos portais.
Um tardio visitante está junto aos meus portais.
        É só isso e nada mais”.

Retomando meu alento, sem hesitar um momento
Eu gritei: “Senhor, lamento, mas chegar a horas tais!
O Senhor ou a Senhora que, gentilmente, aí fora,
Bate bem a essa hora de silêncios sepulcrais!”
Abri então minha porta, aos silêncios sepulcrais.
        Só o escuro! Nada mais!

Espreitando o escuro horrendo, eu, ali, tudo temendo,
Sonhei um sonho tremendo, nunca sonhado jamais;
O silêncio era total. Não me deu nenhum sinal.
Só o nome de Lenora em dois murmúrios iguais.
Eu o suspirei e o eco devolveu com sons iguais.
        Isso apenas. Nada mais.

Novamente entrei em casa, toda a alma feita em brasa.
Outra vez, e já mais forte, ouvi os ruídos fatais.
“Há alguém ali, é certo”, disse eu, “alguém desperto
Junto à janela, encoberto por mistérios colossais.
Coração, se acalme, explore os mistérios colossais.
        É o vento. Nada mais”.

A janela abri, nervoso e voando, majestoso,
Entrou um Corvo vistoso, dos tempos inaugurais.
Não parou por um minuto, qual fidalgo absoluto
E de modo resoluto pousou bem junto aos portais.
No busto da deusa Palas, bem junto de meus portais.
            Lá pousou e nada mais.

Tanta tristeza sentindo mas eu acabei me rindo
Desse pássaro de ébano com ares senhoriais.
“Corvo negro, renegado com o topete entrecortado,
Corvo antigo e enviado por tormentas infernais.
Qual teu principesco nome nas moradas infernais?”
        Disse o Corvo: “Nunca mais”.

Eu fiquei maravilhado com o que tinha escutado
Inda que o significado das palavras cruciais
Não ficasse muito claro; mas com decisão, declaro,
Que isto há de ser bem raro: ter junto de seus portais
Ave, ou monstro, ali, pousado, sobre o busto, nos portais,
        Com tal nome: Nunca Mais.

Mas depois ficou calado, como se, tendo falado,
Tivesse a alma esgotado em palavras tão cabais.
E mudo permaneceu. Nem uma pluma moveu.
Transtornado, disse eu: “Meus amigos, meus fanais,
Perdi tudo. Também ele se irá com meus fanais”.
        Disse o Corvo: “Nunca mais”

Minha alma tremeu inteira com a resposta tão certeira.
“Eis a provisão grosseira de suas reservas verbais.
Com certeza teve um dono que, caído no abandono,
Noites e noites sem sono, repetia, entre seus ais,
Num triste canto de morte, repetia entre seus ais
        O estribilho: Nunca mais”.

Eu ria num pesadelo. Pois era obrigado a vê-lo!
A poltrona rolei junto à ave, o busto e os portais.
Afundado no veludo, eu refleti sobre tudo:
“O que quer dizer-me um Corvo de outras eras primordiais
Agourento, feio, vindo dessas eras primordiais,
        Com o grasnado: Nunca mais?”

E sentado, eu meditava. Com o Corvo não mais falava
Mas sentia me queimando seus dois olhos bestiais.
Eu não concluia nada. A cabeça reclinada
No veludo da almofada, sob a luz dos castiçais,
Veludo violeta que ela, sob a luz dos castiçais,
        Não tocará nunca mais!

Súbito o ar ficou mais denso, como se um vaso de incenso
Em mãos de anjos, volteasse numa dança em espirais.
“Deus mandou-o!”, eu gritei. “Pelos anjos, sim, eu sei,
Pra que eu esqueça Lenora e essas mágoas tão brutais.
Bebo e esquecerei Lenora e essas mágoas tão brutais.”
        Disse o Corvo: “Nunca mais.”

“Ah, maléfico adivinho, ave ou demônio daninho,
Vindo de uma tempestade ou de eras inaugurais.
Diga se nessa morada, desértica, assombrada,
Nesta casa horrorizada, adivinho, diga mais,
Terei eu alívio um dia, diga, imploro, diga mais!”
        Disse o Corvo: “Nunca mais.”

“Ah, maléfico adivinho, ave ou demônio daninho,
Pelo Deus que adoramos, e o céu que nos fez mortais;
Diga à minha alma errante se lá no Édem distante
Encontrarei radiante entre os anjos celestiais
Lenora bela e radiante entre os anjos celestiais!”
        Disse o Corvo: “Nunca mais.”

“Seja o teu último canto”, trovejei, “já pro recanto
das plutônicas tormentas de tuas noites abismais!
Não fique nem uma pena, sinal da mentira obscena!
Eu quero ficar sozinho! Saia já de meus portais!
Tire o bico de minha alma, o corpo de meus portais!”
        Disse o Corvo: Nunca mais.”

E o Corvo ali fica, tenso, pousado, quieto, imenso,
No branco busto de Palas, bem junto de meus portais.
Traz nos olhos a demência de um demônio em sonolência.
Sua sombra sem clemência tem matizes espectrais.
E minha alma, dessa sombra, com matizes espectrais,
        Não sairá nunca mais.

Campo Largo, 30.04.2001.

GIL VICENTE 34. TRAGICOMÉDIA PASTORIL DA SERRA DA ESTRELA (1527)

o ermitão

Resumo:

A personagem Serra da Estrela, acompanhada de um criado parvo, convoca alguns pastores para visitar a Rainha que deu à luz, estando a corte na cidade de Coimbra. A rainha é Dona Catarina, mulher de D. João III. A criança é a infanta Dona Maria. Entre os pastores há enormes desencontros amorosos. Um Ermitão surge, pedindo esmola. Um pastor sugere que o Ermitão indique a cada um o seu par. Ele apresenta uns papéis, onde se lê as sortes dos pastores e são feitos os pares. A seguir o Ermitão faz desfilar uma série de condições para uma ermida onde gostaria de viver, nada santamente: “…uma cela larga… e que fosse num deserto d’infindo vinho e pão, e a fonte muito perto e longe a contemplação; … e que a filha do juiz me fizesse sempre a cama. E enquanto eu rezasse, esquecesse as ovelhas, e na cela me abraçasse e mordesse nas orelhas!” Gonçalo, um pastor, reage: “Está ali, padre, um silvado viçoso, verde, florido, com espinho tão comprido, e vós nu ali deitado… porque a vida que buscais, não na dá Deus verdadeiro”. A Serra lhes lembra que precisam ir até a Rainha. E enumera os produtos especiais da região que levará como presentes. Entram dois foliões, cada um canta uma canção. E juntos, todos cantam e dançam.

GV103. Gonçalo

Volaba la pega y vaise:
Quem me la tomasse.

Andaba la pega
No meu cerrado,
Olhos morenos
Bico dourado
Quem me la tomasse.

(canta Gerson Marchiori)

GV104. Felipa

A mi seguem dous açores,
Hum delles morirá d’amores.

Dous açores qu’eu havia
Aqui andão nesta bailia,
Hum delles morirá d’amores.

(canta Kátia Santos)

GV105. Catherina Meigengra

A serra es alta,
O amor he grande,
Se nos ouvirane.

(canta Carmen Ziege)

GV106. Fernando

Com que olhos me olhaste,
Que tão bem vos pareci?
Tão asinha m’olvidaste,
Quem te disse mal de mi?

(canta Jorge Teles)

GV107. Madanela

Quando aqui chove e neva,
Que fará na serra.

Na serra de Coimbra
Nevava e chovia,
Que fará na serra?

(canta Kátia Santos)

GV108. Rodrigo

Vayámonos ambos, amor, vayamos,
Vayamonos ambos.
Felipa e Rodrigo passavão o rio,
Amor, vayámonos.

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV109. Lopo

E se ponerei la mano em vós
Garrido amor.

Hum amigo que eu havia
Mançanas d’ouro m’envia,
Garrido amor.

Hum amigo que eu amava,
Mançanas d’ouro me manda,
Garrido amor.

Mançanas d’ouro m’envia,
A melhor era partida,
Garrido amor.

(canta Kátia Santos)

GV110. Lopo

Ja não quer minha senhora
Que lhe falle em apartado;
Oh que mal tão alongado!

Minha Senhora me disse
Que me quer fallar hum dia,
Agora por meu peccado
Disse-me que não podia:
Oh que mal tão alongado!

Minha senhora me disse
Que me queria fallar,
Agora por meu peccado
Não me quer ver nem olhar,
Oh que mal tão alongado!

Agora por meu peccado
Disse-me que não podia.
Ir-me-hei triste polo mundo
Onde me levar a dita.
Oh que mal tão alongado!

(canta Graciano Santos)

GV111. Todos

Não me firais, madre,
Que eu direi a verdade.

Madre, hum escudeiro
Da nossa Rainha
Fallou-me d’amores:
Vereis que dizia,
Eu direi a verdade.

Fallou-me d’amores,
Vereis que dizia:
Quem te me tivesse
Desnuda em camisa!
Eu direi a verdade.

(canta Carmen Ziege)

 

Comentário:

Deliciosa pastoral de Gil Vicente. Mas uma pastoral bem diferente das que acontecerão na literatura a partir da segunda metade do século XVI, pois que aqui os pastores não são nada idealizados, não há modelo grego para definir características físicas ou de comportamento. Ao contrário, um realismo meio grosseiro perpassa a maioria das falas dos jovens. Exemplos: “Meigengra traz a saia descosida e não lhe dará um ponto. Oh, quantas lêndeas vi nela, e pentear, nem migalha”. “Aborrece-me Gonçalo como o cu do nosso galo!” Alguns dos diálogos entre os namorados lembram cenas semelhantes do Sonho de Uma Noite de Verão. Talvez o mais cativante dessa obra seja o grande número de canções populares, aqui, reproduzidas quase todas na íntegra.
O Ermitão tem uma função um tanto artificial, nada convincente, a não ser no momento cômico em que enumera as mordomias de sua pretendida ermida. Entra em cena já com papeizinhos onde estão escritos os versos que determinarão os pares.
Mas a comédia (chamada de tragicomédia, que era o nome dado às peças que serviam para comemorar algum acontecimento importante), certamente cumpriu o seu objetivo, que era embelezar as festas da comemoração pelo nascimento de uma filha do rei. Todo o clima é alegre, as cantigas encantam.

GIL VICENTE 33. NAU D’AMORES (1527)

Amor

Resumo:

Entra uma princesa e se apresenta como a cidade de Lisboa. Cumprimenta o rei, a rainha e os nobres. Um príncipe estrangeiro pede a ela uma caravela. Está apaixonado e quer fazer-se ao mar, em busca de fama. Lisboa diz que a nau pertence aos reis. Ele pede então autorização para armar no porto uma náu de amores, por ser Portugal a terra que tem os melhores navios. A vela será feita de esperança, a gávea de formosura… o farol será de enganos.. e assim vai enumerando os prazeres e as dores de amor, relacionando-os às partes da náu. O capitão será o próprio deus do amor. A seguir é levada ao palco a réplica de uma caravela. O deus do amor toma lugar e a partir daí desfilam ante nossos olhos os apaixonados que farão a viagem à terra da ventura amorosa. Um frade enlouquecido de amor, que falará disparates todo o tempo; quando um pagem fala que este frade era um grande sábio, diz Amor: “pois como serão sentidos meus poderes, quantos são, se não em sábios vencidos? Os mais sábios, mais perdidos, como dirá Salomão.” Entra um pastor enamorado; um negro com sua fala estropiada; um velho perdido de amor (“Velho, vosso mundo já se foi! Eu antes tenho pensado que todo o mundo passado de novo se me voltou!”); dois fidalgos que comentam os namoros da corte. O Amor dá o sinal e todos embarcam e partem cantando.

GV101. Fidalgos do Principe

Muy serena está la mar,
Á los remos, remadores,
Esta es la nave damores.

Al compas que las serenas
Cantarán nuevos cantares,
Remareis con tristes penas
Vuesos remos de pesares;
Terneis sospiros á pares,
Y á pares los dolores.
Esta es la nave damores.

Y remando atormentados,
Hallareis otras tormentas
Con mares desesperados,
E desastradas afrentas;
Terneis las vidas contentas
Con los dolores mayores.
Esta es la nave damores.

De remar y trabajar
Llevareis el cuerpo muerto,
Y al cabo del navegar
Se empieza a perder el puerto.
Aunque el mal sea tan cierto,
Á los remos, remadores.
Esta es la nave damores.

(canta Graciano Santos)

GV102. Frade

Que fermosa caravela!
Quem fosse o capitão dela!

Caravela de Coruche
Vai por nabos a Pombeiro.
Quem fosse o capitão della!
Huha! huha! huha! huha!

Caravela de Lisboa
vai por porros a Castella:
Garrido he o gavião,
Vento bueno nos ha de levar.
Quem fosse o capitão dela!

… Todos
Bom Jesu Nosso Senhor,
tem por bem de nos salvar…

(canta Rubem Ferreira Jr)

Comentário:

Como algumas das peças de Gil Vicente, esta também foi apresentada numa ocasíão festiva. Nau d’Amores ornava as comemorações da chegada da irmã de Carlos V, rainha Catarina, que casou-se com D. João III. É uma peça agradável, tipos com falares peculiaríssimos e amores satiricamente postos a nu. A presença de uma pequena caravela em cena faz lembrar os suntuosos espetáculos que os príncipes e duques italianos davam em seus palácios, tendo artistas como Leonardo da Vinci trabalhando como artesão de máquinas mirabolantes e cenários e figurinos luxuosos. O texto da canção entoada pelos marinheiros é tão específico que com certeza não pertencia ao cancioneiro popular, mas foi elaborado por Gil Vicente especialmente para a ocasião.