Nota: A segunda novela do Decameron de Boccacio (1313/1375), entre algumas outras, mostra a devassidão no comportamento dos religiosos católicos no século XIV. Parece que nem a contra-reforma conseguiu alterar a moral de muitos padres.
Esta historinha, na verdade uma debochada anedota, exemplifica, de modo cru. um tipo de comportamento clerical que floresceu (ou espinhou) até metade do século passado. Muito disso é resultado de um costume da maioria das famílias com algumas posses: um dos filhos era destinado ao sacerdócio, desrespeitando-se individualidades e vocações. A vítima era a última a manifestar alguma vontade.
Era uma vez um padre muito sem-vergonha. Quando ele ia confessar as mulheres, ficava perguntando indecências pra elas. Mas ele preguntava de um jeito muito matreiro, que mais parecia que era mesmo confissão. Aí, quando ele entendia que a mulher tinha pecado contra o marido, ele conversava e conversava e acabava dando um jeito de seduzir a coitada. Umas gostavam e acabavam se acostumando, de jeito que nas confissões aconteciam outras coisas. E assim ele ia vivendo.
Aconteceu de mudar praquela cidade uma mulher casada com um viajante. Ela era muito bonita. No sábado foi à igreja e se apresentou pro padre, que queria confissão. Na verdade o que ela contou foi um bocado de pecadinhos bobos. Ele mandou que ela rezasse ave-maria e credo e ela foi embora.
Mal sabia a coitada que tinha acendido os desejos na alma do padre pecador. Naquela noite ele não conseguiu dormir. Só pensava na mulher bonita e virtuosa e resolveu que teria que dormir com ela porque se não ia ficar maluco.
Esta tradução adaptada foi feita especialmente para a turma da oitava série da Escola Raphael Hardy, no ano de 1974, tendo sido apresentada no palco da Biblioteca Municipal, a 31 de outubro de 1974, e no palco do Centro de Criatividade de Curitiba a 10 de novembro do mesmo ano.
Esta postagem apresenta três partes:
na primeira, o texto da peça;
na segunda, entrevista feita pelo jornal O Estado do Paraná, publicada em 17 de novembro de 1974, página 27, incluindo, na parte final, os comentários feitos pelos alunos que participaram;
na terceira, como curiosidade, cópia do selo da Censura Federal de Brasília e de trecho do texto cortado pela mesma, com uma pequena nota explicativa de como era a via-crucis da cultura brasileira durante a ditadura militar, que atingia, inclusive, atividades curriculares.
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Primeira parte: O Retábulo das Maravilhas (Entremés del Retablo de las Maravillas)
ZÉ PIMENTA: Não se esqueça do que combinamos, Maria Angu. Tudo tem que dar certo. MARIA ANGU: Sempre trabalho do mesmo jeito: muita memória, muita cuca. Mas me diga uma coisa, Zé Pimenta: pra que serve esse tal de Nanico que você contratou? Nós dois juntos não damos conta do recado? ZÉ PIMENTA: Precisamos dele pra tocar música nos intervalos entre uma e outra figura. MARIA ANGU: Maravilha será se não nos jogarem tomate e ovo podre por causa dele. Nunca vi um sujeito tão desajeitado. (entra Nanico) NANICO: Vamos representar nesta cidade?, senhor. Estou louco para mostrar pros senhores que não me tomaram apenas como carga. ZÉ PIMENTA: Quatro de você não dão nem um terço, quanto mais uma carga inteira. MARIA ANGU: Se você for tão músico quanto é grande, estamos fritos. NANICO: Acho que me darão um papel pequeno porque sou miúdo. ZÉ PIMENTA: O tamanho do papel será de acordo com o seu tamanho. Será invisível. MARIA ANGU: Parece que chegamos no vilarejo. E estes que vêm ao nosso encontro devem ser o prefeito e seus ajudantes. Vamos cumprimentá-los com adulação, mas não muita. (entram o Prefeito, o Vice, o Delegado e o Escrivão). ZÉ PIMENTA: Beijo as mãos de Vossas Senhorias. Quem dos digníssimos é o Senhor Prefeito? Continue lendo “o retábulo das maravilhas – cervantes”
Cena primeira: Um prólogo, como no teatro latino, anuncia a narrativa. Rubena foi engravidada por um jóvem clérigo. Ela apresenta um triste monólogo sobre a sua situação (“mais dói o arrependimento que a dor do parto”). Sua criada traz uma parteira que nos brinda com sortilégios facilitadores do parto (“Dizei tres vezes passinho: o verbo caro fato he: dou-vos a San Sadorninho…” A parteira faz vir uma Feiticeira para que cuide dela, escondendo assim o parto do pai de Rubena. Diabos, a mando da Feiticeira, levam Rubena à montanha. Ali ela dá à luz uma menininha, Cismena.
Cena segunda: A Feiticeira e os Diabos cuidam da menina. Duas fadas devem zelar por ela. A seguir vê-se a pequena Cismena com pastorezinhos. As fadas predizem uma boa fortuna para a menina.
Cena terceira: Já jovem, as Fadas encaminham Cismena a Creta. É adotada por uma nobre que morre e lhe deixa a fortuna. Cismena é cortejada por muitos mas acaba se casando com o príncipe da Síria.
GV060. Benita
Tiempo era caballero,
Que se me acorta el vestir.
(canta Carmen Ziege)
GV061. Feiticeira
Ru ru, menina, ru, ru,
Mourão as velhas e fiques tu
C’o a tranca no cu.
(canta Jorge Teles)
GV062. Ama
Llevantéme un dia
Lunes de mañana.
(canta Kátia Santos)
GV063. Feiticeira
De las mas lindas que yo vi.
(canta Jorge Teles)
GV064. Cismena
Grandes bandos andão na côrte,
Traga-me Deos o meu bonamore.
(canta Carmen Ziege)
GV065. Lavrandeiras
Halcon que se atreve
Con garza guerrera
Peligros espera.
Halcon que se vuela
Con garza á porfía,
Cazar la queria
Y no la recela:
Mas quien no se vela
De garza guerrera
Peligros espera.
La caza de amor
Es de altanaría;
Trabajos de dia,
De noche dolor:
Halcon cazador
Con garza tan fiera
Peligros espera.
(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)
GV066. Dario
D’amores jaço,
Quando as torço d’amores dormo.
(canta Geovani Dallagrana)
GV067. Dario
Consuelo véte con Dios;
Pues ves la vida que sigo,
No pierdas tiempo conmigo.
Consuelo mal empleado,
No consueles mi tristura;
Véte á quien tiene ventura,
Y deja el desventurado.
No quiero ser consolado,
Antes me pesa contigo:
No pierdas tiempo conmigo.
(canta Geovani Dallagrana)
GV68. Lavrandeiras
Bien quiere el viejo,
Ay madre mia,
Bien quiere el viejo
A la niña.
(canta Kátia Santos)
Comentário:
Uma comédia bem cuidada, cheia de referências ao cancioneiro popular. Mas não mantém uma unidade, é fragmentada. Pela primeira vez em seu teatro, Gil Vicente apresenta um prólogo e divide a narrativa em cenas, como já era costume no teatro espanhol. Em algumas peças futuras, o prólogo aparecerá outras vezes, mas não mais se verá a divisão em cenas, mesmo em peças com mais de um cenário.
Na primeira cena e em parte da segunda, a atuação entre os diabos, a feiticeira e as duas fadas dá uma nota cômica e fantástica à tragédia da moça engravidada pelo clérigo irresponsável. Ao final da segunda cena surge um clima do que poderíamos chamar de pastoral infantil. Só a terceira cena apresenta-se como comédia romântica, na verdade um drama romântico, com todos aqueles ingredientes emocionais característicos, como a disputa dos pretendentes, o enamorado que morre por amor e o Príncipe disfarçado por amor. Este mantém, em quadrinhas, um longo e lírico diálogo com o eco.