a espécie humana 45, 46, 47, 48 e 49

A Espécie Humana – capítulos 45, 46, 47, 48 e 49

45.   

eis-me aqui, no apartamento.  o menino ficou em São Paulo e eu voltei.  após uma limpeza, coloquei o mínimo necessário: um colchão no chão, um chuveiro e uma tábua sobre três tijolos.  sobre a tábua coloquei vasos com plantas.  no chão da sala ainda uma peneira grande cheia de frutas.  na cozinha foi deixado um fogãozinho de duas bocas, que funciona.   
o porteiro me perguntou se vou morar aqui, não, não, só até o ano novo, depois vou colocar anúncio para alugar novamente.   
o apartamento é todo branco.  sem cortinas, o sol entra impiedoso.  como está no miolo da quadra, acaba sendo totalmente silencioso.  e é só atravessar a rua e comer no pequeno restaurante.   
pois muito bem.  meu filho está com a mãe na casa dos tios.  meu pai está na minha casa com minhas outras crianças, Luluva, Aklia, Ishtar, Lilith e Caim.  e a égua.  e eu estou nesse tipo de túmulo branco, no centro de Curitiba.  e tenho ao redor de mim, sobre o carpê, espalhados, papéis e mais papéis.  digo espalhados, mas estão espalhados com ordem.  aqui, escritos antigos, onde espero beber idéias sobre as cinco faces da fantasia.  já falei quais são? o sonho, a loucura, a religião, a filosofia e a arte.  cada uma, na sua modalidade.   
ali, papéis de um livro que tenho a pretensão de escrever.  ou de estar escrevendo.  um bloco cheio de folhas preenchidas a lápis e ao lado o bloco das folhas restantes, em branco, que perguntas?, que incertezas?, que ódios de indignação aparecerão por aqui?, para visitar estas folhas de papel.  visitar e ficar para sempre.  verba volant, scripta manent.  como eu detestava aquele latim mal ensinado e como eu o estudei com gosto, depois, sozinho!
e, além, papéis coloridos, com pequenos desenhos e lápis de cor à espera de alguma talvez inspiração.   
penso que por aqui em volta há praças e cinemas.  mas resolvo que não haverá ressurreição, por enquanto.  ficarei aqui no túmulo até o dia em que deverei pegar meu filho no aeroporto, tenho que telefonar logo após o natal.  se precisar, eu o trago para cá e ficamos a passear pelo centro, esperando a tarde do dia trinta e um pois suspeito que meu pai queira que nós dois cheguemos já ao escurecer, qual será a lua?  não tenho calendário.  não faz diferença.  meio que durmo, meio que devaneio.   .   .   
meio que durmo, meio que devaneio…  deveria ter trazido livros?  e se, por capricho, eu tivesse trazido os meus dez mais?, apenas para ficarem próximos de mim!  Os Irmãos Karamázov, Don Quixote, Hamlet, As Troianas, Os Contos Filosóficos, Kalevala, Viagem a Kazohinio, quá quá quá, os dois últimos só para quem lê em Esperanto.  e por que meus dez livros param em sete?  vi uma foto de uma Nossa Senhora com sete espadas enfiadas no coração e livros são espadas enfiadas no coração fazendo transfusão de sangue-energia entre minha alma e o cosmos e quem escreve livros deve ser meio doido.   
e por que não trouxe música?  pelo menos o gravador com umas dez fitas, não e não, nunca saberia listar as dez mais, por agora sinto um buraco de música dentro de mim, nem que fosse uma valsinha, não não e não, que a música também tem que ser uma espada e a ti, uma espada traspassará a alma, de novo a Nossa Senhora, que seja então a Valsa Triste de Sibelius ou a sua segunda sinfonia!  ou, por que não?  a fonte inesgotável das mais lindas melodias que é a obra de José Afonso!
e por que no último momento desisti do violão?  cantar baixinho, na madrugada, aquelas melodias menos espadas, apenas punhais, acho que nem isto, melodias que compus um dia tão só para poder me apropriar um pouco mais daqueles textos, possuí-los com um pouco mais de avidez, aqueles textos que ficam flutuando dentro da alma porque entre eles e o meu eu criou-se uma espécie de ponte no mundo non me sei parelha ja ich weiss woher ich stamme come away come away death!

a las cinco de la tarde!

a las cinco en punto de la tarde!

e o sonho se tece à nossa revelia misturando os ingredientes do real no cadinho daquilo que o senhor Freud chamaria de poço profundo e não há ordem há ordem mas é uma ordem que escapole aos rigores entediantes primitivos e chatos do…   
… real.   
e a loucura nos envolve porque o seu material é o mesmo do sonho só que aqui não há acordar porque já se está acordado eu vejo o que não é visível eu ouço o que não é audível vermes percorrem meu corpo mas ninguém os vê e são pegajosos e estalam socorro senhor Freud e a sexualidade cobra um preço muito alto mas não é só a sexualidade há complexos de culpa há incompatibilidade com o meio social há taras familiares e há condenações cerebrais porque algumas loucuras não são escolhidas.   
e a religião chega chega não quero mais ouvir falar disto cada cabeça um deus ou deuses então são trilhões de criaturas divinas povoando os espaços todos acuda acuda e se Espinosa tiver alguma razão todo o universo…  tem fim?  não tem fim?  todo o universo será é foi fica sempre sendo uma espécie de ameba gigantesca de todos os tamanhos que contém tudo inclusive os buracos negros que são fotos em negativo dos sóis cheios de luz e esta ameba é ele Ele EL e olha nós aqui dentro olha eu aqui mãe.  mãe!
mãe!
mãe!  socorro!
mas aí vem a filosofia, calma, filho, pra você falar da religião você acabou por esbarrar nela, a filosofia.  falou de deuses e eis Espinosa com um sistema.  se for verdade não é fantasia.  mas os outros sistemas serão.  a filosofia é a fantasia que só a razão permite tramar.  tudo tem que estar nos seus conformes.   
e como eu poderia argumentar que a arte é fantasia?  precisa?  um homem cria horas e horas de música em torno de gigantes que viram dragões porque querem ter o ouro do Reno.  outro homem faz um filme em que morangos silvestres encostam numa parede um velho e exigem dele uma reflexão mais honesta.  seja partindo da imaginação absoluta, seja tirada da realidade mais real, a arte não é o real mas uma imitação do que é ou do que poderia ser.   
sonhe quem sonha.  alguns sonhos são pesadelos, alguns são inesquecíveis.  sonhe quem sonha.   
fique louco quem não consegue evitá-lo.   
tenha sua religião quem se contenta com os tostões do pensamento.   
crie sua filosofia quem for capaz de não se perder nos seus labirintos.   
faça arte quem puder.   
e por que é que se fantasia?
SE O HOMEM NÃO FANTASIAR, A ALMA SE QUEBRA EM MIL PEDACINHOS!
fragmentos.   
e é nesse momento que se levanta à minha frente uma montanha e vejo uma águia e uma serpente e ouço uma voz ressoando misteriosa sobre todos os espaços: porque te amo, ó eternidade.  Zaratustra!  Zaratustra!  onde está você?  como fui esquecê-lo?  você é um dos meus dez livros!  mas você não é uma espada!  você não é uma espada!  é uma lança que nos espeta pelo plexo solar e nos levanta no ar e aí ficamos a voar, balançando braços e pernas como uma aranha humana, ai de nós!
meio que durmo, meio que devaneio…  e como um sonâmbulo fico andando dentro da gruta-túmulo-apartamento.  e como um troglodita que desenha bisões e touros no fundo da caverna eu, troglodita da razão, rabisco palavras nas paredes brancas do quarto:

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a espécie humana 40, 41, 42, 43 e 44

A Espécie Humana – capítulos 40, 41, 42, 43 e 44

40.   

na manhã seguinte, durante o café:
vovô, o diabo existe?
existe.  diabo é o nome da burrice humana.   
e ainda se queima pessoas por causa da religião?
claro!  o Poder sempre queima vivas as pessoas.  há muitas maneiras de fazer isto.  deixá-las sem justiça.  proibi-las de mostrar o rosto.  exibi-las peladas na TV.  mas a pior delas é mantê-las na burrice.   
meu pai saiu logo após o café.  e, no portão, ele me falou:
pior do que as múltiplas facetas das revelações, pior do que isso é essa mania de todos eles se dizerem o povo escolhido.  isto é de uma infantilidade sem limites.  toda criança pensa isto, eu sou o preferido de meus pais, e de certa forma está certa.  as crias dos animais superiores poderiam dizer a mesma coisa, é uma questão de proteção à espécie.  mas daí a fazer com que um povo inteiro seja o filhinho de seu papai e, pra isso, é claro!, o seu papaizão tem que ser o único verdadeiro, ah!, cresçam e apareçam, monoteístas presumidos, vaidosos e imaturos.  até mais, filho, não gostaria de falar mais sobre estas coisas.   
crianças chegaram a seguir.  espalharam-se.  peguei meus papéis para algumas anotações.   
parou um carro diante do portão.  já sei quem é.  abri o portão, entraram o ex-aluno de meu pai e seu filho adolescente.   
o seu filho não está?, perguntou o rapazinho.   
está na cascata com uns amigos.   
ele tem aula de tarde?
está mudando de escola e agora só em fevereiro.  esse semestre ele está comigo.  
e ele: pai, vou descer.   
não demore muito.   
e enquanto esquento a água pro café:
estou sem graça com teu pai, nem sei como apresentar o fato a ele.   
ele não está.  mas já sabia o que ia acontecer.   
como assim?
ele me disse que vocês provavelmente não publicariam o texto dele.   
como ele sabia?  foi estranho, todo mundo que leu achou interessante mas sempre falava: não era bem isto que a gente queria.  o professor não vai ficar chateado?
acho que não.  conversamos sobre isto.  estava esperando.  ele disse pra mim: imprensa é imprensa.   
o que quis dizer?
ele fez o seguinte comentário: todos têm o seu limite.  os pais e professores do jornalzinho estão comprometidos com todos os pais e professores.  o mesmo se dá com a imprensa geral.  certos compromissos são mais fortes que a liberdade.  há ideologias.  vamos imaginar que um candidato à presidência de um país seja usuário de cocaína.  é claro que os jornais sabem disto.  
quer que eu te conte uma história?  tenho um amigo que trabalha num dos maiores jornais do país, se não o maior.  e ele me disse que esse fato aconteceu, o do candidato tal que fazia uso da cocaína.  os diretores tinham em mãos um dossiê.  por que eles não publicaram o dossiê às vésperas da eleição?  há compromissos, resta saber com quem. meu pai diz que os jornais e os outros meios de comunicação não passam de meros espaços para caríssimas propagandas.   
fico mais sem graça ainda.  acho que vou lá embaixo.   
tome antes um café.   

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a espécie humana 35, 36, 37, 38 e 39

A Espécie Humana – capítulos 35, 36, 37, 38 e 39

35.   

não gostaria de viver novamente aquela manhã.  não podemos escolher: atendemos ao telefone e alguém nos dá a notícia; abrimos a porta e nos deparamos com a notícia; recebemos o telegrama ou a carta e ei-la, a notícia.  a coroa do silêncio.   
após descer a escada, brinquei rapidamente com os cães.  percebi que Luluva me olhava de longe, com olhos parados, não abanava o rabo.  olhei em direção ao fogão e ali estava a notícia: Kamala jazia morta.  esticada, já fria, tão pequenina…  fechei os olhos e vi Lear, quase chorando, tendo Cordélia ao colo: passarinhos cantam lá fora, insetos voam e rastejam mas Kamala está fria e seu coraçãozinho silenciou.   
como vou dizer isto ao menino?
não gostaria de viver novamente aquela manhã.   
todos os meninos, um dia, perdem um bichinho querido!, falei baixinho, enquanto abraçava, com a maior suavidade possível, seu corpo trêmulo que soluçava abafado.   eu não sou todos os meninos, pai.  eu sou eu.   
silenciei.  o homem põe os pés na lua mas não encontra palavras de consolação diante da morte.  repete as vazias fórmulas que não ousarei repetir…  sabia que meu abraço não consolava, apenas segurava-o um pouquinho do lado de cá.   
quanto a mim, sim, eu tinha molhados os olhos mas não chorava.  algumas lágrimas vieram apenas para me lembrar de mortes anteriores, animais queridos, sim, e por que não?, e gentes, e quantas e quantas!, eu era também um daqueles tantos meninos a quem morreram bichinhos queridos.  tudo que me cabia era suavizar os tremores do corpinho que soluçava.   
meu pai não estava ali, é claro; ao perceber o que tinha acontecido, desapareceu por completo.   
depois de uma espécie de sono letárgico em que os soluços foram aos poucos diminuindo, o menino falou:
cadê o vô?, pai.   
deve estar lá fora.   
vou falar com ele.  ela pode ficar aqui mais um pouco?
sim.  vou enrolá-la num paninho.   
saiu.  pela janela vi os dois agachados, conversando, um em frente ao outro, meu pai de costas para mim.   
ao entrarem, muito tempo depois, percebi o terrível e frio olhar com que meu pai me fulminou.  ele mesmo notou que exagerara e me abraçou:
desculpa, filho!
não está sendo fácil!
nós combinamos, eu e ele, que vamos cremá-la.  combinamos também uma música bem alta, com as caixas do lado de fora.  a escolha da música é sua, claro!
e saiu.   
os dois organizaram tudo, meu pai entrava e saía.  os cães também iam e vinham mas Luluva continuava silenciosa e permanecia ao meu lado.   
finalmente, o menino entrou.   
pai, só falta o fósforo.   
quer que eu te ajude?
não!  cuide da música.  o vô está comigo.  com a voz embargada e os olhos molhados.   
me dê um abraço!
levantei-o no colo e o beijei na testa.  escolhi uma música bonita, falei.   
abraçamo-nos forte.  
vai.   
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