Tlausicalpán
nota: este texto constou do programa de apresentação da peça teatral Tlausicalpán, de Agustin Cuzzani (título original: Los indios estaban cabreros), montagem do Grupo É Hoje, em 1984.
Todas as manhãs, dois astecas subiam ao alto dos templos e gritavam, acompanhados por tambores e trompas feitas de conchas: Tlausicalpán!, Tlausicalpán!, indicando ao povo que o dia estava nascendo. O grito era um aviso de que os sacrifícios humanos do dia anterior tinham sido bem sucedidos, já que o sol precisava beber o sangue derramado das vítimas para juntar forças e subir ao céu no dia seguinte. Viver um dia a mais era, para eles, uma conquista.
Foi num desses dias, após a vitória do sol, que eles se chegaram, os europeus. O confronto era inevitável e como o zelo dos astecas se baseava na honestidade, não foi possível proteger seus mitos e seu ouro, diante da mentira civilizada. Os astecas eram terríveis à sua maneira, matando e escravizando. Mas, estudando-se de perto seus costumes, descobre-se neles uma primitiva virtude que a civilização destrói no seu processo de aperfeiçoamento: a verdade.
Foi a mentira pública que armou os espanhóis (e a todos os outros colonizadores e a nós todos, hoje, do mundo que se diz civilizado). É a mentira pública que permite o mau uso e o abuso do Poder. É a grandeza do descaramento, a pequenez da vergonha, numa ética sofista de religiões, filosofias e teorias científicas, que dogmatizam, comprovam e asseguram significados dúbios e verdades mascaradas.
Tlausicalpán, a aurora! Para os americanos do começo do século XVI, a aurora do desastre. Seus mitos, hoje, não reagem mais ao derramamento do sangue das vítimas, porque seus mitos não passam do que sempre foram: mitos.
Tlausicalpán, a aurora! Que temos nós hoje a esperar, nesse ano de 1984… O sol tem nascido com a mesma regularidade imperdoável e tivessem os astecas sabido disso, teriam dado um importante passo à consciência plena. O que nos anuncia hoje essa sequência de auroras? Para os místicos ingênuos, uma nova era, aquarius, onde o lobo beberá com o cordeiro e o leão pastará com o gado, como preveniram os profetas (esquecidos de que leão não pasta, mas devora). Imaginem!, sugeriu John Lennon. Para os céticos realistas, as auroras estão anunciando a morte do sol. As bombas já estão preparadas e os senhores da morte já têm construído para eles e suas ninhadas os refúgios onde esperarão que o sol surja de novo, limpo e banhado no grande banho sem sangue, porque também o sangue das vítimas será desintegrado.
E que crenças vamos ter que sacrificar para que esse nosso sol continue a nos alimentar?, não como um deus, mas tão somente como uma fonte de energia e calor… Que reações serão as nossas, nesse nosso período de ameaças?
adorar os sacerdotes?
gritar que morra o Rei?
realizar oito revoluções? ou dezoito? ou mil e oito?
civilizar-se?
pensar para os poderosos? pensar para o povo?
trabalhar? acreditar? amar? arrepender-se?
A civilização continua soltando seus rebentos: o pensamento e a conquista. E toda a conquista só é possível quando se apossa de sua arma principal: a mentira pública.
É na tentativa de provocar o pensamento a sair da toca da comodidade, que a gente armou esse grito: Tlausicalpán!
Aurora! Aurora!
Que esse sol continue a nascer para todos, e hoje sabemos que ele não precisa de sangue humano. Muito pelo contrário, pois se os sacrifícios continuam (e, para isso, se mata lentamente, nos guetos, nas fábricas, no desemprego e na desigualdade), se os sacrifícios continuam, os novos sacerdotes – esses, sim, vampiros sedentos, conquistarão a loucura que desembocará no extermínio da raça, apagando o sol com a poeira atômica.
Tlausicalpán! Tlausicalpán!
Aurora ! Aurora!
Despertem todos, que hoje é dia de pensar!
Despertem todos, ou não acordaremos jamais!