Alma desdobrada, cap, 64, 65, 66, 67, 68 e 69

Alma desdobrada, capítulos 64, 65, 66, 67, 68 e 69

 

064.

          a terapia continua, eu, na terapia. retomo o lugar no tapete e repito minha imagem. brunetti me pergunta qual das duas sensações era a mais forte, alguém orando ou alguém a ser sacrificado. eu sinto que as duas. alguém ora, para ser sacrificado em seguida. então eu começo a sentir o templo ao meu redor, estou no centro, para morrer. pessoas passeiam fora do círculo, me vigiando. uma mulher, à direita, próxima ao meu ombro, passeia para lá e para cá e me olha com rancor. aos poucos ela se transforma em neuza. há ódio em seu jeito de andar. falo dessas coisas pro brunetti, ele pergunta se quero falar com ela, tenho medo, ele insiste que eu fale; consigo dizer após um longo silêncio e com muita dificuldade: não gosto de você.

         estou aqui com você, ele diz. continue falando. ou você tem medo de falar?

 

 065.

          ouço violeta parra, estou apaixonado por Z…. a voz dessa mulher sabe como machucar. estou triste porque estou sem Z…. sempre estou triste porque quase sempre estou sem Z…. não quero reclamar nada desse meu amigo enorme. sei que ele me dá muito do tempo que tem. estou triste e violeta parra corta pedacinhos de mim, para servir à vida, aos bocados. olho a capa do disco, seus olhos fundos e sua boca torcida pela amargura. soube que ela se matou e alguém me contou que ela se matou por um jovem muito mais novo que ela. tenho quarenta anos, Z… tem dezessete. vinte e três anos é tudo que nos separa. somos amigos, estamos sempre juntos, sempre que se pode, minha alma te pertence um bocado de tamanho, você se me entrega com pedaços ricos de sua vidinha já tão descomunal. eu olho os olhos de violeta e ouço sua voz de menina triste. run run se fué pal norte, ela canta; eu leio a letra, percebo a grandeza do desastre que se esconde por trás dessa canção.

         e choro.

         choro por violeta, por mim. choro porque estou emocionado por amar Z… como amo. choro porque não compreendo por que ela se matou por amor. não se morre por amor, violeta, mulher descida das estrelas. não se morre por amor. se vive por amor.

         choro, porque sua música me faz chorar. choro porque amo. porque vivo por amor.

  

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Alma desdobrada, cap. 59, 60, 61, 62 e 63.

Alma desdobrada, capítulos 59, 60, 61, 62 e 63.

 

059.

          eu, num seminário de manhumirim. conversara toda a tarde com alguns seminaristas. eu estava no auge da minha crise religiosa. ora abominava a igreja, culpando-a por todo o meu sofrer, ora pensava de corpo e alma entrar num seminário e me fazer padre. conversara, pois, durante a tarde com alguns seminaristas. filosofia e religião. como eu acreditava em mim! como acreditava nas minhas certezas! tinha fé naquilo em que pensava!

         deu-se que fui me deitar num enorme quarto. fazia frio e eu dormi.

         que terror foi aquele que me acordou?

  

060.

          no dia em que fiz cinco anos, minha mãe me deu um galinho de madeira, com rodinhas. talvez, no dia em que fiz seis anos. cinco ou seis, nem mais nem menos. ele tinha uma cordinha para que fosse puxado. eu, pequenino, ia e vinha dentro daquele enorme casarão, com o meu galinho atrás. se há marcas de passado que marcam, algumas marcam com o fogo da alegria. me dói muito lembrar daquele pequeno que eu era, puxando seu galinho de pau, com tamanha felicidade! faz tanto tempo, já! tanto tempo! era uma felicidade tão grande, tão insuportavelmente ameaçadora, que daria para fazer arrebentar por inteiro um coração desprevenido. teria, naquele dia, arrebentado meu coraçãozinho? quem sabe, sim, já que nunca esqueci esta passagem.

         lembro que a presença de minha mãe me cercava todo o tempo, mesmo quando ela se afastava.

 

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Alma desdobrada, cap. 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

Alma desdobrada, capítulos 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

 

053.

          quando eu tinha medo, rezava: ave-maria e pai-nosso.

         depois, por influência do protestantismo a que me fizeram aderir (eu, ligeiramente teimoso, recusei a profissão de fé até o dia em que não mais ousaram sugeri-la), eu, depois, me contentava com o pai-nosso. qualquer situação de ameaça de pânico, o pai-nosso brotava livre e solto dentro de mim.

         eu tinha pesadelos, demônios e monstros que me perseguiam a maciez do sono: acordava e desabava dentro do silêncio da alma aflita aquela fileira de pais-nossos até que o sono…

         deu-se que mudei de opinião e deus deixou de me machucar. parei de rezar, na intenção de passar a contar comigo mesmo. mas, curioso!, percebi que, quando tinha pesadelos, acordava já no meio da reza, eu principiava a rezar dentro ainda do sonho.

         se não acredito de verdade, porque rezo? me perguntei.

         nunca mais acordei rezando, após este questionamento. acordava do pesadelo, abria os olhos e olhava o escuro. não orava. às vezes, não tinha coragem para abrir os olhos.

         quantas crianças habitam cada homem? quantas?

         eu não orava.

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