GIL VICENTE 35. AUTO DA FEIRA (1527)

Roma

Resumo:

Mercúrio, o deus do comércio, após zombar da astrologia, ordena ao Tempo que arme uma tenda para uma feira de natal, a Feira das Graças: “Faço mercador-mor, ao Tempo, que aqui vem; e assim o tenho por bem, e não falte comprador, porque o Tempo tudo tem”. O Tempo – falando em decassílabos – arma a barraca e chama os visitantes. Ali nada será vendido, mas trocado. Um Anjo (Serafim) conclama os papas a pegar novas vestes, como as dos antigos. O Diabo também arma sua tendinha: tem “artes de enganar”, “falsas manhas de viver”, para clérigos e frades, “hipocrisia” para quem quer ser bispo. Entra Roma que quer comprar a paz que não encontra entre os cristãos. A ela, o Diabo oferece: “Vender-vos-ei nesta feira, mentiras, vinte três mil, todas, de nova maneira, cada uma mais sutil, que não vivais em canseira”. Roma vai ao Anjo e diz: “Oh, vendei-me a paz dos céus pois tenho o poder da terra”. O Anjo: “Atentai com quem lutais, que temo que caireis”. Após a saída de Roma, entram dois lavradores. Ambos querem se livrar das mulheres, uma é muito brava e a outra muito mansa. Um acaba por elogiar a mulher do outro e falam em trocar (feirar) as duas. Chegam outros vendedores e compradores que se instalam junto à tenda. Uma mulher fala o nome de Jesus e o Diabo desaparece, ficando o Tempo e o Anjo. A algumas moças, o Tempo oferece consciência. A outras, o Anjo oferece virtude. Mas todas recusam. Vieram à feira porque ouviram falar que nela está Nossa Senhora. E todos cantam um hino em honra da Virgem. 

 GV112. Roma

Sobre mi armavão guerra:
Ver quero eu quem a mi leva.

Tres amigos que eu havia,
Sobre mi armão porfia:
Ver quero eu quem a mi leva.

(canta Carmen Ziege)

GV113. Todos

Blanca estais colorada,
Virgem sagrada.

Em Belem villa do amor
Da rosa nasceo a flor:
Virgem sagrada.
Em Belem villa do amor
nasceo a rosa do rosal:
Virgem sagrada.

Da rosa nasceo a flor,
Pera nosso Salvador:
Virgem sagrada.
Nasceo a rosa do rosal,
Deos e homem natural:
Virgem sagrada.

(canta Jorge Teles)

 

Comentário:

Eis uma das mais violentas mostras do anti-clericalismo de Gil Vicente, que, profundamente religioso, não perdia a oportunidade para condenar os padres fingidos e, inclusive, Roma, com sua simonia – diabólico comércio de virtudes e objetos sagrados, para a salvação. A peça, todavia, fica desequilibrada, pois muda de rumo, após a saída da alegoria de Roma. Entram camponeses, há cenas cômicas entre todos e terminam por cumprir o objetivo do auto, que era festejar o natal. Na verdade, é o início da peça que está deslocado, já que as presenças de Roma, do Diabo, do Tempo e do Anjo lembram mais o clima do Auto da Barca do Inferno.
Na edição da obra de Gil Vicente de 1586, quando o Tribunal do Santo Ofício já vigorava em Portugal e já se acendia fogueiras para queimar os hereges, a Censura Inquisitorial cortou 21 versos do texto original.

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GIL VICENTE 34. TRAGICOMÉDIA PASTORIL DA SERRA DA ESTRELA (1527)

o ermitão

Resumo:

A personagem Serra da Estrela, acompanhada de um criado parvo, convoca alguns pastores para visitar a Rainha que deu à luz, estando a corte na cidade de Coimbra. A rainha é Dona Catarina, mulher de D. João III. A criança é a infanta Dona Maria. Entre os pastores há enormes desencontros amorosos. Um Ermitão surge, pedindo esmola. Um pastor sugere que o Ermitão indique a cada um o seu par. Ele apresenta uns papéis, onde se lê as sortes dos pastores e são feitos os pares. A seguir o Ermitão faz desfilar uma série de condições para uma ermida onde gostaria de viver, nada santamente: “…uma cela larga… e que fosse num deserto d’infindo vinho e pão, e a fonte muito perto e longe a contemplação; … e que a filha do juiz me fizesse sempre a cama. E enquanto eu rezasse, esquecesse as ovelhas, e na cela me abraçasse e mordesse nas orelhas!” Gonçalo, um pastor, reage: “Está ali, padre, um silvado viçoso, verde, florido, com espinho tão comprido, e vós nu ali deitado… porque a vida que buscais, não na dá Deus verdadeiro”. A Serra lhes lembra que precisam ir até a Rainha. E enumera os produtos especiais da região que levará como presentes. Entram dois foliões, cada um canta uma canção. E juntos, todos cantam e dançam.

GV103. Gonçalo

Volaba la pega y vaise:
Quem me la tomasse.

Andaba la pega
No meu cerrado,
Olhos morenos
Bico dourado
Quem me la tomasse.

(canta Gerson Marchiori)

GV104. Felipa

A mi seguem dous açores,
Hum delles morirá d’amores.

Dous açores qu’eu havia
Aqui andão nesta bailia,
Hum delles morirá d’amores.

(canta Kátia Santos)

GV105. Catherina Meigengra

A serra es alta,
O amor he grande,
Se nos ouvirane.

(canta Carmen Ziege)

GV106. Fernando

Com que olhos me olhaste,
Que tão bem vos pareci?
Tão asinha m’olvidaste,
Quem te disse mal de mi?

(canta Jorge Teles)

GV107. Madanela

Quando aqui chove e neva,
Que fará na serra.

Na serra de Coimbra
Nevava e chovia,
Que fará na serra?

(canta Kátia Santos)

GV108. Rodrigo

Vayámonos ambos, amor, vayamos,
Vayamonos ambos.
Felipa e Rodrigo passavão o rio,
Amor, vayámonos.

(canta Rubem Ferreira Jr)

GV109. Lopo

E se ponerei la mano em vós
Garrido amor.

Hum amigo que eu havia
Mançanas d’ouro m’envia,
Garrido amor.

Hum amigo que eu amava,
Mançanas d’ouro me manda,
Garrido amor.

Mançanas d’ouro m’envia,
A melhor era partida,
Garrido amor.

(canta Kátia Santos)

GV110. Lopo

Ja não quer minha senhora
Que lhe falle em apartado;
Oh que mal tão alongado!

Minha Senhora me disse
Que me quer fallar hum dia,
Agora por meu peccado
Disse-me que não podia:
Oh que mal tão alongado!

Minha senhora me disse
Que me queria fallar,
Agora por meu peccado
Não me quer ver nem olhar,
Oh que mal tão alongado!

Agora por meu peccado
Disse-me que não podia.
Ir-me-hei triste polo mundo
Onde me levar a dita.
Oh que mal tão alongado!

(canta Graciano Santos)

GV111. Todos

Não me firais, madre,
Que eu direi a verdade.

Madre, hum escudeiro
Da nossa Rainha
Fallou-me d’amores:
Vereis que dizia,
Eu direi a verdade.

Fallou-me d’amores,
Vereis que dizia:
Quem te me tivesse
Desnuda em camisa!
Eu direi a verdade.

(canta Carmen Ziege)

 

Comentário:

Deliciosa pastoral de Gil Vicente. Mas uma pastoral bem diferente das que acontecerão na literatura a partir da segunda metade do século XVI, pois que aqui os pastores não são nada idealizados, não há modelo grego para definir características físicas ou de comportamento. Ao contrário, um realismo meio grosseiro perpassa a maioria das falas dos jovens. Exemplos: “Meigengra traz a saia descosida e não lhe dará um ponto. Oh, quantas lêndeas vi nela, e pentear, nem migalha”. “Aborrece-me Gonçalo como o cu do nosso galo!” Alguns dos diálogos entre os namorados lembram cenas semelhantes do Sonho de Uma Noite de Verão. Talvez o mais cativante dessa obra seja o grande número de canções populares, aqui, reproduzidas quase todas na íntegra.
O Ermitão tem uma função um tanto artificial, nada convincente, a não ser no momento cômico em que enumera as mordomias de sua pretendida ermida. Entra em cena já com papeizinhos onde estão escritos os versos que determinarão os pares.
Mas a comédia (chamada de tragicomédia, que era o nome dado às peças que serviam para comemorar algum acontecimento importante), certamente cumpriu o seu objetivo, que era embelezar as festas da comemoração pelo nascimento de uma filha do rei. Todo o clima é alegre, as cantigas encantam.

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GIL VICENTE 33. NAU D’AMORES (1527)

Amor

Resumo:

Entra uma princesa e se apresenta como a cidade de Lisboa. Cumprimenta o rei, a rainha e os nobres. Um príncipe estrangeiro pede a ela uma caravela. Está apaixonado e quer fazer-se ao mar, em busca de fama. Lisboa diz que a nau pertence aos reis. Ele pede então autorização para armar no porto uma náu de amores, por ser Portugal a terra que tem os melhores navios. A vela será feita de esperança, a gávea de formosura… o farol será de enganos.. e assim vai enumerando os prazeres e as dores de amor, relacionando-os às partes da náu. O capitão será o próprio deus do amor. A seguir é levada ao palco a réplica de uma caravela. O deus do amor toma lugar e a partir daí desfilam ante nossos olhos os apaixonados que farão a viagem à terra da ventura amorosa. Um frade enlouquecido de amor, que falará disparates todo o tempo; quando um pagem fala que este frade era um grande sábio, diz Amor: “pois como serão sentidos meus poderes, quantos são, se não em sábios vencidos? Os mais sábios, mais perdidos, como dirá Salomão.” Entra um pastor enamorado; um negro com sua fala estropiada; um velho perdido de amor (“Velho, vosso mundo já se foi! Eu antes tenho pensado que todo o mundo passado de novo se me voltou!”); dois fidalgos que comentam os namoros da corte. O Amor dá o sinal e todos embarcam e partem cantando.

GV101. Fidalgos do Principe

Muy serena está la mar,
Á los remos, remadores,
Esta es la nave damores.

Al compas que las serenas
Cantarán nuevos cantares,
Remareis con tristes penas
Vuesos remos de pesares;
Terneis sospiros á pares,
Y á pares los dolores.
Esta es la nave damores.

Y remando atormentados,
Hallareis otras tormentas
Con mares desesperados,
E desastradas afrentas;
Terneis las vidas contentas
Con los dolores mayores.
Esta es la nave damores.

De remar y trabajar
Llevareis el cuerpo muerto,
Y al cabo del navegar
Se empieza a perder el puerto.
Aunque el mal sea tan cierto,
Á los remos, remadores.
Esta es la nave damores.

(canta Graciano Santos)

GV102. Frade

Que fermosa caravela!
Quem fosse o capitão dela!

Caravela de Coruche
Vai por nabos a Pombeiro.
Quem fosse o capitão della!
Huha! huha! huha! huha!

Caravela de Lisboa
vai por porros a Castella:
Garrido he o gavião,
Vento bueno nos ha de levar.
Quem fosse o capitão dela!

… Todos
Bom Jesu Nosso Senhor,
tem por bem de nos salvar…

(canta Rubem Ferreira Jr)

Comentário:

Como algumas das peças de Gil Vicente, esta também foi apresentada numa ocasíão festiva. Nau d’Amores ornava as comemorações da chegada da irmã de Carlos V, rainha Catarina, que casou-se com D. João III. É uma peça agradável, tipos com falares peculiaríssimos e amores satiricamente postos a nu. A presença de uma pequena caravela em cena faz lembrar os suntuosos espetáculos que os príncipes e duques italianos davam em seus palácios, tendo artistas como Leonardo da Vinci trabalhando como artesão de máquinas mirabolantes e cenários e figurinos luxuosos. O texto da canção entoada pelos marinheiros é tão específico que com certeza não pertencia ao cancioneiro popular, mas foi elaborado por Gil Vicente especialmente para a ocasião.

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